O Bairro da Horta da Mitra

A cidade de Macau tem partes que nos esquecemos durante anos da sua existência, pois não há motivos para lá ir. Se nalguns casos, quando lá voltamos as mudanças são enormes, outras há que, mesmo num tempo de rápidas transformações, as encontramos na mesma. É o caso da zona da Horta da Mitra, conhecida por Cheoc Chai Un, que significa Jardim dos Passarinhos

 

1 Mercado Mitra

 

Texto e fotos José Simões Morais

 

Espraiando-se pela encosta Noroeste da Colina de S. Januário, evoluiu de um terreno árido para um campo arborizado e de cultivo dentro da cidade cristã, tornando-se, após desfeita a muralha, num bairro do centro de Macau. Tem como limites a Sul os edifícios fronteiros ao Jardim de S. Francisco, para Oeste a Rua do Campo, para Leste a Rua Nova à Guia (em chinês Pák T’âu Sán Kâi, isto é, Rua Nova dos Cabeças Brancas), e a Norte a Rua Ferreira do Amaral e a Calçada do Gaio.

É em torno do mercado municipal que um conjunto de lojas comerciais e tendas abastecem os residentes. Também uma série de restaurantes em rotação de horários, sem fechar à noite e com o raiar da aurora iniciando o dim sum, traz um contínuo movimento pedonal ao bairro. Zona tranquila devido ao diminuto número de veículos, que aí circulam apenas para fazerem descargas de mercadorias, é também passagem pela Rua da Surpresa para, pelas escadas ou elevador, se chegar ao hospital da cidade no cume da colina que lhe dá o nome. O dinamismo dos habitantes presencia-se sobretudo na festividade do Duplo 2, aniversário do deus local Tou Tei, quando durante cinco dias um toldo cobre toda a Rua Tomás da Rosa onde fica instalada a plateia e com grande entusiasmo, a população vem assistir às actuações de famosas companhias de Ópera Yue, da Província de Guangdong. Se a estrutura de bambu montada em frente ao Templo da Felicidade e da Virtude (Fok Tak Chi) exige habilidade na construção, estranho é o esquecimento votado ao outro templo do bairro dedicado a Lou Pan, o grande mestre artífice do trabalhar com materiais de construção.

Quando aí vivíamos, acordávamos ao som das crianças a memorizar em cantata na aula de inglês da Morrison Elementary School, que funcionou entre 1988 e 2005 contígua ao prédio onde habitávamos. O edifício de 1966 era onde desde 1918 estava instalada a escola anglicana Choi Ko e foi o primeiro jardim infantil de Macau. Serve agora como igreja, aí instalada desde 1906 e aos fins-de-semana e férias como lugar de ocupação dos tempos livres para as crianças. De referir que Choi Ko foi o primeiro chinês baptizado pelo reverendo Dr. Robert Morrison, este conhecido por ter sido quem fez a primeira tradução da Bíblia para chinês. Outro estabelecimento de ensino que existiu no bairro foi o pequeno mas elegante Colégio Católico Príncipe D. Carlos, a primeira escola luso-chinesa de Macau.

As nossas recordações traziam ainda um contínuo chou sân (bom dia) a todos os vizinhos com que diariamente nos cruzávamos, transmitindo o familiar viver do bairro em cujo interior eram muitas as casas térreas e de dois andares e, apesar das ruas estreitas, havia céu.

Na freguesia da Sé, tem a designação de Horta da Mitra “o bairro mais ou menos limitado pela Rua do Noronha e por parte das ruas de Henrique de Macedo, de Tomás da Rosa, Horta e Costa, da Colina e Nova à Guia. Ficam situadas dentro deste bairro as ruas da Cal, da Mitra, da Surpresa, de Dezoito de Dezembro, parte das ruas de Tomás da Rosa e de Henrique de Macedo, as travessas do Mercado Municipal e de S. João, bem como o Largo do Mercado Municipal e o Mercado da Horta da Mitra”. Assim está escrito no “Cadastro das vias Públicas e Outros Lugares da Cidade de Macau” de 1993.

 

Localização do forte de S. João

Após o ataque dos holandeses de 1622 foi construída em taipa a muralha, concluída em 1626, dividindo a meio a península de Macau e que separou o terreno da Horta da Mitra anteriormente unido ao do Jardim dos Holandeses, ou Hó Lán Ün. O bairro da Horta da Mitra ficava dentro da cidade cristã. Na muralha existiam duas portas, a do Campo e a de Santo António, e os fortes de S. João e de S. Jerónimo, fazendo a fortaleza de S. Paulo a união entre a zona poente e a da nascente.

