Uma comunidade cheia de vida e tradição no Brasil

“Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa.” A frase de Fernando Pessoa, proclamada e expressa em sotaques e nuances diferentes tem um significado especial para a diáspora macaense em São Paulo. Os filhos da terra imigraram em massa para o Brasil em meados da década de 1960 e lá construíram novas raízes. Mas nunca esqueceram as suas origens

 

Comunidade Macaense

 

Texto Fernanda Ramone | Fotos Fabiano Zig, no Brasil

 

Impulsionados pela instabilidade política no período inicial da Revolução Cultural (1966), deflagrada no Interior da China, muitos macaenses emigraram. Entre os países eleitos, figuravam Estados Unidos, Canadá, Austrália e Brasil. O grupo destes filhos da terra que rumaram à terra brasilis concentraram-se na sua maioria na cidade de São Paulo. Há ainda outros dois grupos menores, um no Rio de Janeiro e outro no Paraná, num total estimado de 300 pessoas em todo o país.

As histórias que envolvem o trajecto da viagem até o Brasil reúnem situações dignas das epopeias ultramarinas registadas outrora pelos ancestrais portugueses. Como a relatada pelo ex-jogador olímpico de hóquei João Bosco Quevedo da Silva, que juntamente com a mulher e a filha levou 48 dias a bordo de um navio. Enfrentaram os contratempos causados pela Guerra dos Sete Dias, o bloqueio do Canal de Suez e tentativas falhadas de entrar em distintos portos via África. Finalmente chegaram a São Paulo e desde então 45 anos se passaram. Tempo suficiente para ter fundado uma equipa campeã invicta de hóquei em campo no Brasil.

O elo de pertencimento, convívio e união entre os macaenses não se limita apenas ao desporto. A comunidade reúne-se com data e hora marcada frequentes na sede da Associação Casa de Macau, no extremo da zona sul da cidade de São Paulo. Uma construção estonteante em estilo colonial, conquistada graças ao reconhecimento oficial da Fundação Oriente, e que desde 1992 serve de ponto de encontro. Mas nem sempre foi assim. Um dos veteranos, Roberto Quevedo da Silva, de 83 anos, ainda recorda o primeiro encontro organizado informalmente no final da década de 1980 num espaço localizado no bairro da Liberdade, reduto da comunidade oriental em São Paulo, que reuniu cerca de 500 macaenses.

Nestas reuniões, memórias e histórias são postas à mesa acompanhadas de pratos típicos e músicas tradicionais. Trata-se do som dos que emigram, a melodia das mesmas notas que ao longo do tempo ganharam outras tantas versões, mas continuam sempre a tocar fundo. Neste sentido, é Canicha, como é conhecido Carlos Santos, quem geralmente alegra os encontros com performances musicais. O repertório apresenta inclusive uma canção composta especialmente para a Casa de Macau em São Paulo.

 

Ano novo chinês ou Carnaval?

Reunidos em pleno domingo de Carnaval, numa São Paulo embalada por blocos carnavalescos de rua, estavam os macaenses impecavelmente aprumados para celebrar o Ano Novo Chinês. A sede foi toda decorada com lanternas vermelhas com mesas a condizer recheadas de pratos típicos. Em comum as datas – o Carnaval e o Ano Novo Chinês – concentram em si o conceito da renovação, o rito da passagem para o ano que de facto terá início em ambos os países a partir de então.

Os símbolos da importância da presença desta comunidade na cidade despontam antes mesmo de se chegar à sede. A placa da entrada da pequena vila próxima a represa de Guarapiranga estampa o nome de Praça dos Macaenses. Quem por ali frequenta conhece tanto a praça, a sede, como um ou outro destes personagens oriundos de uma terra tão distante de heranças culturais tão próximas.  Brasileiros e macaenses entendem que são ambos frutos da mestiçagem de uma  mesma raiz lusa.

A identificação, esta de poder se reconhecer no outro, é uma extensão das próprias referências quase remotas dos antepassados. Há entretanto e todavia latente outro tipo de identificação, a que permite reconhecer o outro através dele próprio. Isto porque muitos destes macaenses são capazes ainda hoje de discorrer todo o percurso genealógico graças aos nomes de família que carregam. “É por conta de Macau ser pequenina”, garantem.

 

Vasto mundo

“Mundo mundo vasto mundo; Mais vasto é meu coração.” Talvez pairem mesmo nestes versos do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade uma certa explicação para compreender, ao menos parcialmente, a profusão de tamanha vastidão que os macaenses trazem no peito.

Conservam total apreço pelas festividades, pela prosa e pela boa mesa. Estes elementos por si só já serviriam para preencher o enredo da animação deste almoço comemorativo. No menu constavam ainda encenações teatrais, música, concurso da senhora com melhor traje típico, da mais elegante e previsões zodiacais concernentes ao ano da serpente. Ao que tudo indica será um ano inusitado, imprevisível.

