Uma terra começa com duas famílias

É um período frequentemente esquecido quer na historiografia ocidental, quer na chinesa. Macau não dava por este nome antes da chegada dos portugueses, mas a verdade é que desde o século XIV que a pequena península no Sul da China já era habitada. A documentação que existe é parca, mas suficiente para que os historiadores acreditem num passado com origens em Fujian

 

Eram apenas duas, mas atrás delas vieram mais quatro. Dois séculos antes de Jorge Álvares chegar à China, dois clãs oriundos de Fujian descobriram a pequena península que, mais tarde, viria a dar pelo nome de Macau. As famílias Sam e Ho fugiam às convulsões que se registaram por altura da transição da Dinastia Yuan para a Dinastia Ming.

Chegadas ao território foram, pouco tempo depois, seguidas no exemplo por outros quatro clãs – Hoi, Tcheong, Lam e Tchan, também eles oriundos de Fujian. A documentação recolhida aponta, porém, para algumas contradições em torno de quem terão sido os pioneiros. O historiador e professor Jorge Morbey explica que os documentos antigos da família Ho indicam que os clãs Tin, Pou, Lou e Kai já se tinham fixado no território.

A família Kai instalou-se na zona da Praia do Manduco, à entrada do Porto Interior. Os membros deste clã não eram agricultores; dedicavam-se à pesca e ao comércio, pelo que lhes seria conveniente a localização escolhida. Já as famílias Ho e Sam tinham a agricultura como modo de vida e optaram pela zona de Mong Ha, dando assim origem à aldeia com o mesmo nome, também referenciada com a denominação ‘Long T’in Tch’un’.

Na década de 1960, a investigadora e professora Ana Maria Amaro dedicou especial atenção àquela que terá sido a primeira zona habitada de Macau, a par da ocupação da Praia do Manduco. “Foi com base em dados recolhidos em muita tradição oral, que existia ainda na altura, que a professora Ana Maria Amaro desencadeou o processo de inventariação das primeiras famílias”, especifica Jorge Morbey.

A investigadora “teve a oportunidade de entrevistar alguns elementos entroncados nessas primeiras famílias”, detentores de registos que publicou no Boletim do Instituto Luís de Camões, nos anos 1960.

“A tradição oral não é propriamente algo muito firme, especialmente quando a história passou a ser investigada com base em documentação escrita”, ressalva Jorge Morbey. “Mas há razões para acreditar que essa tradição oral era fundada em documentação existente em ‘tchok pou’, os repositórios de arquivos das memórias das famílias”, acrescenta.

O professor da Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau encontrou, há alguns anos, um ‘tchok pou’ que lhe foi apresentado como pertencendo à família Ho. O achado aconteceu “nas traseiras de uma oficina de reparação de motociclos” na Avenida Coronel Mesquita. “O ‘tchok pou’ é uma espécie de altar em que se veneram os mortos e em que estão depositadas as pequenas tabuletas e inscrições, informações várias de gerações e gerações da mesma família.”

Jorge Morbey fotografou o ‘tchok pou’ que encontrou mas não pode afirmar que seja o original do séc. XIV, apesar dos séculos que aparenta ter. “Poderá ter sido a construção de um para substituir outro que já estaria em estado avançado de degradação.” De qualquer modo, trata-se de um repositório que é atribuído a uma das primeiras famílias que se fixaram em Macau, cuja genealogia anterior ao século XIV ainda é possível determinar no local de origem.

 

Da história à lenda

 

Ana Maria Amaro, nas conversas mantidas com descendentes dos primeiros clãs, teve também a oportunidade de ver documentação e objectos vários atribuídos aos antepassados pioneiros. Os estudos sobre esta época não abundam, uma “distracção” que, nota Jorge Morbey, se regista tanto na historiografia portuguesa, como na chinesa, onde é vulgar “referenciar o início de Macau com a chegada dos portugueses”.