O padre jesuíta José Montanha, na obra Aparatos para a História do Bispado de Macau, numa referência à muralha, diz-nos que do terceiro baluarte da Fortaleza de S. Paulo do Monte “corre outro pano de muro para a parte de leste pegado ao Baluarte, aonde está o sino, aonde tem um postigo para o Campo, e andando para o pano do muro a tiro de mosquete está a porta que vai para o Campo de S. Lázaro, e desta porta andando pelo muro a tiro de mosquete está um baluarte com duas peças de ferro de 10 libras”. Este baluarte era o de S. João, apesar de em 1638 Marco d’Avalo dizer ter “três canhões ali montados, próximo da porta de terra chamada S. Lázaro”. Continuando com o padre Montanha: “Após um surto de peste bubónica, que teve origem nas habitações existentes próximo do baluarte, no ano de 1895, foram queimadas as barracas com todos os haveres, e seguidamente construídas e alinhadas as ruas. Foi, então, desmantelado esse baluarte de S. João, que ficava no cruzamento da Travessa de S. João com a Rua da Colina” e as ruas da Surpresa e da Cal. Pelo padre Benjamim Videira Pires sabemos que a Porta do Campo, também conhecida como Porta S. João, ou de S. Lázaro, ficava situada na junção das ruas do Campo e da Ferreira do Amaral com a da Colina. A muralha circundava a Norte e Leste o bairro da Horta da Mitra, que ficava a oriente da porta do Campo e do outro lado, já fora da cidade, a povoação de S. Lázaro.

Devido ao bom posicionamento da Horta da Mitra, no sopé da colina de S. Jerónimo, hoje conhecida por S. Januário, serviria de horta até ao plano baixo, onde um carreiro era o limite também de outro monte, o de S. Paulo. Nesse terreno haveria casas ligadas com o cultivo de vegetais, contando com as águas de um pequeno lago para a rega. Já a Rua do Campo, entre colinas, foi-se fazendo sobre um natural trilho de passagem, que seguindo para fora da cidade, levava às outras povoações da península de Macau. Com o tempo tornou-se uma via importante e após a muralha destruída, tornou-se uma rua de comércio.

A Horta da Mitra, após o derrube da muralha, passou a ter a Norte desde 1898 a ampla Alameda Vasco da Gama, desaparecida em 1935, enquanto para Sul estava limitada com os terrenos do Mosteiro de Sta. Clara (construído em 1633 e demolido em 1964), no lugar onde hoje se encontra o edifício Ribeiro, o Centro Diocesano e Cineteatro e tendo ao lado o Colégio Santa Rosa de Lima.

De frente para a Colina de S. Jerónimo, a antiquíssima Rua Formosa mais longa do que a actual, deveria ser a via que da Sé Catedral chegava até à Horta da Mitra.

 

Outeiro da Mitra

Procuramos perceber pelo nome um pouco da História do lugar. Como mitra é de bispo, leva a pensar ser o terreno da horta propriedade do episcopado, corroborado por um documento do ano de 1871, encontrado no Arquivo da Administração Civil. Diz este que por uma provisão do Senado, datada de 1778, fazia à Mitra mercê dum terreno baldio. Aliando ao facto de a parte Sul ser ocupada pelo convento de Sta. Clara, continuando na Toponímia de Macau, agora sobre a Rua de Santa Clara, o padre Manuel Teixeira refere um documento dos Arquivos do Senado relativos a 1794. “Dizem os Procuradores Ex.ma e R.ma Mitra, que esse Mui Nobre Senado tem jus e mercê a mesma Mitra do Chão contíguo à porta do Campo de S. Lázaro até à casa que então era de Lourenço Jozé dos Passos ora defunto, e do muro das Freiras até à muralha da cidade como eles a vão fechar, fica o outeiro para detrás das Freiras, servindo de coito, ou esconderijo para os jogadores e malfeitores, que costumam ali concorrer; por esta razão pretendem eles fechar pelo muro do mesmo convento contíguo ao monte calvário … e o referido outeiro a ninguém serve de utilidade mas antes fechado serve para o bem público e de evitar malfeitores”. Isto a 7 de Maio de 1794 e 14 dias depois está tratada a doação desse outeiro pelo Senado, com a condição de deixar livre a passagem para a muralha.

