Do bule de chá para motor da economia

Começaram a chegar no século XIX vindos sobretudo de Macau para preencher a lacuna deixada pela abolição da escravatura no Brasil. Os primeiros chineses a chegar ao Brasil eram mão-de-obra barata para o sector agrícola e tinham a missão de introduzir o chá no país. Hoje, passados 200 anos, a comunidade chinesa não só está bem estabelecida e integrada, mas também funciona como um pequeno motor na economia brasileira

 

Brazilians rehearse the Dragon dance for

 

Texto Fernanda Ramone e Vanessa Amaro, no Brasil

 

O deslocamento migratório da andorinha, esta pequena ave que pode ser encontrada tanto no campo como em áreas urbanas em seus ninhos sob os beirais de edifícios ou locais semelhantes, normalmente em colónias, apresentam paralelismo notável com os movimentos migratórios e hábitos dos chineses no Brasil. A máxima de que uma andorinha só não faz verão, pode ser aplicada à dinâmica de agrupamento dos imigrantes chineses, que activam a sua rede de conhecidos antes de alçar voos. Uma vez instalados no destino, unem-se como família e tratam de reproduzir hábitos, costumes e manter a tradição chinesa arraigada dentro de casa.

Em São Paulo, cidade com a maior comunidade chinesa no Brasil, uma pequena fortaleza de protecção à tradição da cultura chinesa ergueu-se num bairro de semântica livre, a Liberdade – região previamente eleita para ser o reduto dos japoneses. Japoneses, chineses e mais recentemente coreanos apoderaram-se de toda a semântica, criando da Liberdade a sua capital. O nome do bairro vem do ditado japonês Sumeba miyako, que quer dizer “independente do lugar em que se vive, você vai vir a amá-lo”.

Num estudo sobre a imigração chinesa no Brasil, o historiador Silvio Cezar de Souza Lima, frisa que no início do século XIX os usos e os costumes dos brasileiros da altura aproximavam-se muito mais da Ásia do que da Europa. “Plantas e animais do Oriente tropical e subtropical foram transplantados para o Brasil, dada a semelhança de climas. Foi esta mentalidade que propiciou a contratação de centenas de chineses para o plantio de chá no Jardim Botânico do Rio de Janeiro, no início do século XIX. Trazidos por ordem de D. João VI, os chineses teriam como tarefa aclimatar a valiosa planta em terras brasileiras. O chá era um dos principais produtos de comércio no Ocidente, plantá-lo no Brasil aumentaria os lucros da Coroa Portuguesa”, defende o académico.

Os planos para produzir chá entretanto fracassaram e os chineses pararam de rumar ao Brasil. Ainda assim, eram considerados excelentes agricultores e uma alternativa viável para a escravidão. “As elites amedrontadas pelo fantasma da revolução do Haiti começavam a preocupar-se com o crescente número de negros cativos e libertos que habitavam o país. Neste contexto o chinês era cogitado como uma boa alternativa de imigrante”, explica Souza de Lima.

O cenário mudou de figura e na última década do Império português, em 1870, entrou em acção um forte sentimento anti-chinês. Os abolicionistas da escravatura viam os chineses levados de Macau e do Sul da China como uma nova versão de escravos, e iniciaram uma campanha internacional agressiva para impedir a imigração asiática. Em 1883, a Sociedade Central de Imigração foi criada para impulsionar a imigração europeia, sempre a atacar a presença chinesa.

Só mais tarde, em Agosto de 1900 e já sob a protecção de um decreto-lei da imigração asiática no Brasil, registou-se oficialmente a imigração chinesa, longe dos moldes da escravatura. Eram 107 chineses de Macau, que viajaram por quase três meses desde o Sul da China, parando em Lisboa, e chegando ao Rio de Janeiro para depois estabelecerem raízes em São Paulo. Contudo, o grande fluxo da imigração chinesa deu-se a partir da década 1950, com milhares a fugir da Revolução Cultural.

 

Apanhador de sonhos

A Liberdade ficou pequena para agrupar os cerca de 130 mil chineses e descendentes em São Paulo – o número total estimado da comunidade no Brasil é de 200 mil pessoas. Outras regiões da cidade, como a Rua 25 de Março, reduto das infindáveis lojinhas e do comércio chinês que atrai consumidores de todo o Brasil, foram adicionadas ao perímetro da cidade associado pela presença marcante da comunidade chinesa. A rua acabou virando nome de filme, o curta-metragem intitulado 25, da jovem cineasta Vera Egito, que teve dois curtas-metragens seleccionados para a 62.ª edição do Festival de Cannes.

