De Marta a Macaense

Marta da Silva Van Mierop era uma das muitas órfãs concubinas da Macau setentista. Mas, como num conto de fadas, acabou muito rica e é a única mulher cujo retrato figura na Sala de Sessões da Santa Casa da Misericórdia de Macau, de que se tornou benemérita. Marta “devia ser considerada macaense”, concordam alguns Filhos da Terra e investigadores, até porque os chineses não têm memória dela

 

Marta Merop_GLP_01_Fixed

 

Texto Patrícia Lemos

 

O romance histórico City of Broken Promises, de Austin Coates, é mais do que uma história de amor entre o sobrecarga da Companhia das Índias inglesa Thomas Kuyck Van Mierop e a sua concubina de traços asiáticos, Marta. É também a história da Macau dos séculos XVIII e XIX, das órfãs concubinas, dos vários poderes, das diferentes comunidades e da elaborada estratificação social. O autor britânico que viveu em Hong Kong e morreu em Portugal centra-se nessa mulher de Macau que ficou conhecida como a mais rica do seu tempo no enclave. Para tal, vale-se do diário e dos testamentos de Thomas e Marta, do imaginário ocidental sobre o Oriente e seus estereótipos, de histórias da carochinha de Macau, dos arquivos históricos ingleses e de testemunhos do que era a região naquela época. Coates “conta a história possível” da vida de Marta (1766-1828), vários historiadores de Macau concordam.

Tudo o que se sabe do início da sua vida é que era mais uma das muitas órfãs que engordavam as taxas de natalidade do enclave. Juntamente com as viúvas, estas crianças constituíam a classe mais desfavorecida. Caso se soubesse que era filha de um português, Marta teria dado um bom partido no popular “mercado matrimonial” e com isso beneficiado a Santa Casa da Misericórdia (SCMM), o Senado, a estirpe macaense e, por consequência, a cidade cristã, naquelas que eram as suas “estratégias de reprodução dos poderes sociais e da concentração de riqueza”, como refere o historiador Ivo Carneiro de Sousa no artigo Mulheres, Casamento e Família em Macau, publicado na Revista de Cultura, em 2007. Foram movimentações que também preservaram a presença portuguesa na região, na sequência da crise que vinha do século XVII e ainda da entrada de novos actores no comércio internacional de Macau no século seguinte: os ingleses.

Contudo, Marta não deixou de dar um contributo essencial aos poderes vigentes. Afinal, ela deixou toda a sua riqueza à Santa Casa e à cidade. Mas a sua vida não teve um começo fácil. Não sendo órfã de boa linhagem, o mais provável era ter sido mesmo uma “enjeitada”, já que foi abandonada à nascença na rua. Escapou de morte certa porque, antigamente, “o infanticídio feminino era uma prática corrente na China”, refere Leonor Seabra, directora do Centro de Investigação de Estudos Luso-Asiáticos da Universidade de Macau no artigo A Mulher na Misericórdia de Macau, publicado na Revista de Administração Pública de Macau, em 2007. Marta foi encontrada nas escadas da Igreja de São Domingos pelas freiras Clarissas. Com o destino desvelado à nascença, seria escrava muitsai, prostituta da Rua da Felicidade ou concubina de um estrangeiro, herdada como a casa e a mobília de uns sobrecargas para outros. Para Seabra, como “Marta foi abandonada pelos progenitores, não é bem como as muitsais, que não sendo prostitutas lineares, eram rapariguinhas, normalmente, compradas pelos ocidentais aos pais chineses com dificuldades”. Não tendo a mesma condição, mas arriscando um futuro semelhante, a órfã ainda recebeu nome próprio cristão, quem sabe numa súplica para fugir ao lúgubre destino. É que a homónima da Bíblia era irmã de Lázaro e louvada por ser muito trabalhadora.

A Marta idealizada pelo autor de Macau, Calçadas da História ficou no Convento de Santa Clara até aos nove anos. “É conhecida a dedicação das freiras Clarissas às órfãs”, que recebiam dinheiro do Senado para cuidar destas crianças, explica Seabra. A partir de certa idade esse patrocínio cessava e as raparigas tinham de encontrar outro destino. Por isso, talvez não tenha sido o temperamento difícil de Marta, que Coates descreve, a forçar as irmãs a dar a criança para adopção. Ainda assim, é verosímil ter sido o casal macaense, Teresa da Silva e o francês Monsieur Auvray, recriado por Coates, a assumir a guarda da órfã. Aliás, um dos apelidos de Marta é o portuguesíssimo Silva, bem inscrito no seu retrato de corpo inteiro que chama a atenção na sala das sessões da SCMM.

