Tufões, filmes e piratas

Por duas vezes, cemitérios serviram de “aeroporto”. O que podia ter sido um mau augúrio acabou por não se confirmar e a história da aviação em Macau tornou-se rica em episódios que acompanharam desde os primeiros tempos o evoluir do meio de transporte aéreo

 

 

A construção de aeroportos, nos tempos actuais, obedece a criteriosos estudos multidisciplinares, os quais, como sabem todos os que têm acompanhado as recentes polémicas sobre a localização dos novos empreendimentos, em vários pontos do mundo, redundam em toneladas de documentos, meses ou anos de discussões e, finalmente, uma decisão política que nunca agrada a todos os  intervenientes.

Mas nem sempre foi assim. Tempos houve em que o local do aeroporto não se escolhia – acontecia, muitas vezes por acaso.

Em Macau, por exemplo, o primeiro “aeroporto” aconteceu “na campa de onde tinha sido retirado o cadáver de um china”. Corria o ano de 1891 e aquele cemitério, na calçada dos Cavaleiros, no centro da cidade, teve a duvidosa honra de ser o primeiro local onde aterrou alguém, neste caso um pára-quedista americano, Thomas Baldwin, depois de ter efectuado em balão o primeiro voo na história do território, então administrado por Portugal. Depois de umas piruetas no balão, conduzido por um seu irmão, Thomas Baldwin largou-se do aparelho e a sua queda livre foi logo amparada pela abertura de um pára-quedas que o fez deslizar graciosamente para dentro de um túmulo recém aberto. Quando saiu, a multidão bateu palmas e estava inaugurada a história da aviação em Macau, sector onde a cidade foi pioneira em alguns episódios – nem todos pelas melhores razões.

Quando se fala em Miss Macau, a maioria das pessoas pensa em desfiles de beldades em fato de banho diante de uma plateia sorridente e das câmaras de televisão. Mas na história dos aviões Miss Macau representa o primeiro desvio aéreo ocorrido no Mundo, muito antes da generalização das operações de pirataria e de terrorismo aeronáutico registada na década de 70 do século passado.

O ataque foi tão “antes de tempo” que o avião desviado era um anfíbio Catalina e o motivo não teve nada a ver com motivações políticas, mas apenas com o roubo de uma considerável quantidade de ouro que transportava de Macau para Hong Kong.

O comércio de ouro, cuja proibição decretada pelo tratado de Bretton-Woods estava prestes a vigorar em Hong Kong, motivou um enorme frenesim aéreo, com a criação, em 1948, de uma companhia de aviação em Macau – MATCO, Macau Aerial Transport Co. – e a tentativa frustrada de se criar uma pista na Areia Preta. Em alternativa, o então homem forte de Macau, Pedro José Lobo, associa-se aos fundadores da Cathay Pacific com os quais explora a rota para Hong Kong com aparelhos anfíbios que usavam as águas do Porto Exterior para chegar e sair de Macau. É um desses Catalina que em 16 de Junho de 1948 é assaltado em pleno voo por uma quadrilha de chineses, embarcados em Macau como passageiros, e que apenas conseguem fazer despenhar o avião, levando para a morte todos os que iam a bordo, excepto um dos assaltantes que ficaria preso em Macau durante alguns anos. No dia da sua libertação, foi morto à porta da cadeia.

 

Do outro lado do mundo

 

Pelas “boas razões”, Macau apresenta o registo de ter sido destino de uma das primeiras expedições aéreas desenvolvidas pela aviação militar em Portugal, país que então administrava colónias em África, Ásia e Oceania.

Apenas dois anos depois da primeira travessia aérea entre a Europa e a América do Sul (Lisboa-Rio de Janeiro), por Gago Coutinho e Sacadura Cabral, outros aviadores portugueses empreendem o gigantesco voo, pelos padrões actuais, de Portugal a Macau. O voo, realizado por Brito Pais, Sarmento de Beires e Manuel Gouveia, parte no dia 2 de Abril de 1924 de uma pista de aviação de Vila Nova de Mil Fontes.

O avião chamava-se Pátria e muitos dias depois, quando aterra em Bagdade, suscita a admiração de um outro pioneiro aéreo, o francês  Pelletier Doisy, que fazia a expedição Paris-Tóquio.

“Examinei, estupefacto, o aparelho que tripulavam Brito Paes, Beires e o seu mecânico. Era um velho Breguet de bombardeamento de noite, com motor Renault de 300 cv. Quase um “coucou”. E eram três ali dentro. Sob as asas da sua casca de noz tinham instalado dois enormes depósitos cilíndricos, com capacidade para 1600 litros, e que pareciam flutuadores ligados às rodas.