O enredo de 25 ganhou proporções maiores do que as previstas. A ideia inicial era retratar os conflitos típicos no relacionamento entre adolescentes e os seus pais, definiu-se posteriormente que o núcleo seria uma família chinesa. A família em questão é a de Bob Wei, que juntamente com os seus pais e um irmão trocou o sul da China pelo Brasil, e, entre os itens da bagagem, trouxe a tradição do kung fu. Bob é um dos responsáveis pelo Centro de Cultura Chinesa, em São Paulo. No filme, interpretou um adolescente em combate. Um embate do choque cultural da obediência típica chinesa dedicada aos pais em detrimento a um ambiente que o rodeia, onde a manifestação individual é instigada e esperada a todo tempo.

A luta maior foi para superar o desfecho do filme. O assassinato do pai que reagiu a um assalto retratado no filme parece ter sido um ensaio para o que viria a acontecer um ano após as gravações. A vida imitou a arte. O apanhador de sonhos, no caso o senhor Wei, contribuiu para que as distâncias entre as culturas sino-brasileiras diminuíssem um bocado, o centro onde ensinava kung fu, oferece ainda cursos de mandarim, caligrafia, arte e cultura chinesa. Apanhador de sonhos é também a banda sonora do filme, cantada em mandarim por Erika Gao, uma huaqiao (termo usado em chinês para definir os descendentes de chineses).

 

Perfil ajustado à realidade

A imagem dos integrantes da comunidade chinesa outrora associada ao ofício de mascates (tibao) e a actividades de pouca qualificação e parcos rendimentos também ficou retrógrado e reduzido. O perfil dos chineses no Brasil mudou, acompanhando as benesses do desenvolvimento das relações sino-brasileiras.  Na esfera comercial, a China encerrou o ano de 2012 como maior parceiro comercial do Brasil, o país asiático também mantém o posto de maior destino das exportações nacionais.

No âmbito da cooperação académica, com o advento do programa “Ciência sem Fronteira” a promoção destes laços será intensificada com o envio de até 5000 estudantes brasileiros para a China, bem com o fluxo inverso, o de receber alunos chineses. No que tange à cooperação tecnológica, o programa Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres (CBERS) para a construção de satélites de sensoriamento remoto segue de vento e popa.

Com a mudança do perfil dos chineses, houve também a mudança de endereço. Camuflaram-se pela cidade, deixaram os ninhos-colónias, bateram asas e promoveram deslocamentos pelos mais variados distritos, vieram as novas gerações, os casos de casamentos com brasileiros. E mesmo mais integrados e desenvoltos neste contexto de miscigenação característico, a tradição da cultura chinesa é fortemente preservada.

Os costumes e referências culturais chinesas herdados desde a época do Brasil colonial, graças à presença da família real portuguesa, trouxeram bens que vão além das porcelanas, sedas, pratarias e especiarias. Incluem pagodes que chamamos de coretos, o carinho em forma de cheiro em detrimento ao beijo, em especial no nordeste brasileiro, o hábito da sombrinha para proteger-se do sol, a cultura do cordel, do repente, e sobretudo os efeitos hierárquicos da sociedade patriarcal – entre tantos outros elementos que compõem e são reproduzidos em geral dentro da sociedade brasileira sem a consciência de sua origem chinesa. As influências, tanto as da época colonial assim como as contemporâneas se mesclam todas nesse universo brasileiro inclassificável.

As contribuições da comunidade chinesa ao longo destes últimos 200 anos estão à vista no Brasil. Além de restaurantes típicos, os chineses trouxeram a técnica da acupunctura, as artes marciais, o horóscopo chinês, a contribuição no campo da medicina e incorporaram os fogos de artifício na cultura brasileira.

 

Interacção de múltiplos mundos

Em matéria de interagir com as diferenças socioculturais no eixo oriente-ocidente, Chiu Yi Chih pode ser considerado um dos exemplos mais notórios. Este chinês de origem taiwanesa, que já morou em Hong Kong e Macau, e desde os cinco anos está radicado no Brasil, é mestre em filosofia por uma das mais respeitadas universidades do Brasil, a Universidade de São Paulo. Chiu é polivalente. É autor de diversos ensaios, estudos e do reconhecido livro Naufrágios. Ainda ministra cursos de filosofia e arte contemporânea no Instituto Mandarim Yuan De, é performer e em parceria com o escultor Irael Luziano está à frente do LOZ-2962 Studio.

