Pássaros de uma vida

Em 2006 Macau lançava um aviso de combate à gripe das aves. As restrições levaram a tradição chinesa de criar pássaros a fechar-se numa sala alugada, em que as conversas lembram o passado radioso, quando a paixão de uma vida não era sinónimo de morte

 

O barulho é ensurdecedor. São pássaros. Às dez da manhã não estarão mais de 20 na sala alugada pela Associação Amantes dos Pássaros. Os outros, os que vieram às cinco da manhã pela mão dos donos, para o convívio matinal, já partiram. Mas o barulho ainda é ensurdecedor. Sobretudo quando se desafiam no canto. Começa um, seguem os outros, cada vez mais alto, cada vez mais agudos. Uns poucos homens, donos orgulhosos das suas aves, comem sopa de fitas ou falam entre si. Numa das paredes vazias de decoração, está o placar do campeonato dos pássaros de luta, os dominicos e os rouxinóis chineses. Mas os silver circle, mais pequenos e só servindo para o canto, também marcam presença.

O grupo, constituído exclusivamente por homens, estará ali até às 13 horas. Aí, as gaiolas serão cobertas por um pano, para que a confusão das ruas de Macau não cause traumas, e começará o caminho de retorno a casa. Os pássaros tomarão então o banho diário, numa gaiola separada, onde uma pequena tigela com água espera que chapinhem sozinhos. O mesmo ritual, todos os dias.

Não são pássaros que ali estão. Não são gaiolas de bambu que os prendem. São companhia. São palácios. Os animais vivem dez anos, doze anos, acabam por tornar-se parte da família. E, no entanto, não têm nome. São animais de estimação, mas não se fala com eles como se falaria com um cão. Um pássaro é um pássaro. Existe pela beleza das suas penas e pelas melodias que lhe saem do corpo.

Gastam-se poupanças para possuir o que canta melhor, o que luta melhor. Gastam-se fortunas para comprar a gaiola mais preciosa, feita com o bambu mais antigo, pelo mestre mais conhecido. E até os comedouros, autênticas obras de arte, são feitos com a  porcelana mais delicada.

Mas mais do que tudo, o dinheiro é gasto para entrar naquela sala alugada pela Associação Amantes dos Pássaros. Gaiola bonita na mão, todas as manhãs, com os melhores pássaros, os bonitos, os afinados. Pelo convívio com os amigos, para falar no tempo em que as casas de chá se enchiam de aves, e em que, no Verão, a rua 5 de Outubro e a rua da Barra eram invadidas por pássaros e grilos. Para criticar o presente ao qual a tradição tem de se adaptar.

 

As consequências da gripe das aves 

 

Em 1999, existiam cerca de 300 residentes de Macau com pássaros. Hoje não deverão ser mais de 200 e mesmo assim só 50 pagam as quotas da associação que aluga a única sala de Macau, onde os anos não parecem passar. Os sócios vão dos 25 aos 70, explica Hui, de 54 anos de vida e 30 de aves, acrescentando que também os jovens se interessam por este desporto. Tradição não é só de velhos, não tem de morrer com eles.
EÉ uma prática chinesa, cantonense, tal como as touradas em Portugal, e devia ser preservada. Em Hong Kong até existe a rua dos pássaros, em Macau temos de alugar uma sala para nos encontrarmos, lamenta Hui.

Em 2006, o Gabinete de Comunicação Social publicava um anúncio. É Face ao aparecimento de um caso confirmado de gripe das aves, de alta patogenicidade, num ser humano, na província de Guangdong,  bem como à evolução epidemiológica da gripe das aves no mundo, a Equipa Coordenadora sobre a Pandemia de Gripe reuniu-se no dia 6 de Março, efectuando uma avaliação da nova situação e coordenando as diversas medidas de prevenção .
O Instituto dos Assuntos Cívicos e Municipais e os Serviços de Saúde encerravam as zonas de movimentação das aves migratórias e as zonas de observação das aves dos jardins, proibiam a entrada com aves nos jardins e a criação por qualquer particular, em Macau, de aves domésticas e outras aves de livre circulação ou criadas em lugares ou água abertos. Era uma questão de saúde pública. Antes de qualquer tradição, estava a vida. Maldita hora em que se ouviu falar na gripe das aves.

 

De luta e amor

 

Antes, nós íamos para as casas de chá e toda a gente levava os seus pássaros. Faz-lhes bem estarem juntos, com outros pássaros ao lado. Ficam felizes e, quando ficam felizes, cantam melhor. Hui fala com nostalgia. Talvez o passado volte, se o futuro trouxer uma vacina. Mas não é com grande esperança que Hui fala. Explica que a paixão lhe apareceu aos 20 e poucos anos quando via amigos passearem-se com as suas gaiolas de bambu bem cuidadas, pássaros coloridos assobiando lá dentro. Ninguém na família seguia a tradição chinesa, mas Hui apaixonou-se.

