O jardim Lou Lim Ioc

O Jardim Lou Lim loc, inicialmente conhecido pelo nome Jardim das Delícias (Yu Yun) é, provavelmente, o mais chinês do conjunto dos jardins históricos de Macau. Com uma forte identidade histórica e um profundo significado simbólico-literário, constitui um registo poético de experiências (Fung, 1999), que acentua a visão do jardim chinês como uma forma de arte abstracta (Rinaldi, 2011).

 

Jardim Lou Lim Ieoc_GLP_11

 

 

Texto Ana Catarina Antunes* | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

 

 

A história do Jardim Lou Lim loc remonta ao ano de 1870, quando Lou Cheok Chin (1837-1906), negociante e comendador chinês, pertencente à ilustre família de apelido Lou, que se estabeleceu em Macau em meados do século XIX, criou a sua residência, rodeada por um jardim em estilo palaciano. A residência e jardim, foram construídos num terreno adquirido nas várzeas do Tap Seac e, para esse fim, foram contratados os artistas de Cantão, Lau Kat Lok e Lei Tai Chun.

Após a morte de Lou Cheok Chin, em 1906, a propriedade foi herdada pelo seu filho primogénito, Lou Lim Ioc, e pelo seu irmão, Lou Hun Chong, chefes da comunidade chinesa de Macau e membros do Conselho do Governo, que aí organizaram muitos encontros e hospedaram muitas figuras ilustres. Em 1927, morre Lou Lim Ioc e a propriedade passa para a posse dos seus filhos, tendo sido por estes arrendada, no ano de 1938, à Escola Pui Cheng e, mais tarde, à Escola Leng Nam. Posteriormente, em 1951, por dificuldade em manter a dispendiosa propriedade, a área até ali ocupada pelos viveiros foi vendida e urbanizada. Mais tarde, em 1986, instalaram-se outras construções no jardim, como o Corredor dos Cem Passos e o Pavilhão das Ameixeiras, com projecto de Ho Yang Ling.

Ao longo destes anos, o jardim foi alvo de uma progressiva destruição e abandono e a sua área foi reduzida para cerca de metade da área inicial, ocupando, actualmente, cerca de um hectare.

Em 1973, o jardim foi adquirido pelo Governo de Macau, durante o mandato do Governador Nobre de Carvalho, e após a conclusão de obras de restauro, foi aberto ao público em 1974, com o nome de Jardim de Lou Lim Ioc, sendo também conhecido por Jardim de Lou Kau.

 

Jardim Lou Lim Ieoc_GLP_01

 

Os lugares simbólicos

Maggie Keswick (2003) descreve o jardim chinês como um diagrama cósmico, que revela uma profunda e antiga visão do mundo e do lugar que o Homem nele ocupa, ancorado numa forte dimensão espiritual e na ideia de coexistência harmoniosa do Homem com a Natureza.

Apesar das diferentes marcas que as principais doutrinas religiosas praticadas na China deixaram nos jardins, decorrentes das respectivas visões do Universo e do Homem, verifica-se uma continuidade surpreendente na evolução histórica desta arte, revelando um entendimento comum do conceito de jardim. O jardim chinês é, assim, entendido, desde tempos ancestrais, como um lugar espiritual, de contemplação, destinado à recreação do espírito, e concebido através de uma reprodução mística da paisagem, com a presença de inúmeros elementos simbólicos e de veneração.

Em Macau, no Jardim Lou Lim loc, inspirado nos clássicos jardins chineses de Suzhou que remontam ao séc. XIV, foi recriada a shanshui (designação chinesa de paisagem, que significa montanhas e água), onde figuram diversos elementos de grande significado simbólico e espiritual, que são revelados, sucessivamente, à medida que o percorremos.

A água, com expressão no sistema de lagos, repuxos e cascatas, constitui um elemento fundamental do jardim, simbolizando a harmonia presente na Natureza e, também, o sistema venoso do Homem. Com uma função estruturante no seu traçado, contribuindo para a criação de espaços e ambientes singulares, acrescenta uma interessante dimensão visual ao jardim, através do reflexo da luz transmitida pelo Grande Lago, que se revela assim que atravessamos a Porta Lunar e entramos no jardim.

Os elementos rochosos encontram-se frequentemente distribuídos em grupos para representação das montanhas existentes na paisagem. Com uma forte presença, simbolizam a ossatura da terra ou o esqueleto do Homem e constituem, em alguns casos, objectos de veneração. Destaca-se o grupo rochoso criado dentro do Grande Lago, no qual se ergue uma imagem da Deusa Kun Iam; o Monte das Ameixeiras, localizado no limite sudeste do jardim, junto ao edifício “Corredor dos Cem Passos”, onde se encontravam plantadas diversas ameixeiras, oferecendo um cenário magnífico de cor por altura do Ano Novo Chinês; o Monte da Cascata, localizado no limite nordeste, junto ao Pavilhão das Flores Cheirosas, constitui a montanha artificial mais elevada do jardim; e, por último, perto do Pavilhão do Bambual, ergue-se uma montanha artificial com um mirante no topo, de onde se pode usufruir de uma das mais singulares vistas do jardim.

