As aventuras dos observadores de pássaros

Levantam-se quando o resto da população ainda dorme, investem milhares de esforçadas patacas em equipamento fotográfico e aguardam horas, dias, ou mesmo semanas a fio para observar e registar com a câmara um momento especial. São os observadores de pássaros de Macau

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Texto Luciana Leitão | Fotos Chris TaiGonçalo Lobo Pinheiro

 

O relógio marca 6h00 e, a meio da Estrada de Ká-Hó, em Coloane, vislumbram-se os primeiros raios de sol. Vestido em tons de floresta, Chris Tai fixa-se debaixo de uma planta e de uma rede verde junto à água, fundindo-se com a vegetação. O objectivo é captar uma imagem das crias do martim-pescador em Macau, antes que migrem rumo a temperaturas mais amenas.

Mas Chris Tai não fica sozinho por muito tempo. Pouco depois, o telefone soa e um indivíduo, camuflado em tons de verde tropa, chega ao local, cortando a rede de forma a encaixar a lente da câmara fotográfica e sentando-se em cima das rochas. “E agora?”, pergunta a revista MACAU. Os observadores olham um para o outro e trocam sorrisos como se já estivessem à espera da pergunta. “Agora… Espera-se”, responde finalmente Chris.

Esperar é o verbo certo no que toca à observação de pássaros. Sentados em cima de vários pedregulhos por demais desconfortáveis, Chris Tai e Kuok Xao Mou apenas têm a descoberto as suas lentes fotográficas portentosas – 400 e 500 mm, respectivamente -, enquanto trocam algumas palavras em tom de sussurro. “Usamos esta rede para que os martins-pescadores apareçam sem problema”, diz Chris.

As lentes apontam para um pau, em plena água. “Ontem avistámo-las ali, quando a corrente baixar as crias devem voltar a aparecer à caça de comida”, explica. Pouco depois, ouve-se um som e os dois observadores param para tomar atenção. “Ouviu? É uma garça”, dizem.

 

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Os observadores

Kuok Xao Mou dedica-se a este passatempo há perto de dois anos, desde que viu pela primeira vez um grupo de observadores a avistar pássaros. A paixão pela fotografia e o gosto especial pelas aves enquanto modelos formam uma combinação ideal. Dedica todo o tempo livre aos pássaros, chegando a passar dias inteiros durante o fim-de-semana à espera da foto ideal. “Também vou por vezes a Fujian”, diz.

Aliás, mais do que gostar de aves, Kuok Xao Mou é um apaixonado pela fotografia. Começou por tentar registar a natureza e paisagens e, mais tarde, acabou por se centrar nos pássaros. “São lindos e desafiantes. Não consigo controlá-los, não lhes posso dizer o que fazer”, esclarece. Optando por fotografá-los em diferentes pontos do território, este observador prefere o mangal da Taipa, dada a riqueza de espécies que ali se avistam.

Ao longo de dois anos já se deparou com alguns episódios curiosos. Lembra-se de um em particular, neste preciso ponto de observação onde se encontra. “Passei sete dias de seguida a tirar fotografias ao martim-pescador e no Inverno passado acabei por aqui encontrar um flamingo, o que é bastante invulgar”, recorda.

A mensagem foi passando de observador em observador e vários se agruparam ali para retratar a mesma ave. Porém, dois indivíduos entusiasmaram-se e foram longe de mais, acabando por quase se afundar na água. “Depois de ter tirado fotos suficientes da ocasião, acabei por salvá-los”, conta, sorrindo.

De resto, os dias passam-se normalmente sem avistar qualquer ave. “O normal é passar vários dias sem observar pássaros”, diz, conformado. Isso, para ele, não é um problema. Pode passar dias inteiros sozinho à espera da foto ideal, enquanto os restantes colegas normalmente desistem à hora de almoço.

 

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Os minutos contam-se devagar

Perto das 7h00, ouve-se um carro a estacionar que anuncia a chegada de um terceiro elemento. Depois de breves cumprimentos, Choi Kwai Lam procura um lugar naquele espaço já tão preenchido, procedendo com muita naturalidade ao encaixar na rede a sua lente de 600 mm. “Hoje não trouxe a de 800 mm, porque estamos muito perto e depois não consigo apanhar o pássaro por inteiro”, afirma.