Segundo Luís Gonzaga Gomes, “há 300 anos, a cidade era ainda pouco povoada e no intuito de se fomentar o seu desenvolvimento populacional, foi permitido a um grupo de imigrantes chineses de apelido Mâk, Tch’iu e Léong estabelecerem-se ali. Este minúsculo núcleo inicial conseguiu transformar, com o tempo, o local numa aldeiazinha e os seus componentes viviam da venda da lenha que podavam na mata e cujas altas e frondosas árvores que a cercavam estavam sempre cobertas de pássaros que alegravam o bosquete com a sua chilreada, dando ao sítio um aspecto de parque. Foi por esse motivo que os chineses deram ao local o nome de Tchèok Tchái Un, que quer dizer Jardim dos Passarinhos. A 5 de Fevereiro de 1865 houve um grande incêndio na povoação da Horta da Mitra, em que 200 barracas de chineses foram devoradas pelas chamas. Era gente pobre, que trabalhava para as casas de chá e operários das fábricas de seda, panchões e outras.”

Interessante é a chamada de atenção que o padre Manuel Teixeira faz sobre um documento que encontrou no Arquivo da Administração Civil referente ao ano de 1871, em que o bispo “Francisco de Paula Noronha se dizia proprietário da Horta da Mitra ou do Bispo, pedindo ao governo uma indemnização pela expropriação dessa propriedade numa extensão de 1163 metros”. Ora a história refere um alvará de 1810, que dizia ter a Mitra vendido esse terreno a Francisco António Pereira Tovar por 4000 patacas. Mas, em 17 de Janeiro de 1840, o delegado do Procurador Régio oficiou ao Senado: “A remessa dos inclusos papéis e requerimentos de D. Ignácia de Payva para saber as demarcações levou o delegado João Baptista Gomes a não descobrir o título de posse da Propriedade denominada a Horta da Mitra”.

A Horta da Mitra ficou uma extensa zona, que até aos anos 1980 estava ocupada por mata e poucos casebres, sem ruas e ordenamento urbano. Afirmação desdita pelo Cadastro das Vias Públicas de 1874 que, ao esquecer-se de indicar onde começa e acaba a Estrada do Governador Cardoso e o número de casas aí existentes, logo não contando com esta estrada, o cadastro refere por essa altura que a Horta da Mitra tinha 324 casas nas seis ruas, 12 travessas, quatro pátios e três becos. Muitas desapareceram como são os casos das ruas das Vacas, da Pérola, do Pinhal, do Pilar, das travessas do Insecto, do Pavão, da Vaca, da Pérola, do Limão, da Vara, da Fouce, do Mosquito, dos pátios da Folha, do Carvoeiro, da Pinha, do Pinhal e dos becos das Duas Casas, do Vidro e do Chau Chau.

No primeiro capítulo no Volume 1 da Toponímia de Macau, com o título Alteração dos Nomes das Ruas, é referida a Alameda do Governador Cardoso como o espaço que se acha coberto de árvores extramuros dos fortes de S. João e de S. Jerónimo. Depois desapareceu a Alameda, que veio a ser a Rua Nova à Guia. Construído na muralha, ao fortim de S. Jerónimo foi-lhe retirado o armamento em 1877 e sobre as suas ruínas, em 1904, edificado o Observatório Astronómico, segundo informações da historiadora Beatriz Basto da Silva. Ainda no cume da colina, próximo do fortim de S. Jerónimo, em 1872 começou a ser construído o Hospital Militar S. Januário. Inaugurado em 6 de Janeiro de 1874, foi em 1952 demolido e no seu lugar edificado o novo Hospital Central Conde de S. Januário, concluído em 10 de Março de 1959.

 

O saneamento da Horta da Mitra

No período do governador Tomás de Sousa Rosa, tendo como director das Obras Públicas José Maria de Sousa Horta e Costa, a zona insalubre da Horta da Mitra, onde a população chinesa residia, foi arrasada e saneada, sendo construído o bairro da Mitra. Por isso a rua principal do bairro se chama Tomás da Rosa e aí existe a Rua Horta e Costa.

Ainda antes da entrada de funções do governador Tomás de Sousa Rosa, já num relatório de 1882 do Serviço de Saúde Pública assinado por Lúcio Augusto da Silva relativo ao Leal Senado, foram indicadas as seguintes providências: mandar destruir as palhotas que existem na Horta da Mitra, já que o bairro era perigoso à saúde pública por estar dentro da cidade; reduzir a insalubridade acabando com a venda da carne, do peixe e da hortaliça na rua da Colina e do “jardim particular que faz parte da mesma horta com a entrada na rua do Campo, por haver ali uma espécie de tanque que provavelmente serve para rega, mas que é um verdadeiro pântano por conter pedaços de madeira, ramos e folhas em decomposição e além disso densas matas, muitos detritos vegetais e outros, madeira velha exposta às chuvas e ao sol e nenhuma limpeza e cuidado em tudo”.