Os elementos vegetais presentes nos jardins são, de um modo geral, utilizados de uma forma muito semelhante à natural, tal como se encontram na paisagem. São utilizados, essencialmente, pelo seu valor simbólico, o que supera o seu valor decorativo. São exemplos de plantas que se encontram no jardim, o bambu, o pinheiro e a ameixoeira, em representação de perseverança, coragem e resistência, por florescerem na estação fria ou se manterem verdes ao longo de todas as estações do ano. As flores têm, igualmente, um profundo significado simbólico. A flor de lótus, por exemplo, que se encontra em abundância no Grande Lago, sendo, igualmente, um dos motivos botânicos que ornamentam muitas das estruturas arquitectónicas do jardim, como as pontes e os pavilhões, simboliza a espiritualidade, pureza e imortalidade.

O jardim Lou Lim loc reflecte, igualmente, a influência ocidental que se começou a fazer sentir na arte dos jardins chineses a partir da Dinastia Meng (1368-1644), onde o misticismo dos clássicos cânones é substituído por uma arte mais decorativa. Esta interculturalidade com o ocidente manifesta-se, essencialmente, numa nova configuração dos temas tradicionais, com grande expressão nos elementos arquitectónicos. Os quiosques e os pavilhões passaram a dominar o jardim e adquiriram uma arquitectura mais arrojada, os percursos e as galerias abertas começaram a ser revestidos com mosaicos coloridos, os elementos decorativos ganharam maior destaque e surgiram os terraços-mirantes, fontes e repuxos, assim como canteiros bem delimitados e floridos (Amaro, 1967).

Os pavilhões, utilizados nos jardins chineses com fins religiosos e também como espaços de encontro social, abundam no jardim. No Pavilhão da Relva Primaveril, onde funciona actualmente a Escola Pui Cheng, localizado nas imediações da antiga residência principal, eram recebidas as figuras ilustres de Macau do séc. XIX. De estilo apalaçado, onde a arquitectura oriental se funde com a ocidental, integra um grande varandim erguido sobre o grande lago, de onde se tem uma vista privilegiada sobre o jardim. Nas suas proximidades, a nascente, encontram-se o Pavilhão do Xadrez e o Pavilhão das Flores Cheirosas, de onde parte a Ponte das Nove Curvas. Na zona nascente no jardim, junto às Estufas, encontra-se o Pavilhão das Orquídeas e, junto ao Monte das Ameixeiras já referido, o Pavilhão das Ameixeiras. O Pavilhão do Bambual, localizado junto ao Lago dos Nenúfares, dispõe de uma vista privilegiada sobre o Grande Lago e o Pavilhão da Relva Primaveril. A Casa para Visitas Iong Sam Dim e o edifício Corredor dos Cem Passos, construído no jardim em 1986, completam o conjunto dos pavilhões e edifícios existentes, que se encontram ligados por uma rede de percursos que percorre o jardim.

As pontes são, igualmente, estruturas características do jardim chinês. Constituem elementos de ligação das diversas zonas do jardim e encaminham, em muitas situações, os visitantes para os pavilhões. São exemplos a Ponte em Ziguezague, que atravessa o Lago dos Nenúfares e conduz a uma plataforma sobrelevada próxima do Pavilhão do Bambual e a Ponte das Nove Curvas, que parte do Pavilhão das Flores Cheirosas em direcção ao Pavilhão da Relva Primaveril. O facto de estes elementos terem um traçado meandrizado ou em ziguezague, prende-se com a crença tradicional chinesa de que os maus espíritos só se movem em linha recta, afastando-os, assim, destes espaços de reflexão e refúgio.

Outros elementos construídos muito presentes nos jardins chineses, que se encontram também no Jardim Lou Lim loc, são as portas e também as janelas trabalhadas inscritas nos muros, que enquadram os objectos ou diversos cenários do jardim. São exemplos a Porta Lunar e a Porta em forma de Jarra, que dá acesso ao pátio da Casa para Visitas Iong Sam Dim, bem como as janelas circulares, rendilhadas em pedra, abertas no muro junto à entrada principal. Referimos, igualmente, os muros altos que cercam o jardim, reforçando a privacidade e o misticismo que caracteriza os jardins chineses.

 

Jardim Lou Lim Ieoc_GLP_08

 

 

BIBLIOGRAFIA

Amaro, Ana Maria. 1967. O jardim de Lou Lim ieóc. Boletim do Instituto Luís de Camões, Macau, Outubro, v2 n.º 1, pp 147-188.

Estácio, António e Saraiva, António. 1993. Jardins e Parques de Macau. Macau: Instituto Português do Oriente.

Fung, Stanislaus. 1999. Longing and Belonging in Chinese Garden History. In Perspectives on Garden Histories, Michel Conan, Dumbarton Oaks Research Library and Collection Washington, D.C.

Fung, Stanislaus. 1997. Word and Garden. In Chinese Essays of the Ming Dynasty: Notes on Matters of Approach, Interfaces, June 1997, 77–90.

Keswick, Maggie. 2003. The Chinese Garden: history, art and architecture. Frances Lincoln.

Jesus, José. 2001. Jardim no Pensamento Mítico Chinês: Ensaio Sobre Cultura Chinesa.  Universidade de Aveiro.

Rinaldi, Bianca Maria. 2011.The Chinese Garden: Garden Types for Contemporary Landscape Architecture. Birkhäuser.

 

 

*Doutoranda em Arquitectura Paisagista e Ecologia Urbana pela Universidade de Lisboa