Choi Kwai Lam começou há perto de três anos a observar pássaros. Como apreciador da natureza, gosta particularmente dos pássaros enquanto modelos fotográficos. “Não se pode controlá-los”, realça. Muitas vezes acorda cedo em dias da semana, carrega a máquina fotográfica e aproveita para observar as aves antes do expediente. “Durante a época das aves, em Setembro, venho cinco dias por semana, entre as 4h00 e as 9h00.”

Pensando em todos os pontos de observação, acaba por destacar este mesmo onde se encontra. “Gosto do elemento de surpresa. Por vezes, tiramos uma fotografia esperando pelo martim-pescador e outro tipo de ave aparece aqui, como o flamingo do ano passado”, esclarece.

Assim que um deles avista um pássaro especial os outros rapidamente têm acesso à notícia, correndo de boca em boca ou através de fóruns da Internet. “No caso do flamingo que avistámos no ano passado, estavam mais de 15 pessoas a tirar fotos”, conta.

Quanto ao momento mais marcante deste seu passatempo, ocorreu no ano passado quando finalmente conseguiu um registo da quarta espécie de martim-pescador que lhe faltava. Mas foi a custo. Durante uma semana, esperou junto à Ponte Flor de Lótus, muitas vezes sozinho. “É muito raro ver o martim-pescador malhado em Macau, só se vê uma vez por ano e eu realmente queria tirar-lhe uma foto”, recorda. Quando conseguiu avistá-lo, comunicou imediatamente com os outros interessados e juntaram-se para lhe tirar uma fotografia.

 

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Três horas depois

Entretanto, o tempo vai passando neste ponto de observação até que há sinais de movimento. “Ouçam”, diz Chris. “Mais uma garça.” O tempo vai passando, sem sinais das pretendidas crias. Enquanto Chris passeia os dedos pelo telemóvel topo de gama, saltando de foto em foto, ouve-se o barulho dos panchões, vindo do templo colado à Estrada de Ká-Hó. Entre risos nervosos, comentam: “Por causa disto talvez precisemos de mais duas horas. Devem ter assustado os pássaros.” Mas mantêm-se calmos, apontando para duas aves que pairam no ar. Rapidamente, Chris volta a olhar para o telemóvel, em busca da imagem e do nome que permite identificar aquela espécie. “É um olho branco japonês”, diz, apontando para a imagem.

Durante três horas os três observadores ali se mantêm, atentos a qualquer sinal, mas as crias teimam em não aparecer. “Na realidade, enquanto a maré não vazar, as crias não aparecem”, diz Chris, enquanto espreita o website da Direcção dos Serviços Meteorológicos e Geofísicos de Macau. O relógio marca 8h45, quando se começa a ver o primeiro sinal de que a maré está a vazar. “As crias só aparecem quando a maré está vazia e os caranguejos estão à vista. Só então os ‘pais’ vêm ensinar às crias a apanhar peixe”, acrescenta.

Atentos a todos os sons, até aos de carros, continuam a conversar, mostrando que esta espera para eles é mais do que normal. “Já me habituei a esta situação”, destaca com muita naturalidade. Para passar o tempo, conversam, lêem livros, ouvem música ou passam os olhos pela Internet.

Entretanto, quando o relógio marca as 9h00, começa a chover quando chega um quarto elemento empunhando um guarda-chuva. Depois de uma troca de cumprimentos, Iong Iong começa a instalar-se, num espaço que já antes era apertado dadas as exigências de disfarce. “Faço isto há quatro anos. Gosto de pássaros”, explica, muito sorridente. “Dantes fotografava flores e paisagens, mas agora prefiro pássaros lindíssimos”, acrescenta.

Parco em palavras, Iong Iong diz que se sente feliz cada vez que vê uma ave, já que a maior parte do tempo é passada à espera. Além disso, com este passatempo já ganhou vários amigos, tendo em conta que ficam a maior parte do tempo a conversar sobre uma paixão comum.

Mecânico de profissão, Iong Iong prefere as aves migratórias, porque ainda são mais difíceis de fotografar. “Ficam por tão pouco tempo em Macau que não é mesmo fácil.” O relógio já marca 10h00 e nem sinal das tão desejadas crias. A revista MACAU desiste, mas os observadores ali continuaram.