Com Monsieur Auvray, Marta aprendeu a falar francês, a cozinhar e a conhecer as especiarias e as suas melhores terras de origem. Saberes que, mais tarde, lhe dão outro protagonismo no livro já que é retratada como uma grande negociante de Macau. O talento para o comércio revelou-se na casa da Companhia das Índias que ficava na Rua do Hospital. Aí viveu com Thomas como sua concubina, um papel que já assumia desde os 13 anos pois o inglês herdou-a como a casa e a mobília do sobrecarga antecessor. Depois do seu protector francês morrer, só encontrou futuro na prostituição, mas logo se dedicou ao comércio enchendo de prata várias arcas durante os 15 anos que viveu com Thomas, sobretudo quando este se ausentava no Inverno.

Macau era uma espécie de reserva para residência de sobrecargas da Companhia das Índias inglesa durante os seis meses de Primavera e Verão. Isto porque os estrangeiros só estavam autorizados a fazer negócio em Cantão no Inverno. O resto do tempo ficavam em Macau. Não tinham como ir e voltar de barco às suas terras natais nesse “curto” espaço de tempo. Ir para o Extremo Oriente era, sem dúvida, uma forma de enriquecimento rápido mas também se transformava num exílio de 15 a 20 anos, como depreende Coates da leitura do diário de Thomas. Partia-se para a China mais por dever familiar do que por ânsias de aventura e paixão pelo exótico.

 

Macaense por adopção

A mãe adoptiva da Marta ficcionada, Teresa da Silva, e a filha Dominie, ou mesmo os familiares macaenses, os Gonçalves Sequeira, a quem a órfã mais tarde se une nos negócios, são retratados por Austin Coates como tendo caracteres duvidosos, envenenados pela intriga, a inveja e com uma maneira de estar na vida algo hedonista e interesseira. Porém, não é por causa deste retrato sentencioso dos Filhos da Terra que o padre Manuel Teixeira se insurge contra o escritor britânico à data da publicação do livro City of Broken Promises, em 1967, afirmando que a personagem central do livro nada tinha de “verdadeiro” a não ser o facto de ter existido. Sente-se que na base deste ataque estão sobretudo as descrições do mundo católico de Macau, conforme alude o investigador Rogério Miguel Puga no artigo A Vida e o Legado de Marta da Silva Van Mierop, publicado na Revista de Cultura, em 2007.

Coates dá de facto uma imagem afectada do domínio católico logo nas primeiras páginas do livro (“A terra está infestada de padres (…) a assistir à necessidade espiritual desta pequena comunidade estavam cerca de 90 padres”), isto já para não falar da descrição física do padre Montepardo, qual diabo, mais para o final do livro: “O seu rosto horrível com os seus olhos de tamanhos diferentes”. Como sublinha a historiadora Tereza Sena, do Centro de Estudos das Culturas Sino-Ocidentais do Instituto Politécnico de Macau, para além dos vários poderes que vigoravam em Macau, os estrangeiros ainda se debatiam com o problema da religião, já que tinham um credo diferente. “Não nos podemos esquecer que nesta época ainda não havia liberdade religiosa” em Macau.

Esse poderio católico podia ser desproporcionado, mas a verdade é que naquela altura salvou grande parte da franja bastarda da sociedade de Macau, definindo a identidade de muitos que nasciam fora dos matrimónios. A Igreja Católica e a Misericórdia tiveram aí um papel fundamental, na medida em que ajudaram a legitimar parte do rebento da cultura macaense, ou seja apoiavam as muitas “órfãs” que nasciam das relações clandestinas com mulheres de baixa condição de Macau.

“Não se sabe ao certo qual era a ascendência de Marta, mas parte-se do princípio de que era chinesa”, explica a macaense Cecília Jorge, consultora do Núcleo de Apoio da Misericórdia de Macau. Até “podia ser macaense. Parece ter qualquer coisa de Xangai também. Podia ser euroasiática”, sugere o provedor da SCMM, António José de Freitas.

São necessárias muito mais provas para se falar da origem de Marta mas, para Cecília Jorge, há um ponto assente: “Para se ser macaense não é necessário ter sangue português. O que é importante é a cultura”. No caso da benemérita, a sua fé católica é fundamental, “o que era algo inerente ao macaense”. Por isso, “é mais do que tácito que seja considerada macaense”.

Outro macaense, José Luís de Sales Marques, faz notar que Marta “adopta uma atitude claramente europeia, nomeadamente através da sua relação com o Catolicismo e a maneira de vestir”. No entanto, considera que ela “é uma macaense fora do vulgar, quer pela sua independência em relação ao mundo masculino, reforçada pelas circunstâncias de viver com um sobrecarga que se ausentava regularmente para Cantão, pela sua iniciativa e sagacidade nos negócios e pelo facto de ter de viver escondida do mundo”.