Em 1885, a urbanização da zona da Horta da Mitra foi feita na base da Colina de S. Jerónimo e à direita da Rua do Campo, mas no relatório das Obras Públicas, com data de 1 de Julho de 1886 e assinado pelo director, Horta e Costa, refere: “O novo bairro projectado na Horta da Mitra está atrasado, devido a serem bastante demoradas as demolições e novas construções feitas ali pelo proprietário … Ainda assim, desapareceu já completamente o terrível foco de infecção … É atravessado este bairro por seis ruas longitudinais e cinco transversais. Algumas destas já se acham construídas, outras apenas estão traçadas. Todas são canalizadas, indo os seus canos convergir ao cano geral da Rua Thomaz Roza, a mais importante de todas”. Cruzando aqui o que está escrito no relatório mas com o subtítulo ‘Canalização’ diz o director: “no novo bairro da Horta da Mitra, onde os canos cruzando-se como uma rede, e aumentando sucessivamente de secção, vão desaguar no cano geral da Rua Tomás da Rosa, que recebe também directamente as águas da parte da montanha do hospital, e vai levá-las ao grande cano, que passa na Rua do Campo, que urge modificar, e que é um dos mais importantes de Macau”.

“Neste bairro está prestes a concluir-se um mercado. É municipal, mas o projecto e construção foram entregues a esta direcção. É dividido em 48 lugares e satisfaz tanto quanto possível aos preceitos da higiene.” Sobre este mercado não sabemos nada, tendo o actual edifício a data de 1939. “As ruas foram mandadas calçar por esta direcção depois de 2 de Novembro (de 1885).”

Os casebres foram demolidos e substituídos por casas de pedra e cal, mas havia ainda muitos terrenos para construção e talvez por isso, logo em 1883 o templo Lou Pan Si Fu, na Rua da Cal, foi renovado, apesar de ter sido construído 24 anos antes pela Associação dos Carpinteiros, pois Lou Pan era o seu deus.

Já por ordem do Governador Tomás da Rosa, o antigo templo ao deus da terra do século XVIII foi demolido quando da abertura de vias públicas na zona da Horta da Mitra, sendo construído em 1886 o novo Tou Tei Miu. Em agradecimento ao Governador, os moradores fizeram questão de dar o seu nome à rua.

Estando a comer ao meio da tarde um sobremesa, numa das tendinhas encostadas à parede do mercado da Mitra, veio-nos à memória os finais de noite no restaurante Kruatheque. Era aí o último ponto de encontro dos noctívagos europeus, que ao som de música e degustando comida tailandesa, encontravam o lugar propício para encerrar a noite com um pé de dança, já longe dos tempos do ambiente fechado deste bairro chinês, descrito no romance A Trança Feiticeira de Henrique Senna Fernandes, que nos dá a visão da vida da cidade na primeira metade do século XX.

Preparamo-nos para sair do bairro da Horta da Mitra e ao descer pela Rua Tomás Vieira, no edifício de esquina com a Rua do Campo, lembramo-nos ter sido ali, desde 1918, o restaurante da “A Vencedora”. Mudou de lugar, mas continua a apresentar nas paredes as contas emolduradas dos militares que partiram sem as pagar. Ao lado, ainda na Rua do Campo, o edifício do Banco Tai Fung, branch Broadway. Tal palavra transporta-nos para o Cineteatro Império, ali existente até 1982 e, quando foi inaugurado a 21 de Março de 1953, tinha 906 lugares.

Continuando a caminhar pela Rua do Campo, passamos pelos edifícios das Mulheres de Macau e da Administração Pública, tendo a meio o Pátio do Comprador, onde se encontrava o restaurante Portugal, cujo dono era Olímpio dos Santos, segundo nos relata o Sr. Monteiro. Estes altos prédios, construídos há menos de 20 anos, fazem de muralha aos limites Sul da zona da Horta da Mitra e retiram-lhe muita da sua visibilidade.

As tranças desapareceram dos cabelos das raparigas do bairro, que continua uma zona fechada e pouco popular da cidade, visitado apenas por quem ali tem algo a fazer.