 

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De um a vários

Observar pássaros é uma actividade “relativamente nova” em Macau. Chris Tai deu o mote e os outros foram seguindo-o, até que em Dezembro de 2010 decidiram fundar a Sociedade de Aves de Macau.

Em 2008, era uma actividade solitária, em que Chris se deslocava aos diferentes pontos de observação apenas para tirar algumas fotos. Começava de madrugada, antes do início do expediente. “A manhã é a melhor altura, porque as aves estão activas à procura de comida. Claro que depende da estação”, diz. E, acrescenta, o Inverno é a melhor estação, já que durante o Verão os pássaros acabam por migrar em busca de temperaturas menos quentes. No Verão apenas avista pequenas e grandes garças, e pouco mais.

Um ano mais tarde, outros começaram a juntar-se a Chris. “Ao todo, já éramos uns 30. Muitas pessoas iam comigo ao mangal da Taipa para ver as garças a procriar”, conta.

Mesmo assim, hoje em dia, nem sempre tem companhia e, muitas vezes, durante a semana, antes do trabalho, o presidente da Sociedade de Aves de Macau continua a deslocar-se sozinho para acrescentar registos à sua base de dados. Mas agora tem a quem comunicar, trocando mensagens e imagens com os outros elementos.

Entre as pessoas que se juntam às actividades de observação de pássaros, há diferentes estilos e histórias. Ele é agente turístico, enquanto há muitos que trabalham para o Governo. Há velhos e novos, uns mais interessados em natureza e outros em fotografia propriamente dita.

 

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A oficialização

A Sociedade de Aves de Macau foi criada em Dezembro de 2010, depois de o Governo ter pedido ao núcleo de observadores fotos de alguns pássaros. “O Executivo ia publicar um livro sobre pássaros do território. E pensámos que precisávamos deste tipo de organismo para lidar ao nível oficial”, diz Chris.

Ao ajudar o Governo na realização desse livro (Aves de Macau, 2010), Chris Tai acabou por chegar à conclusão de que ele e os outros elementos da associação tinham avistado mais espécies do que os técnicos do Governo. “Segundo as estatísticas oficiais, foram avistadas em Macau 170 espécies de aves, mas nós temos indicação de mais de 200”, conta.

Na realidade, mais do que dos pássaros Chris e muitos outros elementos gostam de tirar fotos. E as aves são bons modelos. “É um grande desafio. Podes dizer a modelos para ter uma diferente postura, mas não podes assustar as aves. Tens de te esconder para te aproximares delas.”

Por vezes, a Sociedade Protectora de Aves trabalha em coordenação com o Governo. Por exemplo, a Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental chegou a convidá-los para avistar, na reserva 1, junto ao hotel-casino Venetian, e registar o número de colhereiros-de-cara-preta, que são raros em Macau. “Segundo os nossos dados, há perto de 2000 em todo o mundo. E em Macau já avistamos 54”, diz.

 

Ensinar às crianças e idosos

“Podemos ver aqui nesta zona mais de 60 espécies de aves e 40 de répteis”, explica o técnico da Direcção dos Serviços de Protecção Ambiental Dragon Lei Kampeng, enquanto as crianças vão espreitando pelas lunetas. “Esta não é a altura de pico das aves migratórias, preferem ir para o norte [mais fresco]”, acrescenta, perante o ar meio desiludido dos seus ouvintes. É um dos dois postos de observação de aves na reserva ecológica do Cotai, à disposição das escolas e associações, mediante marcação prévia.

Inaugurados a 4 de Fevereiro de 2012, os postos de observação da reserva ecológica só recebem grupos. Desde o dia da abertura até hoje, “já foram atendidas 1300 pessoas em grupos de no máximo 40 pessoas”, explica Dragon Lei Kampeng. Normalmente, são escolas e associações que mostram interesse. “Muitos são os organismos que juntam pessoas idosas, moradores ou bairros comunitários.”

O objectivo é educar e “dar a conhecer mais seres vivos desta zona”, ao mesmo tempo em que se “sensibiliza os alunos para a importância do ambiente”. Cada visita dura duas horas e é totalmente guiada. “Nos últimos dois anos, só aqui neste espaço, já avistámos 134 espécies de aves”, diz. A área é também profícua em gafanhotos e serpentes, que constituem o alimento das aves. “Podemos atrair várias espécies de aves nesta zona, para nidificarem.