A lição de Macau

Luís Filipe Rocha regressa a Macau nesta entrevista em que revê a sua adaptação ao cinema do clássico de Henrique Senna Fernandes (que o escritor desdenhou). Uma obra que recolhia uma época e uma sociedade únicas no mundo, e mais do que tudo, registava a capacidade de adaptação e sobrevivência dos portugueses
Luís Filipe Rocha,  realizador de Amor e Dedinhos de Pé: “Aprendi e cresci mais em    Macau do que em outras viagens”

O que é que encontrou na leitura de Senna Fernandes sobre a sociedade de Macau que o estimulou a realizar o que filme que realizou? Que sociedade macaense foi aquela que encontrou na obra de Senna Fernandes?

Em primeiro lugar, encontrei uma história romântica, numa época (final dos anos 80) em que a violência e o cinismo iniciavam o seu domínio, mantido e amplificado até hoje, nas narrativas cinematográficas.
Depois, encontrei a irresistível possibilidade de retratar uma sociedade única no mundo, como foi aquela que, durante séculos, portugueses, chineses e vários outros povos e culturas fundaram na cidade de Macau. É bom não esquecer que o encontro entre portugueses e chineses, ao longo de mais de quatrocentos anos, num pequeno enclave territorial da sub-periferia chinesa, foi muito mais rico e variegado do que se pensa: não apenas o oriente e o ocidente se encontraram e mutuamente conheceram, como vários ocidentes e orientes e vários nortes e suis se integraram e fundiram nesse encontro. A sociedade macaense que encontrei na obra do dr. Henrique Senna Fernandes é um corpo vivo e único, onde culturas e tradições civilizacionalmente diversas, em outros locais e tempos irremediavelmente antagónicas, encontraram uma forma especial de convivência e aceitação mútuas.

O que é que simboliza a personagem Francisco Frontaria (o Chico- Pé-Fede), que era um menino bem que a certa altura se transformou numa espécie de junkie refugiado nos meandros da cidade chinesa? Que elementos preferiu valorizar e que outros desvalorizou?
Não vejo nunca as personagens como símbolos, mas sim como seres imaginários que dão corpo e alma a vidas e aspirações, emoções e contradições que todos transportamos dentro de nós de forma fragmentada e nebulosa, e que raramente sintetizamos na imparável roda da vida. O Milan Kundera afirma: “A personagem não é uma simulação de um ser vivo. É um ser imaginário.” Eu acredito nessa definição e por isso não trato as personagens como símbolos, mas sim como retratos ficcionais, e por isso interessantes, de seres imaginários.

 

Que pedaço de Portugal é aquele que transparece naquele filme? Passados estes anos como é que olha para o Amor e Dedinhos de Pé? E como é que olha para o lugar de Macau, ou do Oriente, na produção e no imaginário cultural português?

O pedaço de Portugal que, no meu entender, mais profundamente nos caracterizou como povo, sempre que lográmos sair da “choldra”: cidadãos do mundo, escravos ou senhores, capazes do bem e do mal, mas sempre camaleonicamente aptos para sobreviver.
Olho para o meu filme Amor e Dedinhos de Pé como olho para todos os outros filmes que dirigi: foram todos feitos por um homem que, sendo sempre eu, não é exactamente o mesmo em cada um deles. Não creio que Macau e o Oriente ocupem algum lugar especial ou sequer relevante no nosso imaginário cultural nacional. O Oriente foi-nos sempre, e penso que continua a ser, longínquo cultural e civilizacionalmente. Não confundamos convivência com compreensão, nem aceitação pragmática e fazer pela vida com tolerância ou sequer curiosidade. Os portugueses nunca foram culturalmente apetrechados para a elegância e o refinamento morais que exigem a curiosidade e a tolerância humanas. O catolicismo imprime carácter, como dizem os espanhóis, e empequenita as pessoas, digo eu.