É muito confortável ouvi-los cantar e é uma excitação ver os grandes a lutar, conta Hui, de olhos virados para dois dominicos que se prepararam para o desafio.

 

Eram milhares de gaiolas que os criadores penduravam em árvores ou colocavam sobre bancos e mesas do jardim. Hoje, o cenário é bem diferente

 

A tradição

 

Criar pássaros não é uma tradição recente. Segundo o livro de Leonel Barros, Tradições Populares de Macau, é prática comum na China há milhares de anos. Foi banido durante o período maoísta, mas após a morte de Mao Zedong regressou à vida dos chineses.

Em Macau, o parque de Kuanyan, na zona velha da cidade, enchia-se de pássaros logo ao nascer do dia. Eram milhares de gaiolas que os criadores penduravam em árvores ou colocavam sobre bancos e mesas do jardim. A partir dos anos 30, também o Jardim de Camões se tornou um local procurado pelos criadores.

As casas de chá parecem autênticas lojas de passarinhos, pois 90 por cento dos fregueses não dispensam a companhia das suas gaiolas. Por vezes, o chilrear das aves é quase ensurdecedor, mas a situação tem o seu quê de encantador pela beleza de tão peculiar cenário e carinho demonstrado pelas avesA, descrevia Leonel Barros, mais conhecido como Neco. As casas de chá na rua dos Mercadores e a rua 5 de Outubro eram as mais visitadas, logo de madrugada.

Por sua vez, as lutas de pássaros aconteciam durante três ou quatro dias por ano, entre Março e Maio, num edifício antigo da rua 5 de Outubro, transformado em casa de pasto. Entre as cinco e as seis da manhã, os apostadores reuniam-se para dar início às lutas. Estes pássaros exigiam cuidados mais especiais e os idosos conheciam-nos bem. Aconselhavam os criadores novatos a darem às suas aves escaravelhos para tornar o bico mais forte e levarem-nas aos jardins para que, felizes, cantassem mais, treinando assim o fôlego e a resistência.

 

Loja de pó

 

A loja de aves de estimação Va Yun está vazia. Umas poucas gaiolas modernas pairam, penduradas no tecto, à espera dos clientes que já não vêm. Sin tem 54 anos e herdou o negócio do pai. Sin Kun é que era o mestre. Montava as gaiolas, tinha pássaros de todas as cores e feitios, orgulho no negócio. Sin Kun morreu em 1999. Não viu a sua loja vazia, não viu os efeitos da gripe da aves.

A loja está vazia. Sin diz que só não fecha o negócio em memória do pai, mas também por não pagar renda. Se a prestação existisse, nem as saudades do pai a faziam ter as portas abertas. Sin Kun começara por vender flores numa tendinha, mesmo ao lado da rua dos Mercadores. Com as flores passou a vender pássaros. Até que se ficou pelo negócio das aves e saiu da rua para a loja Va Yun. Em 1998 a loja era tão conhecida e tão bonita que serviu de exemplo para a Exposição Mundial de 98, em Lisboa. No pavilhão dedicado a Macau estava uma réplica da Loja Va Yun.  Era a mais antiga e a maior, explica Sin, com orgulho nostálgico. Vinham turistas estrangeiros comprar gaiolas, as crianças apareciam regularmente para ver os pássaros exóticos que chegavam de Hong Kong, entravam por aquela porta clientes habituais que só ali compravam as aves e os gafanhotos. Hoje, a loja está vazia.

É difícil dizer se isto da gripe das aves é um exagero ou não. O problema em Macau é que a densidade populacional é muito grande, a propagação do vírus seria fácil. Mas os pássaros que aqui estão não têm nada a ver com isso, se estivessem doentes morriam em dois ou três dias, explica Sin. E não morrem.

Uns poucos periquitos ainda esperam pelas crianças que sempre aparecem com os pais bem convencidos. Os pequenos pássaros soltos nos rituais religiosos chineses também ainda ali andam. Esses ainda saem, até que a fé lhes valha. Compram-se aos 10, aos 20, mas cada um custa 12 patacas. Nem dá para o gasto.

As gaiolas ainda estão penduradas pelo tecto, fazendo vagamente lembrar a bonita fotografia tirada à réplica na ExpoE98. Mas mais pó do que cuidados as enchem. Sin não tem filhos e os irmãos pouco levam o legado paterno a sério. A Loja Va Yun há de morrer com Sin, filha de Sin Kun.