As generalizações costumam ter excepções. No caso desta comunidade macaense em São Paulo, parece haver uma regra aplicável a todos que impera uníssona, o estranhamento frente ao desenvolvimento. A terra deixada sobrevive apenas nas lembranças. O tempo levou o que havia da terra que mais parecia uma aldeia, mas sempre de características internacionais – Macau sempre atraiu grandes fluxos e movimentações. Em largos campos vazios, instauraram-se abóbodas romanas que decoram os canais de Veneza do hotel Venetian, como um pequeno exemplo do frenesim do rápido desenvolvimento da região.

O território que aos poucos se habituou aos superlativos e superou Los Angeles em termos de receitas do jogo em nada se assemelha ao lugar que outrora serviu de lar desta comunidade. Ainda assim, as saudades são muitas e com frequência os macaenses e os seus descendentes fazem o caminho inverso ao que um dia enfrentaram até ao Brasil chegar. Voltam a Macau, o voltar que quase sempre é partir para um outro lugar.  Regressam todos, menos o tempo. Este senhor imperioso que tende a abrandar saudades, trazer felicidades e germinar frutos, como as novas gerações compostas com filhos e netos brasileiros.

Todos dizem-se muito adaptados ao Brasil e conseguiram conciliar as suas tradições com a cultura local. No entanto, entre os mais sensíveis no que tange a questão da adaptação encontramos a directora cultural da associação, Iolanda da Luz Ramos. Nem os mais de 40 anos vividos no Brasil foram suficientes para amenizar a dor da distância, o sofrimento da partida. Partiu contrariada, seguindo a família com dois filhos ainda bebés e, diferentemente da maioria dos seus conterrâneos, enfrentou dificuldades para se sentir integrada em território tupiniquim.

Há tempos canta. Iolanda organiza um coral formado por 15 pessoas. No repertório espanta os males em canções portuguesas, chinesas, em patuá e até músicas brasileiras, como Aquarela do Brasil. E mesmo cantando o país em seus versos, a entonação patriótica da letra não reverbera com o mesmo entusiasmo de quando conta uma das suas muitas histórias em Macau.

Sentada na outra extremidade do grande salão e sem compartilhar da mesma melancolia da amiga, Mariazinha Carvalho, como é conhecida esta senhora animada de 77 anos, relata com entusiasmo adorar o Brasil. Ao todo colecciona cinco décadas de São Paulo. Mariazinha integra a comissão organizadora da associação, actuava e escrevia peças de teatro patuá. Curiosamente o nome da sua obra de maior destaque configura-se justamente no elemento que possibilitou estas deslocações além mar, O Passaporte.

 

Presentes no tempo e no espaço

A tradição desempenha um papel importante tanto na cultura como na sua preservação. Em se tratando da comunidade macaense, a gastronomia desempenha um papel de relevância em especial quando o país que os acolheu apresenta uma mesma herança na sua formação.

As novas gerações formadas pelos filhos e netos destes imigrantes pouco frequentam a Casa de Macau. A presença maioritária é composta por membros onde os mais jovens já passaram da meia idade. Quando indagados sobre qual o futuro da tradição macaense ou da associação não arriscam nas projecções. Enfatizam a importância desempenhada pela sede ao longo destes 23 anos, citando as dificuldades em reunir o grupo numa cidade com as extensões geográficas de São Paulo, cujas distâncias entre regiões podem variar em até 50 quilómetros.

As distâncias, tanto as geográficas como a de tentar atrair os jovens herdeiros a conviverem com esta dinâmica de preservar as tradições e actividades da Casa de Macau, são encaradas como exequíveis para o presidente, Gilberto Quevedo da Silva. Entusiasta, foi ele quem costurou os diálogos entre as partes, empenho que concatenou na concretização da sede. Anfitrião nato, circula o tempo todo entre convidados certificando-se de cada detalhe.

Vislumbra que a nova geração possa dar continuidade ao trabalho de preservação da cultura até hoje mantidos. Entre os poucos jovens da nova geração, está Adriana Luiz. É ela quem ao lado do pai, o macaense João Ernesto Luiz, relata grandes histórias das viagens feitas à nova Macau.

O interesse por Macau ultrapassa as fronteiras hereditárias, como é o caso de Vânia Pinto Coelho Reis, brasileira, que se debruçou na obra de Rodrigo Leal de Carvalho para a sua tese de mestrado. O estudo propõe uma análise do quotidiano a partir dos relatos deste escritor português que passou grande parte de sua vida em Macau. A tese de mestrado virou livro premiado, e trouxe o universo macaense para a vida desta mineira de Ouro Preto.

As raízes que estes macaenses trouxeram à superfície e ao contexto brasileiro afloraram, propondo novos caminhos, como o da nova miscigenação. Fizeram-se presentes no tempo e no espaço, concretizando e perpetuando as suas raízes no chão, acessível também aos nossos pés, por entre tantas jornadas. Há tempos desabrocharam, trouxeram novas vidas. Outras se foram. Parecem ter atingido o período mais bonito da vida, aquele onde se soma à sabedoria. E celebram.