O facto de ter passado por Macau teve importância ou decidiu, de alguma forma, o sentido do seu trabalho? Existe um olhar determinado por essa passagem pela Ásia?
O que sei é que aprendi e cresci mais durante os seis anos que vivi em Macau, do que em qualquer outra viagem das várias que fiz ao longo da vida por terras e gentes diferentes. Penso que a minha disponibilidade e a minha sequiosa curiosidade por tudo o que é diferente de mim ajudaram também, por isso acredito que o meu contacto com o Oriente me enriqueceu e melhorou como ser humano. Se tal experiência de vida alterou o meu olhar como cineasta já não sei. Nem sempre o crescimento interior tem directa correspondência no indefinível processo criativo. E nunca o cinema foi para mim mais importante que a vida.

Há uma constante no seu trabalho, o da adaptação para cinema de romances de autores portugueses. O seu próximo trabalho enquadra-se nesta linha? Pode fornecer alguns pormenores?
A adaptação de romances de autores portugueses não é uma constante do meu trabalho: em dez filmes que realizei, apenas três são adaptações. Mesmo contabilizando mais duas adaptações que não concretizei em filmes, não se pode falar de uma constante.
O meu eventual próximo trabalho baseia-se num argumento original do Carlos Saboga sobre as invasões francesas.

 

“Amor e Dedinhos de Pé”  O FILME

Com “Amor e Dedinhos de Pé”, baseado no romance do macaense Henrique de Senna Fernandes, o cineasta português retrata um Macau do virar do século.

Francisco Frontaria (Joaquim de Almeida) é um bom-vivant de nome prestigiado, cuja ocupação é fazer correr o tempo agradavelmente. Depois de um primeiro encontro conturbado com Victorina Vidal (Ana Torrent), onde faz uso do seu típico sarcasmo para insultar a rapariga menos disputada de Macau, o destino inverte os papéis.
O “menino” Frontaria passa a ser  “persona non grata” e é agora afectado por uma estranha doença que lhe desfigura os pés e lhe provoca um cheiro nauseabundo. Victorina Vidal, assume o papel de estremada enfermeira, que não desiste de auxiliá-lo. Em circunstâncias muito diferentes, o caminho destes jovens volta a cruzar-se, e faz com que, juntos, descubram o amor. O filme acaba por ter um fim diferente do livro, numa tentativa de o tornar menos romanceado. O realizador não descura as tradições chinesas, como a luta de grilos, nem os cenários do Oriente e usa o cantonense em várias cenas do filme.
Uma sátira realista que marcou o seu regresso ao Novo Cinema e à sétima Arte.

Luís Filipe Rocha

Luís Filipe Rocha (Lisboa, 16 de Novembro de 1947) é um cineasta português, na linha do Novo Cinema, que explora as técnicas do cinema directo.
Licenciou-se em Direito, pela Universidade de Lisboa (1971). Por volta de 1963 integra o Cénico de Direito e aí trabalha como actor, assistente de direcção, dramaturgista, tradutor e produtor. Exila-se no Brasil em 1973, trabalhando no teatro com Izaías Almada.
Inicia em 1974 a sua actividade cinematográfica como assistente de realização e documentarista, sendo Barronhos – Quem Teve Medo do Poder Popular? (1976) o seu primeiro filme. Em 2003, A Passagem da Noite, protagonizado por Leonor Seixas, conquistou o Prémio de Melhor Filme e Argumento no Festival de Olympia (Pyrgos, Grécia). A Outra Margem (2006) é o seu último trabalho.

 

Filmografia

Barronhos – Quem Teve Medo do Poder Popular? (1976)
A Fuga (1977)
Cerromaior (1981)
Sinais de Vida (1984)
Amor e Dedinhos de Pé (1991)
Sinais de Fogo (1995)
Adeus Pai (1996)
Camarate (2000)
A Passagem da Noite (2003)
A Outra Margem (2006)

 

Prémios

Prémio Arco-Íris 2007 da Associação ILGA Portugal
pelo seu filme A Outra Margem