Uma mensagem num carro

O primeiro leilão de matrículas para automóveis do ano, que decorreu em finais de Fevereiro, arrecadou 16 milhões de patacas para o Governo. E reuniu 1088 propostas de pessoas e empresas interessadas num número auspicioso

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Texto Luciana Leitão | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Na cultura chinesa, os números são importantes para determinar a data do casamento, do noivado, o andar em que se vive, o escritório em que se trabalha, o contacto telefónico ou, até, a matrícula do veículo que se conduz. Assim, realizam-se leilões de matrículas no território, onde os residentes aproveitam para comprar os números que vão proteger ou mudar as suas vidas. A MACAU assistiu a um.

No dia 17 de Fevereiro, às 10 da manhã, mais de dez pessoas encontram-se sentadas na sala da Direcção dos Serviços para os Assuntos do Tráfego (DSAT), ansiosas por ouvir os resultados. O chefe de departamento de Assuntos de Veículos e Condutores da DSAT, Luís Gageiro, dá início ao processo, explicando nesta sessão que apenas estão em jogo matrículas para veículos ligeiros da série MS, que comecem com os números um a cinco. Depois de abertas as hostilidades, o responsável junta-se aos restantes colegas para abrir os envelopes que contêm as propostas.

Enquanto a contagem se processa, várias pessoas entram na sala e aguardam. Algumas com um ar bastante ansioso, que se vão levantando esporadicamente para esticar as pernas. Entre elas está Gary Ip, um jovem de 30 anos que já é repetente nesta coisa dos leilões. Sem querer revelar o número licitado, o jovem afirma que pertence à categoria D, e que a sua proposta situa-se entre as 30 e 35 mil patacas. “É a data do meu aniversário. E eu já tenho uma matrícula com esses números”, afirma, sorrindo.

No ano passado, arrematou esse mesmo número por 32 mil patacas. E, à partida, não deve fazer, no futuro, mais nenhuma proposta. “Só tenho dois carros”, declara o funcionário de um dos casinos do território.

Entretanto, continuam a sentar-se mais pessoas na sala, à espera de ouvir os resultados, enquanto outras vão desistindo. No meio da audiência, está Ricky Chan. “Dois amigos ligaram-me porque estavam a trabalhar e não podiam vir assistir”, conta. Tal como Gary, também prefere não revelar os números licitados, até porque teme estar a violar alguma eventual confidencialidade. “Eles gostam destes números. Talvez nem sejam bem auspiciosos”, revela. Uma das propostas é no valor de 150 mil patacas, enquanto que a outra é menos ambiciosa, situando-se nas 43 mil patacas. “Acho que é muito dinheiro”, diz.

Mas, apesar de estas propostas não serem suas, também ele tem um veículo com uma matrícula comprada. “Mas a minha era muito barata. Paguei perto de 20 mil patacas.” Sobre a escolha, diz que são números de que gosta, mas que para outras pessoas podem nem ser considerados particularmente auspiciosos.

 

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Mais do que o previsto

No total, passam-se duas horas até que os resultados sejam anunciados. O chefe do departamento da DSAT diz que o valor arrecadado acabou por superar em muito as suas previsões. “Tínhamos previsto 900 mil patacas, mas o resultado acabou por chegar perto das 16 milhões”, diz. Na sua opinião, tal revela que a população está cada vez mais interessada em adquirir a sua própria matrícula.

O chefe do departamento previu que o valor fosse inferior, sobretudo porque o leilão dos mesmos números da série MR acumulou pouco mais de 900 mil patacas. E, como os números seis, sete, oito e nove da série MR – supostamente, “mais auspiciosos” – atingiram pouco mais de 13 milhões de patacas, Luís Gageiro deduziu que os números um a cinco não reunissem mais do que 900 mil patacas.

A matrícula mais popular foi a MS-28-28, arrecadada por 728 mil patacas, enquanto a segunda foi a MS-11-33, que arrebatou mais de 690 mil patacas. Por outro lado, a terceira no ranking foi a placa MS-55-55, que acumulou mais de 633 mil patacas.

Segundo o chefe do departamento, as matrículas não são necessariamente usadas em carros novos. “Os cidadãos podem trocar as antigas por uma recente”, explica. E se alguém quiser passar uma determinada matrícula para outro veículo, também o pode fazer, desde que pague uma taxa adicional de 3000 patacas.

Sobre os proponentes, Luís Gageiro diz que não existe um determinado perfil. “São cidadãos normais, há também empresas que compram.” E há quem faça várias propostas a diferentes números, provavelmente para revender. “Nota-se que há uma revenda da matrícula, uma oportunidade de negócio – daí criarmos uma taxa adicional de 3000 patacas para quem comprar a matrícula e transferir logo para outro carro. É para evitar a especulação e o negócio”, esclarece.

Os números são separados em categorias que vão do A ao D, de acordo com o “significado mais auspicioso”. Como tal, o grupo A tem o preço base de licitação mais elevado, na ordem das 100 mil patacas, enquanto que o grupo D refere-se a números que podem ser comprados por um valor mínimo de 20 mil patacas. Entre Maio e Junho, deverá decorrer o segundo leilão para veículos ligeiros com os restantes números da série MS.

 

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Uma análise

Para Desmond Lam, professor de marketing da Universidade de Macau, os números têm significados “simbólicos” para a comunidade chinesa. “Muitos tentam evitar números maus e adoptam números considerados bons.” E, muitas vezes, está ligado ao som da carácter em cantonês. “O número oito é popular, porque o som é parecido com ‘prosperidade’, enquanto o quatro corresponde a ‘morte/morrer’.”

Mas a preferência por determinado número não está apenas directamente relacionada ao som. “Algumas pessoas são atraídas por algarismos que têm significados especiais para as suas vidas , como datas de nascimento e aniversários.”

Os números são também uma forma de os chineses expressarem os seus sentimentos ou esperança em relação à vida. “Por exemplo, se escolherem um para a matrícula é uma forma de expressar o desejo de ser o melhor, o primeiro”, acrescenta. Assim, pagar para ter uma matrícula personalizada, acaba por ter muita importância para os locais, até porque alguns vêem-na “como uma forma de mudar as suas vidas”.

Desmond Lam refere que o amor pelos números também se vê noutras opções que não as matrículas, como a compra de uma casa ou de um lugar no parque de estacionamento, bem como o montante que se coloca no envelope vermelho, além da escolha de um determinado número de telefone ou de um novo escritório. “Até escolher um quarto de hotel com bons números ou um prato cujo preço seja um número bom – por exemplo, pato à Pequim por 288 patacas.”

Num estudo efectuado por Desmond Lam, em 2007, intitulado The Digital Life of Chinese Players, lê-se que há números a evitar, como o cinco, que soa como “não” tanto em cantonês como em mandarim. Outros algarismos como o seis e nove são considerados bons, por estarem associados à “estrada” e à expressão “por um longo tempo”, respectivamente.

Quando combinados, os algarismos podem também ter outros significados. “Por exemplo, 98 significa prosperidade por um longo período de tempo”, lê-se no estudo. Outras junções como o “58” podem traduzir-se em “não vai prosperar”, sendo, por isso, de evitar.