Dentro da sua sensibilidade era preciso mais do que a força das palavras para promover a interacção dos universos orientais e ocidentais que lhe são familiares. Durante o processo de pesquisa e criação das suas performances, desenvolveu o conceito de metacorporiedade, uma tentativa de reverberar com maior intensidade a sua fala através dos estímulos de todos os sentidos, as suas poesias ganharam formas de esculturas e outras texturas.

Com o seu conceito de Philomundos, conseguiu genuinamente transpor em palavras os sentidos destes chineses que há pouco mais de 200 anos se deslocaram do sul para o sul, rumo a um destino e um futuro incerto. As estórias destes chineses desde então integram histórias contadas em dias que são noites dentro desta vastidão fuso-geográfica que separa um lado do outro. Unem-se no inusitado, como no facto do novo representante da nova poesia brasileira ser um chinês radicado.

“Philomúndico, amante do mundo, porque sua condição ontológica é imersão, naufrágio, estado de quem imerge nas profundezas das interconexões e se entrega afectuosamente ao mundo e à vastidão dos seres que nele habitam. É o estado de estar susceptível aos diversos mundos que nos atravessam”, escreve Chiu.

 

Atracção em tempos modernos

O Brasil continua a ser visto pelos chineses como um eldorado cheio de oportunidades de crescimento. Aliás, melhorar de vida é obsessão para os chineses, que assim que chegam ao país fazem questão de ter o máximo possível de números 8 no telefone e matrículas de carro – o numeral tem o mesmo som da palavra prosperidade em chinês. A presidente da Associação Chinesa do Brasil, Heida Li, acredita que a imigração chinesa deverá ser mais expressiva num futuro não muito longínquo. “Há muitos chineses que vivem cá e vão à China regularmente para fazer negócios e contam como é a vida no Brasil. Falam com a família e com amigos e dizem que há muitas oportunidades. Isso cria expectativas e aumenta a atractividade do Brasil”, explica Heida.

Os números já comprovam um aumento significativo desta comunidade. Em 2011, o Brasil tinha 34.653 chineses regularizados, um aumento de quase 22 por cento se comparado com os 28.500 de 2009. Há ainda por contabilizar um grande número de imigrantes ilegais, que chegam ao país com visto de turista e permanecem para além do prazo legal. Só para se ter uma ideia, dos 45 mil imigrantes ilegais abrangidos pela lei da amnistia de 2009, quase 50 por cento era de nacionalidade chinesa.

A maioria chega a São Paulo com um emprego já garantido, geralmente em negócios de conhecidos da família, e têm como origem a Província de Guangdong. Para responder aos milhares de pedidos de vistos por parte dos chineses do sul da China, um consulado brasileiro abriu portas em Cantão, em 2011.

Para os que chegam de Guangdong, a adaptação pode levar mais tempo. A comunicação com a comunidade mais antiga, que maioritariamente fala apenas mandarim e português, não ajuda na integração destes novos imigrantes, que acabam por estabelecer redes fechadas com conterrâneos. E apesar de serem sobretudo budistas, há já muitos chineses convertidos para outras religiões, como o catolicismo. Thomas Xiao, por exemplo, reza missas em mandarim todos os domingos na zona sul da cidade, e está aberto a dar apoio aos recém-chegados de Guangdong.

 

Geração de luta

Yim King Po chegou ao Brasil de navio, aos nove anos, depois de quase dois meses a viajar desde Hong Kong. Tinha 13 anos quando o pai morreu e precisou assumir as contas de casa a vender roupa de cama chinesa de porta-em-porta. Yim é um dos 200 mil chineses que deram a volta ao globo e fizeram a vida no Brasil. Hoje, aos 53 anos, o chinês joga golfe com a alta sociedade de São Paulo, onde está concentrada cerca de 80 por cento da comunidade chinesa do Brasil. Depois de ter estudado engenharia na Universidade de São Paulo, Yim experimentou-se como empresário em várias áreas até criar a YKP, empresa que fornece sistemas de software para empresas como a farmacêutica Merck ou a Toyota, emprega mais de 300 pessoas e factura acima dos 24 milhões de dólares por ano.