Não escondi aos meus camaradas portugueses a admiração que me causava a sua façanha. Ter conduzido um BN2, de Lisboa a Bagdade, era qualquer coisa. Querer conduzi-lo até Macau parecia-me temeridade louca. Não conheço muitos pilotos que tivessem ousado semelhante tentativa com meios tão pouco apropriados. No entanto, Paes e os seus companheiros realizaram o seu projecto. Realizá-lo não era proeza fácil”, escreveu Doisy, no seu livro de memórias, “Mon Raid”.

De facto não era fácil e, no subcontinente indiano, uma aterragem forçada perturbada por um golpe súbito de vento destrói o Pátria. Mas nem por isso cessa a aventura – uma subscrição pública realizada em Portugal permite a compra de um aparelho

De Havilland 9 A e é já neste Pátria II que os pilotos portugueses sobrevoam Macau a 26 de Junho de 1924. A proximidade de um tufão impede-os de aterrar e vão cair direitinhos… num cemitério de uma aldeia chinesa.

Ficava assim (quase) concluído o raid, que foi pioneiro nas viagens aéreas de ligação de Portugal às então suas colónias: a expedição Lisboa-Lourenço Marques foi realizada apenas em 1928, ano em que são tentadas, mas não concluídas, as primeiras ligações Lisboa-Luanda e Lisboa-Índia.

Durante quase 50 anos, mais ou menos a segunda metade do século XX, os aviões desapareceram dos céus de Macau, o que não deixa de ser estranho para uma cidade associada ao pioneirismo deste transporte aéreo. Hoje, com os aviões de volta, já quase não se repara nesse passado, mas suas marcas persistem, até mesmo nos locais mais improváveis. Quem passear por Repulse Bay, em Hong Kong, poderá encontrar o De Ricou Apartments, um conjunto residencial de luxo, baptizado com o nome de um desses visionários que tiveram razão antes de tempo ao insistir nos benefícios da aviação.

Charles Ricou, francês nascido em Hong Kong e residente em Macau, criou nos anos 20 a MAT CO. (Macao Aerial Transport), que durante algum tempo ligou a cidade a Repulse Bay. Depois, o sistema burocrático, os múltiplos interesses de Ricou na cidade e alguma desconfiança perante a sua condição de francês derrubaram o projecto.

 

Visionários e aventureiros

 

A MAT foi apenas uma das companhias que operaram em Macau quando voar era ainda uma actividade rara e só os audazes se aventuravam a entrar nos aparelhos que subiam das águas em direcção a misteriosos céus. Foi num desses aviões que, em 1936, a gigantesca companhia norte-americana Pan Am fez a sua aparição em Macau, no âmbito da rota S. Francisco-Manila-S. Francisco, que atravessava meio Pacífico nos lendários Martin 130, que passaram para a História com a designação China Clipper.

O hidroavião amarou nas águas do Porto Exterior, perante uma grande multidão, e os passageiros deram uma volta pela cidade. De Macau ninguém embarcou no China Clipper (em rigor, Philippine Clipper), mas o aparelho transportou diversas malas com correio, cujos carimbos comemorativos da viagem são hoje em dia disputados pelos coleccionadores. A presença da Pan Am em Macau durou pouco mas ficou perpetuada no filme “China Clipper”, de 1936, no qual o ainda actor secundário Humphrey Bogart tenta aterrar no território durante um tufão.

Menos conhecidos que o famoso actor de “Casablanca”, os militares do Centro de Aviação Naval estabelecido em Macau, no ano de 1927, contribuíram como poucos para o desenvolvimento da aviação no território em missões de reconhecimento, de trabalho topográfico e, até, no difícil combate à pirataria, que nessa época infestava as águas adjacentes à cidade.

Instalados na Taipa, os pilotos voavam em três hidroaviões Fairey – número constantemente reduzido por falhas de manutenção e falta de peças – e percorreram os céus de Macau até 1942, altura em que a agressão japonesa na Ásia tornou prudente a retirada dos obsoletos aparelhos, cuja presença podia constituir o pretexto para a intervenção nipónica em Macau, que de resto nunca aconteceu.

Após a curta experiência da MAT CO., no final dos anos 40, os aviões desaparecem de Macau durante quase 50 anos, até ao seu regresso viabilizado pela construção do Aeroporto Internacional, dando seguimento a uma história com mais de cem anos de episódios.

 

* Autor de “Um Século de Aventuras, Aviação em Macau” – Edição Livros do Oriente