Já a investigadora Ana Maria Amaro se referia aos chineses católicos que eram assimilados pela comunidade macaense como “macaenses por adopção”, o que inclui a benemérita, mesmo que a sua ascendência fosse apenas oriental. Marta também só é conhecida dos portugueses de Macau pois parece que nenhum chinês ouviu alguma vez falar desta mulher, ainda que Coates sugira o contrário. Nem mesmo os especialistas da Associação de História de Macau, consultados para este efeito, têm qualquer conhecimento da sua existência.

Marta era tão ou mais católica que os macaenses. O seu testamento é bem prova disso: “Deus verdadeiro, em quem firmemente creio por ser cristã, e Catholica Romana (…) Eu Marta da Silva Merop, viuva de Thomaz Merop (…) ordeno esta a minha última vontade”. Neste documento deixa expresso o desejo de legar o seu espólio à SCMM, beneficiando ainda o Senado, os seus protegidos e várias instituições, como o Recolhimento de Meninas de Santa Rosa de Lima e o Convento de Santa Clara, e patrocinando até festividades locais. O mesmo documento também refere que se casou com Thomas “à face da Igreja”, ainda que não exista registo do matrimónio, conforme faz notar Puga no seu artigo sobre a benfeitora.

 

Casamento sem papel

É curioso que nem o próprio Coates os casa pela igreja e este episódio, que até tem o seu fundo de verdade impresso no testamento, é mesmo o único em que o escritor parece desviar-se da realidade, espetando assim mais uma farpa anticatólica, uma das que fez jorrar a tinta da pena de padre Manuel Teixeira em três artigos sobre o tema no jornal Clarim. O enlace do romance acontece numa cerimónia muito privada a dois com uma testemunha acidental e é a partir desta que o leitor espreita a união secreta, assim se ilustra o perigo que representava este casamento. Nas vésperas, o casal tinha recebido a visita do padre Montepardo e a Companhia estava desconfiada de que Thomas planeava casar com Marta. Se o enlace se tornasse público, o inglês perdia o direito à viagem que precisava de fazer para se curar da disenteria que o tinha acometido numa das muitas idas a Cantão.

Os ingleses não podiam ter residência permanente em Macau não podendo, por isso, levar mulheres ocidentais para o território ou para a China, ou mesmo casar com as locais. Claro que nenhum se devotava ao celibato. Todos tinham à partida pensionistas em casa, como Thomas, ou visitavam prostitutas. É um facto que também fazia com que a Macau Setentista fosse extremamente masculina, muito escondida por detrás das portadas ocidentais e dos biombos chineses.

Em City of Broken Promises, Marta nunca manifesta crença no matrimónio. Não tinha por que alimentar os sonhos de casamento nutridos por Thomas, as tais promessas não cumpridas que Coates chama para o título do romance. A grande preocupação da concubina era fazer dinheiro suficiente para que quando ele partisse ela não tivesse de ser entregue, como a casa, a outro estrangeiro. Não é que os ingleses não se apaixonassem pelas suas concubinas. Mas se algum estrangeiro decidisse esposar uma chinesa ou reconhecer a paternidade de um mestiço, a Companhia das Índias inglesa retirava-lhe tudo, criando até impeditivos ao seu futuro na mãe-pátria.

Thomas consegue partir na embarcação da Companhia mas, doente como estava, não sobrevive aos dias de mar e não regressa a Macau, como tinha prometido à sua amada. A notícia da sua morte chega com as suas derradeiras palavras: “Diz-lhe que este é o meu desejo antes de morrer: USA O MEU NOME”. Marta herda assim o nome Mierop, a casa da Rua do Hospital e ainda 10 mil libras que lhe garantiram o resto da vida. Deu bom uso ao dinheiro e lançou-se como armadora, mandando construir uma grande embarcação com o seu nome que se fez bem conhecida no Mar do Sul da China.

O que a notabilizou não foi a sua riqueza, mas sim a benevolência. Sem herdeiros directos, a ex-concubina lega a sua fortuna à SCCM, que era instituição caritativa, testamenteira, seguradora e banco. E fá-lo numa altura em que a instituição estava muito precisada. “Exactamente”, admite o provedor, sublinhando até que “a Santa Casa de Macau nunca recebeu nenhum apoio quer monetário ou de recursos humanos de Lisboa”. Naquela época uma crise afectava as Irmandades de Portugal e dos territórios ultramarinos, conforme lembra Leonor Seabra, que esclarece: “Os irmãos apoderavam-se dos bens da Misericórdia a título de emprestado, tal como os reis, mas eram empréstimos que muitas vezes não tinham retorno”. A mesma historiadora adianta no seu artigo que “as Misericórdias acumularam vastos patrimónios em bens de raiz e móveis, principalmente a partir do século XVII, quando estas instituições obtiveram um maior número de doações, devido à vulgarização da ideia de Purgatório, após o Concílio de Trento”.

