A Saudade num clique

As memórias da Macau de outras eras podem ser revisitadas na Internet através de blogues e portais que disponibilizam um rico acervo de imagens antigas – algumas raras – e textos. “Macau Antigo” e “Projecto Memória Macaense” são dois bons exemplos do que a rede global tem para oferecer

 

Quando se faz uma pesquisa num motor de busca na Internet com a palavra “Macau”, surgem cerca de 62 milhões resultados. A maioria das páginas é alusiva à Macau moderna, capital mundial do jogo. Mas na rede global é possível também descobrir vários cantos que retratam a cidade de outros tempos. Dois deles primam por ter um arquivo notável de fotografias, informações e textos que dão conta do quotidiano de uma terra que, para os autores é, a vários níveis, especial. Os autores já não vivem em Macau há vários anos, mas a forma como se dedicam aos sites e blogues denota que as recordações estão vivas a cada dia que passa.

“Macau Antigo” é um blogue da autoria do jornalista João Botas e conta-nos as histórias de Macau desde o século XVI.
Já Rogério da Luz, autor do portal “Projecto Memória Macaense”, preocupa-se sobretudo em manter viva a memória da Macau dos anos 1960, do tempo das casas verdes na Taipa, do rock and roll, de bandas como os The Thunders ou dos cinemas e teatros que animavam a cidade. Foi nessa altura que passou em Macau os anos mais vibrantes da sua vida. Deixou a terra natal em 1967 com apenas 17 anos e só voltou para a visitar a primeira vez 26 anos depois. Agora, no Brasil, onde vive há mais de 40 anos, procura também dar a conhecer ao mundo a cultura e a diáspora macaense em vários aspectos.

 

As “histórias” da História

 

João Botas nasceu em Portugal em 1971, mas veio viver para Macau com apenas 13 anos -1984 a 1991 – de onde saiu para ir estudar comunicação social. Talvez por isso mesmo, em “Macau Antigo” os anos 1980 ganham uma relevância especial. Mas o blogue contém constantes cruzamentos no tempo e no espaço da vida quotidiana da cidade. O autor lembra nas fotografias que coloca e nos textos que as legendam os autocarros que alguns ainda conheceram e de que gerações mais novas ouviram falar ou os aviões que aterravam na água, além das histórias dos piratas que andavam nos mares do Sul da China. Botas realça que “a História não é feita de grandes efemérides, mas destas pequenas coisas”.
O trabalho detalhado de recolha de imagens, textos e referências já foi apreciado por mais de 100 mil visitantes, que espreitaram este blogue desde que começou a ser publicado, em Novembro de 2008.

A saudade está assim espelhada de forma explícita nesta página electrónica. O jornalista explica isso com o facto de a nostalgia ser “uma especificidade do território” e por Macau ter sido de facto “um local de passagem muito marcante para muita gente”. A dedicação de Botas a Macau não se esgota em “Macau Antigo”. Antes tinha iniciado o blogue dos antigos alunos do Liceu de Macau. O espaço na Internet surgiu na altura em que estava a escrever o livro sobre o Liceu de Macau, publicado em 2009. Deparou-se então com inúmera documentação que, embora não sendo apropriada para o livro, “achava um crime pura e simplesmente ignorá-la”. Depois de ter pronta uma edição de mil exemplares, continuou a receber informação, tanto sobre o liceu como sobre a cidade. Surgiu assim uma necessidade de a partilhar. O Blog dos Antigos Alunos do Liceu de Macau é, como diz, “uma espécie de edição revista e actualizada ad aeternum da edição em papel.”

Ao blogue de João Botas chegam pessoas de várias origens. “Tenho tido reacções de todos os pontos do globo: de Macau a Portugal, do Brasil, Austrália, Canadá, Itália, Bélgica, França, Estados Unidos”. E não são apenas antigos residentes.
O autor conta do interesse de uma escritora italiana que estava a trabalhar num romance de época, que inclui uma parte que tinha Macau como cenário. A escritora acabou por encontrar no “Macau Antigo” aquilo que uma enciclopédia nunca teria.
Apesar de este ser, segundo Botas, “o maior acervo de textos e imagens da História de Macau disponível de forma gratuita”, nenhuma instituição decidiu apoiar o projecto. Lembra ainda que o seu blogue tem poucos textos da sua autoria, “não tenho tempo nem conhecimentos para me aventurar noutros voos”, contudo tem certamente o seu cunho com uma cuidadosa selecção de textos, imagens, sugestões de leitura e até vídeos inéditos.

 

Espaço de partilha para a diáspora

 

Embora não tenha a vertente histórica de “Macau Antigo”, o portal Projecto Memória Macaense também transpira a saudade de uma outra Macau. No sítio encontra-se um arquivo considerável de vídeo, música, fotografias e receitas culinárias. A ideia de criar um portal para a comunidade macaense foi “um reflexo da experiência de ter editado alguns boletins da Casa de Macau de São Paulo, quando fazia parte da direcção”, conta Rogério da Luz. Da ideia passou à prática e ergueu um sítio em que finalmente passou a poder partilhar artigos de jornais antigos, bilhetes de autocarros ou de cinema e teatro que tinha levado consigo como recordações dos tempos em que viveu na terra onde nasceu.
Ao cimo da página, desde a primeira hora está a bandeira do antigo Leal Senado de Macau.

O arquivo do Projecto Memória Macaense dá primazia à música. Rogério da Luz explica que a sua geração era “muito musical”, com uma forte cultura de festas. O portal tem também como missão “provar que os filhos da terra na diáspora também se empenham em cultivar a memória e os costumes.” Algo que é testemunhado por visitantes de vários países e territórios.
Em busca do Farol da Guia

 

Em 2009, Botas regressou a Macau, 20 anos depois, na sequência de um convite do Jornal Tribuna de Macau para apresentar o livro “Liceu de Macau 1893-1999”. Regressar à cidade tanto tempo depois foi um choque. Ao chegar ao Terminal Marítimo do Porto Exterior sentiu-se decepcionado por não vislumbrar o Farol da Guia.
Mesmo assim conseguiu reencontrar a Macau que conheceu “em muitos espaços e também nas pessoas”, nos amigos que deixou.
Rogério da Luz conta, por seu turno, como é difícil a separação da terra natal. Sempre que regressa sente algo de muito especial.
Apesar das alegrias se misturarem com algumas decepções, “o afecto persiste, pois no fundo o amor à terra não morre.” Acrescenta ainda que “apesar de ter de procurar o Farol da Guia ou o Monte da Penha de entre os prédios”, sente que está a “chegar a casa” quando do barco começa a avistar a cidade.

No Brasil ou em Portugal é através da Internet que são sedimentados e partilhados os laços profundos que os dois autores têm com Macau. Para Rogério da Luz a rede global serve para aliviar as saudades das gentes da diáspora”, mantendo a comunidade mais unida e mais consciente de si mesma.
João Botas também valoriza bastante este instrumento, mas salienta que a Internet não substitui o contacto directo com os espaços e com as pessoas. “A História, na essência humana, é feita de emoção”.
Rogério da Luz e João Botas são exemplos do que é possível fazer com um computador, boa vontade e muita dedicação. A nostalgia é o ponto de partida para projectos que acabam por reunir imagens e informações que dificilmente seria possível encontrar numa outra base de dados. São sítios onde se revivem os tempos em que o barulho das peças de mahjong soava mais alto do que o dos bate-estacas.