 

O dominico é um dos pássaros de luta mais usados. É do tamanho de um melro, às manchas brancas e pretas. Quando fica zangado, empina-se, de penas levantadas para se fazer maior. Hui interrompe a conversa. As duas gaiolas estão agora uma ao lado da outra. Os respectivos donos e demais curiosos juntam-se à volta do ringue improvisado. Abrem-se as portinholas. Um dos dominicos salta para a gaiola do outro, ferra o bico, prende o adversário com as garras. O segundo tenta defender-se, mostrar que também tem truques. Mas já vai tarde. Perde a dignidade e a coragem ali, na sua própria gaiola. O dono do vencedor aparta os dois, leva o dominico ainda inchado para a sua própria gaiola. E o outro lá fica, vencido.

Quando perdem geralmente não voltam a ter coragem para enfrentar a luta. Aí os donos costumam soltá-los. É um gesto de bondade, diz Hui, admitindo que já não tem pássaros de luta. Agora só os quer para cantar. Tem seis silver circle, pequenos pássaros verdes do tamanho de pardais, com um círculo mais claro à volta dos olhos, que traz da China, como todos fazem.

Todos os pássaros daqueles homens foram apanhados em liberdade, a maioria na China. São postos à venda ainda borrachos, sem sequer terem tempo para conhecer o céu.

O silver circle habitua-se rápido à mão humana, tal como o dominico. Mas o rouxinol chinês, ou Va Mei como também é conhecido, não se deixa ir tão facilmente. Há quem diga que o pássaro amarelo só acalma quando é pai. Até lá, é um selvagem.

E se um silver circle custa cerca de 100 patacas, um pássaro de luta pode chegar aos milhares. Mas as despesas não se ficam por aí. Os lutadores comem meio quilo de gafanhotos por mês. Tiramos as patas e as asas e damos-lhes vivos. Mesmo assim, ainda nos custa 500 patacas todos os meses, explica. Quanto maiores os pássaros forem, melhores lutadores serão. Em teoria, já que o maior pássaro pode sempre sair o mais acanhado. E na hora da compra nunca se sabe, só se espera pelo melhor. É um tiro no escuro.

Não, Hui já não anda nesses caminhos. Hoje, só quer os pequenitos que lhe enchem a alma e não lhe tomam a carteira. O silver circle só come um gafanhoto por dia. Fica mais em conta.

 

Até que a vida nos separe

 

Antes este era um desporto baratíssimo. Mas hoje os apanhadores de pássaros já só se dedicam aos pássaros de luta. Há alguns que são vendidos na Internet por 40 mil patacas. E na China até há aldeias que competem entre si, comenta, com pesar, Joaquim Santos, de 65 anos, igualmente sócio da associação. Cria pássaros desde os 15 e diz que, sem eles, já não sabe viver.

O dono do pássaro perdedor começa as despedidas, pegando na gaiola. Em casa, há de alimentar o animal com baratas do mato, a base do medicamento chinês para quedas e pancadas. Não lhe tocará nas feridas, só o tentará tornar mais forte, para que o sistema imunitário do bicho faça o resto.

Nunca se deixa uma luta terminar em morte. Aparta-se sempre antes. Ninguém gosta de ver um animal morrer. Eles vivem mais de dez anos, são membros da famíliaN, explica Joaquim Santos, começando a contar como tudo começou.

O meu pai tinha um canário quando eu era pequenino. Aquele pássaro viveu mais de 20 anos e no fim, já ele estava muito velhinho, não conseguia comer o grão, então cozíamos um ovo e dávamos-lhe. Ainda durou alguns anos assim. Joaquim Santos já teve cinquenta pássaros, ,quando era estudante tinha aves de todas as espécies que apareciam em Macau. Agora só tenho meia dúzia de silver circleî. O pai preferiu os canários, ele é que começou a alargar horizontes. Joaquim tem dois filhos, nenhum deles tem aves.  Mas o criador não tem pena, sabe que aquela paixão é sua, e assim vai manter-se até ao final da vida.

Eu até comprei a casa onde moro hoje porque achei que era boa para criar pássaros. Pensei em encher as varandas e os pátios com gaiolas, mas hoje já nem gaiolas bonitas háE.

Nunca houve muitos mestres na arte de fazer gaiolas. Quatro, talvez cinco. Demoravam seis meses a completarem uma peça, passavam semanas à procura do bambu mais antigo e resistente. As que ainda persistem chegam a valer 200 mil patacas. .Em Macau existia um, era o mestre Tehe Seong, nasceu em Xangai, mas viveu cá muitos anos. Morreu no ano passadoE.

As gaiolas de hoje são baratas. Feitas em série, desmontáveis para facilitar o transporte. O bambu usado é novo, parte-se com facilidade.

Com a morte dos mestres, e o dinheiro a falar mais alto, a guerra das gaiolas já está perdida. Os pássaros ainda enfrentam perigos de saúde pública, restrições à sobrevivência. Ninguém os quer, com medo da morte. O presente trouxe a gripe das aves. O passado vem embrulhado em gaiolas seculares que homens, e só homens, não deixam morrer.

Às 13 horas, a sala alugada pela Associação Amantes dos Pássaros fecha as portas. Amanhã há mais.