Os romances do senhor magistrado

Quando no início dos anos 90, Rodrigo Leal de Carvalho, então procurador-geral adjunto de Macau, publicou “Requiem por Irina Ostrakoff”, a surpresa foi geral. Por detrás da beca de magistrado nascia um contador de histórias

 

 

Texto Catarina Domingues

 

Rodrigo Leal de Carvalho dedicou a Macau 32 anos de trabalho e oito romances. A poucos dias da transferência regressou a Portugal, para integrar o Supremo Tribunal de Justiça. Hoje, à beira dos 80 anos, divide-se entre a Praia da Vitória, na Ilha Terceira, e breves passagens pelos Estados Unidos, onde visita a família e tenta fugir aos Invernos rigorosos açorianos. No silêncio de um dia-a-dia que considera monótono, escuta jazz dos anos 30 aos 50, cultiva hortênsias e dedica-se, com muitas queimaduras, à culinária. Desde que deixou Macau, onde também foi presidente do Tribunal de Contas, nunca mais regressou. É um risco voltar ao lugar onde se foi feliz, considera.

 

Trabalhou em Portugal, Angola, Guiné, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Macau. Por que razão só começou a escrever aqui e já com 60 anos?

Em boa verdade nunca deixei de escrever, só que eram peças de direito de pouco valor jurídico e nenhum literário. Mas a vivência em várias parcelas do então Império Português enriqueceu-me de experiências curiosas, interessantes e, por vezes, verdadeiramente dramáticas. Ficaram guardadas no meu arquivo sentimental à espera de melhor oportunidade. Esta surgiu quando já para o fim da carreira judiciária. Arranjei tempo para as pôr em letra de forma. Daí o recurso a histórias de tempos idos.

 

“Requiem por Irina Ostrakoff” caracteriza-se por doses irónicas sobre as várias comunidades em Macau, principalmente a portuguesa e macaense. Como é que a obra foi recebida na altura?

O sucesso do “Requiem por Irina Ostrakoff” foi para mim uma grata e inesperada surpresa, e devo confessá-lo, não muito justificável. Despertou porém o interesse e a curiosidade da população portuguesa, macaense e metropolitana. Provavelmente porque se tratava de uma história humana, de fácil leitura, abordando uma realidade constante da história de Macau, como o drama dos refugiados políticos e outros, retratando a cidade e as suas gentes. Algumas pretensamente conhecidas. Mas pretensão da exclusiva responsabilidade dos leitores, já que logo no início fora por mim rejeitada. Esse facto trouxe-me alguns dissabores que procurei emendar, garantindo a manifesta intenção de não magoar quem quer que fosse. Contudo, devo reconhecer que, ao nível modesto da produção editorial de Macau na altura, o romance foi um razoável sucesso.

 

Dissabores como por exemplo…

Reportam-se essencialmente à errónea identificação de personagens das histórias ou à atribuição de factos fictícios com personagens reais ou factos supostamente acontecidos. Não me interessa referi-los.

 

Esse livro conta a história de uma senhora russa, que com a queda do czarismo se refugiou em Macau. Cantou no Skylight e teve um caso amoroso com um macaense bem posicionado. A ficção ultrapassa a realidade?

As minhas histórias são desencadeadas por factos verídicos, notícias ou histórias que me foram contadas como tendo acontecido. Esse núcleo de facto tinha que ser depois desenvolvido de forma a servir a arquitectura da história, ou estória, se preferir, e daí o recurso à imaginação. Onde acaba uma e começa a outra, nem eu mesmo terei a certeza. O que é importante frisar é que todos elas contêm uma larga dose de imaginação, o que as torna apenas obras de ficção. Daí que, neste como nos outros livros, a imaginação foi sempre para além da realidade.

 

Descreve de forma triste a chegada de barco de Irina a Macau. Há aqui algo de auto-biográfico?

Não há paralelismo possível, salvo quanto ao aspecto urbanístico da cidade, que na década posterior à II Guerra Mundial não sofrera alteração significativa. As nossas chegadas foram dramaticamente diferentes. Irina chegava a Macau na situação dolorosa de refugiada apátrida, sem apoios, aterrorizada por um futuro negro. Eu vinha com uma situação assegurada de magistrado do Ministério Público, com um estatuto de algum modo privilegiado, e recebido carinhosamente por muitos amigos, alguns de tempos antigos e outros feitos depois. Tinha casa, viatura e motorista à espera e até uma empregada, a nossa fiel A-Kuan, que esteve connosco durante todas as minhas sucessivas comissões em Macau, que viu nascer os meus filhos e que ainda nos telefona no Natal e nos nossos aniversários. Tudo isso tornou as nossas estadias em Macau particularmente felizes.