O chinês de Hong Kong diz que a vida não foi fácil, mas para quem trabalha é possível chegar longe “num país cheio de oportunidades e que tem sempre a porta aberta para as diferenças culturais.” A nova geração de chineses no Brasil conseguiu ultrapassar o estereótipo de importadores de produtos de baixa qualidade e donos de estabelecimentos onde se vende de tudo um pouco para assumirem papéis relevantes na sociedade. São empresários, médicos, advogados, engenheiros, economistas, arquitectos. Há de tudo um pouco. “A China transformou-se no maior produtor de manufacturas do mundo e isso trouxe oportunidades para os imigrantes chineses no mundo todo”, justifica Fernando Ou, presidente da Câmara Brasil-China de Desenvolvimento Econômico (CBCDE).

O sucesso neste eldorado latino não apareceu à toa. A forte preocupação das famílias chinesas com a educação dos filhos levou a segunda geração de chineses no Brasil a competirem com folga por vagas nas melhores universidades do país. Antes, o posto de “papa-tudo” era ocupado pelos japoneses, conhecidos no Brasil pela memória apurada e sabedoria nos cálculos matemáticos. Pih, por exemplo, nasceu em Xangai e chegou ao Brasil com oito anos. De família abastada, o pai adquiriu uma frota de camiões e depois aventurou-se na área da produção de farinha de trigo. O filho estudou numa universidade brasileira de topo, doutorou-se nos Estados Unidos, mas regressou a São Paulo para continuar com o império da família.

Alguns nomes famosos na área dos negócios já se dizem em mandarim. É o caso de Shan Ban Shun, que fundou uma empresa ligada às carnes de frango e porco e lacticínios, e mais tarde passou a dominar o sector nacional das carnes, ao tornar-se um dos maiores accionistas individuais da BR Foods.

 

Intercâmbio cultural

Ao calendário, os brasileiros adicionaram as comemorações do Ano Novo chinês, à gastronomia o sabor da massa de ovos frita. Do sincretismo religioso maioritariamente católico há também espaço para o budismo, para o templo chinês. Kung fu, tofu e tai chi. E Zizao na defesa do maior clube de futebol, o Corinthians de São Paulo.

A fonética dos sons chineses e a caligrafia dos caracteres acoplam-se sob o status de novos vocábulos do idioma português, ampliar o léxico consiste apenas em matricular-se num dos tantos cursos de mandarim mais próximo do freguês. Ou ampliar a vivência em um dos Institutos Confúcio. O localizado na UNESP entre o quadro de funcionários conta com a presença das recém-formadas Shiyuan Tian e Liao Si. Ambas vieram ao Brasil há quase dois anos para ensinar o mandarim e aperfeiçoar o nível de português, do país conheciam apenas o futebol. Apontam o jeito extrovertido, a proximidade em fazerem-se amigos, a exuberância natural do país e a liberdade como factores positivos que amenizam as eventuais diferenças de adaptação. A vertente gastronómica, cheia de fusões multiculturais, está no topo.

Os imigrantes chineses no Brasil vêem a desenvoltura no português como factor essencial para quem quer vencer. Os recém-chegados aprendem rápido sem frequentar nenhuma escola, geralmente passam o conhecimento de boca-em-boca com aquilo que vão aprendendo no dia-a-dia. Ainda assim, mantêm tradições chinesas, lêem jornais locais em mandarim e gostam de se manter mais próximos de pessoas com as mesmas raízes. No entanto, há sempre espaço para intercâmbios culturais.

O pastel de feira – uma massa estaladiça frita com recheios que vão do simples queijo ao palmito e o doce-de-leite – é uma invenção chinesa com milhões de consumidores no país. Na década de 1960, por exemplo, a maioria das casas e bancas de pastéis pertenciam a chineses. A acupunctura também chegou ao país através deles, e hoje é um especialidade reconhecida na lei. Até já foi reinventada pela medicina veterinária e actualmente há dezenas de clínicas especializadas por espetar as agulhas em animais de estimação. Há centenas de escolas a ensinar a medicina tradicional chinesa em todo o país, sem contar as associações que se dedicam à prática de kung-fu e tai-chi, com milhares de adeptos de todas as cores e idades. A cozinha brasileira ganhou novos toques, com o uso de cogumelos típicos chineses ou o já popular queijo de soja, ou tofu.

Até no tão aclamado futebol brasileiro pelo menos um chinês já caiu nas graças. Chen Zizao, de 25 anos, natural de Guangdong, foi contratado pela maior equipa brasileira, o Corinthians de São Paulo, em 2012, e recebeu a camisola de número 200, em comemoração do bicentenário da imigração chinesa no Brasil. Zizao já gravou anúncios para a televisão e é um expoente máximo de como no Brasil basta querer para vencer.