Os dados que foi possível recolher levam os historiadores a acreditar que são os clãs de Fujian que dão início ao primeiro ciclo económico do território, o da agricultura e da pesca. “As zonas iniciais de Macau eram a agrícola em torno da antiga aldeia de Mong Ha e uma outra, piscatória, que é anterior, na região da praia do Manduco, que já funcionava como abrigo de pescadores que não estavam radicados em Macau mas que, quando as condições do tempo eram desfavoráveis, ali se abrigavam.” Em Mong Ha ainda é possível encontrar o primeiro templo da deusa Kun Iam, “um templo pequeno, muito curioso, que antecedeu em dois ou três séculos” um outro de maior envergadura que existe naquele local.

Vestígios históricos à parte, a origem da aldeia de Mong Ha deu origem a uma lenda que Luís Gonzaga Gomes registou na obra ‘Curiosidades de Macau Antiga’. O autor explica que, num “terreno árido e deserto nas poucas choças que ali, então, existiam,” viviam vários aldeões, na sua maioria dos clãs Sam e Ho, oriundos de Fujian, que formaram uma pequena povoação.

Mal se instalaram no povoado, continua Gonzaga Gomes, “trataram de edificar um pequeno santuário, o ‘Ho Si Tchok Tch’i’, que ainda hoje existe em bom estado de conservação nas vizinhanças da aldeia de Mong Ha, a fim de poderem ali render culto aos seus antepassados, não se poupando, também, os seus esforços para lavrar a terra circunjacente”. As diligências foram, no entanto, inúteis, que “o chão era maninho e nada mais produzia se não sarças e estevas”.

Assim sendo, os Sam e os Ho estavam prestes a abandonar a terra quando avistaram “no meio da gandara o rabo dum dragão vagabundo”. Um “rouco fragor” apavorou os aldeões e, ao mesmo tempo, um “tremendo abalo convulsionou o solo e uma coluna de negro vapor surgiu da terra”.

Resultado final da passagem do rabo do dragão: “o chavascal abaixara de forma a transformá-lo numa depressão bastante extensa, cuja terra se dessemelhava da primitiva, pois era negra e húmida”. Os habitantes de Mong Ha constataram, tempos depois, que era extremamente fértil. A influência do dragão está na origem da denominação ‘Long T’in Tch’un’ que, descodifica Gonzaga Gomes, significa a “aldeia das várzeas do dragão”.

Em: Curiosidades de Macau Antiga (ed. 1996 Instituto Cultural de Macau)

 

Recuar ainda mais

 

De regresso aos factos históricos, desde 1972 que se conhecem vestígios da passagem do Homem pelo território que datam do Neolítico. Os estudos feitos permitem perceber que houve duas fases distintas na pré-história de Macau: a primeira terá cerca de seis mil anos, sendo que a segunda terá acontecido sensivelmente dois mil anos depois, refere Jorge Morbey.

As investigações várias que foram sendo feitas desde então pela Sociedade de Arqueologia de Hong Kong permitiram descobrir, na ilha de Coloane, vestígios pertencentes a esses primeiros ‘habitantes’, alguns deles em exposição no Museu de Macau. Em 2006, a equipa da região vizinha encontrou indícios que a levam a acreditar na existência de uma habitação primitiva e de uma zona para armazenamento, o que faz do achado um local único em relação a escavações arqueológicas semelhantes na zona do Delta do Rio das Pérolas.

Não obstante as várias descobertas das últimas décadas e a qualidade da equipa que esteve em Macau a conduzir as operações, Jorge Morbey entende que o existe é “muito pouco” para que existam “indicações seguras se essas peças resultam de uma estadia transitória ou se, de facto, correspondem a um povoamento que foi continuado”.

Hoje em dia, “é muito difícil explorar esse período da história em termos arqueológicos”. A composição da cidade não ajuda à tarefa, dada a sua densidade demográfica e arquitectónica, salienta o historiador, pelo que, à excepção da ilha de Coloane, não é possível fazer escavações noutros pontos do território que permitam perceber o que foi feito destes ‘habitantes’ do Neolítico.

Assim, para a história fica a certeza de que há seis mil anos já havia gente por estas terras. E ficam também os registos que dão conta das primeiras famílias a escolherem viver em Macau, desde sempre local de abrigo de tempestades e outras intempéries.