 

No livro “Ao Serviço de Sua Majestade” um cadete britânico passa ao lado de um grande amor por uma macaense por uma questão de código social. Até que ponto foi difícil compatibilizar todo o código que envolvia a sua profissão e o conteúdo irónico das obras?

Não senti a menor dificuldade em conciliar quaisquer regras deontológicas da minha profissão com a visão irónica, crítica ou, como entenderam alguns, injustamente embora, sarcástica da minha narrativa. Em primeiro lugar porque enquanto escrevia despia a minha beca de magistrado. Não estava ali numa missão judicial de sancionamento legal, moral ou simplesmente social. Retratava os factos e as personagens o melhor que sabia e deixava ao leitor, o supremo juiz nesta instância, o encargo de julgar. E em segundo lugar porque não me pesou na consciência a existência de qualquer conflito entre a deontologia e o retratar da realidade, ainda que com as limitações próprias de um simples contador de histórias.

 

Após 32 anos e a poucos dias da transferência deixou Macau. Porquê?

Embora tivesse feito a maior parte da minha carreira de magistrado no então Ultramar Português, eu pertencia, aquando da transferência, aos quadros da Magistratura Portuguesa como juiz do Supremo Tribunal de Justiça em comissão de serviço em Macau. Daí que ao terminar a minha comissão, tivesse de regressar aos quadros desse tribunal. Poderia sem dúvida ter aguardado o momento histórico da transferência. Devo confessar que me custava vê-lo e preferi sair nas vésperas do facto.

 

Já cá esteve desde então?

Não.

 

Porquê?

Nem eu mesmo sei. Por um lado, a oportunidade não surgiu. Por outro, tenho uma espécie de relutância ou temor de desapontamento. Não por encontrar a cidade em pior estado, pois estou certo que até terá melhorado consideravelmente, mas por não encontrar a “minha Macau”, não apenas a cidade que eu conheci, mas principalmente as suas gentes, as minhas gentes, as que fizeram a Macau que eu amei; os amigos que, por razões da inexorável passagem do tempo, já se foram, ou por motivos diversos passaram a integrar a diáspora macaísta. Por outras palavras, receio procurar-me nas ruas pacatas da cidade cristã ou no bulício do bazar e não me encontrar. Não sei se já alguém o disse, mas penso que é um grave risco voltar-se ao lugar onde se foi feliz.

 

Mas continua a acompanhar a vida em Macau?

Pouco. Já jubilado, escolhi o ameno desterro da minha vila natal, hoje cidade da Praia da Vitória, onde nasci e nasceram os meus pais, avós, bisavós e anteriores. Entretenho-me a cultivar hortênsias e a dedicar-me, infelizmente com pouco sucesso, à culinária. Mas ainda assim, vou tendo algumas notícias através de amigos. Tenho visto por isso o espectacular desenvolvimento urbanístico de Macau. E devo dizê-lo “with mixed feelings”…

 

Voltando aos livros, como justifica a dificuldade de muitos autores portugueses de Macau em chegar a Portugal?

Como tive sempre o apoio da “Livros do Oriente”, não senti dificuldades na publicação. Diferente foi a distribuição dos livros de Macau em Portugal, restrita quase só à distribuição na Livraria do Centro Cultural e Turístico de Macau, a cargo da Delegação Comercial de Macau.

 

O cenário literário em Macau ficou agora mais pobre com a morte de Henrique de Senna Fernandes. Que memórias guardas do escritor?

O Henrique de Senna Fernandes foi das primeiras pessoas que conheci em Macau. Ele era, à altura, substituto nomeado do delegado do procurador da República, pelo que estava no cais da Ponte 16 à espera do “Tay Loy”, o ferry onde eu vinha. Deste contacto profissional e depois, por amena convivência, tornámo-nos amigos. Tínhamos, para além dos temas profissionais, interesses comuns: leituras, música, cinema, recordações das nossas infâncias em pequenas sociedades algo “fechadas”, Macau e os Açores nos anos 30 e 40, que nos davam temas para longos e amenos bate-papos. Através dele e da família, conheci gente e histórias de Macau. Era um romântico apaixonado pela sua cidade, pela sua família, próxima e mais remota. Permitir-me-ia dizer que era um produto ainda de um romantismo dos fins do século XIX transposto para os loucos anos do século XX. Que descanse em paz.

 

Tem oito obras publicadas, a última em 2007. Continua a escrever?

Não. Não excluo a possibilidade, remota sem dúvida, mas deixem-me esta tímida pretensão de voltar um dia a escrever, apesar de já estar a beirar os oitenta invernos.