O legado de Marta perdurou até ao século XX, em prol da cidade e da igreja, mas gerou disputas por causa dos juros devidos pelo Senado. Também é nesse século que Austin Coates dá o merecido reconhecimento à concubina naquele que é o seu romance mais importante. O sucesso repercute-se depois no palco, quando a história é encenada num musical que abrilhanta um festival de Hong Kong nos anos 1970.

 

Poderes a chocar no Antigo regime

Um dos grandes valores reconhecidos ao romance histórico de Austin Coates é a forma como caracteriza a Macau do século XVIII. O escritor britânico consegue ilustrar bem o que era o choque de poderes económico, social e político. Na época de Marta da Silva Van Meriop (1766-1828),  “havia a cidade cristã e a cidade chinesa. Na primeira regula o Senado e os poderes portugueses e de luso-descendentes, mas têm de negociar diariamente com as autoridades chinesas”, explica Tereza Sena, investigadora do Centro de Estudos das Culturas Sino-Ocidentais do Instituto Politécnico de Macau.

Há uma série de influências e poderes paralelos que gerem Macau, como o do Mandarim da Casa Branca, a Igreja Católica e as autoridades portuguesas. É que se houvesse problemas, os chineses fechavam as Portas do Cerco e, em Macau, não havia víveres. Aliás, a mesma especialista acredita que “esse argumento foi utilizado ao longo da história como arma de pressão. É que, na realidade, Macau não foi formalmente portuguesa até 1887 (data da assinatura do Tratado de Amizade e Comércio Sino-Português). Antes dessa data e até ao consulado de Ferreira do Amaral, era uma espécie de feitoria em que era permitido aos portugueses lá estar”. O próprio escritor britânico Coates faz referência no romance ao domínio sínico: “Uma Macau onde nenhum chinês pode entrar era uma Macau sem do que viver a não ser a água do poço”.

Tereza Sena afirma que “uma das características dessa sociedade do Antigo Regime, anterior à construção do Estado Moderno, é a pulverização dos poderes, sem supremacia duns sobre os outros, com a Coroa como única figura tutelar em relação a todos. Não existia uma distinção clara entre o público e o privado, nem os poderes estavam organizados tal como estão hoje”. Esta sociedade também se caracteriza pelo “particularismo” e a “isenção”, a que se podia sempre apelar e “as normas nunca eram muito rígidas”. Mas depois as isenções acumulam-se… Certo é que “não podemos olhar para esta realidade com os olhos dos nossos dias pois vivemos num sistema diferente”.

Quando os estrangeiros se começam a estabelecer-se em Macau em meados no século XVIII, “o equilíbrio desestrutura-se mesmo e é preciso arranjar novas formas de coexistência e acomodação”, justifica Sena. Leonor Seabra, directora do Centro de Investigação de Estudos Luso-Asiáticos da Universidade de Macau, afirma no livro A Misericórdia de Macau (séculos XVI a XIX): Irmandade, Poder e Caridade na Idade do Comércio que naquela época o comércio de Macau foi afectado pelo “desenvolvimento da Companhia das Índias Orientais e do country trade dos britânicos, que utilizavam meios mais modernos de crédito”. A Companhia das Índias, operando sob a Royal Charter, viria a deter o monopólio do comércio inglês dos mares do Oriente e transformou-se mesmo na maior organização comercial do mundo. A sua maior fonte de lucro era então o comércio do chá. Apesar do seu crescente poderio no enclave, os estrangeiros eram confrontados com “uma série de proibições das autoridades”.

Segundo as leis chinesas, nenhum estrangeiro podia aprender a língua chinesa ou permanecer em Cantão mais dos que os seis meses da temporada comercial. Também não podiam comprar casa em Macau ou fazer trocas comerciais em nome próprio fora do âmbito da Companhia. Mas claro que o Senado cedia a alguns “pedidos especiais”, explica Sena. Também existiam situações, como a que é retratada no livro de Austin Coates, em que os macaenses faziam de intermediários. “Eles emprestavam nome, tratavam dos alugueres das casas, frete das embarcações para Cantão, e uma série de outros patrocínios”, adianta a historiadora.

Aparte das leis chinesas e desígnios do Mandarim da Casa Branca, das autoridades portuguesas e das regras da própria Companhia, havia ainda um código de costumes de Macau: a China Fashion (à moda da China). Eis algumas das regras que os recém-chegados ingleses tinham de respeitar. Por norma,

os sobrecargas herdavam a casa, a mobília, os criados e a concubina do colega da Companhia das Índias inglesa que substituem; as concubinas não podiam ser vistas nas casas dos sobrecargas, pelo que as portadas deviam estar fechadas, tendo estas mulheres de evitar circular na parte da casa que dava para a rua; as concubinas não podiam sair à rua, e não podiam permanecer nas divisões da casa onde estivessem simultaneamente o sobrecarga e os criados.