Tomás Pereira e o imperador

Celebram-se em 2014 os 340 anos da chegada do padre português Tomás Pereira à China. Ele é uma figura marcante da história missão católica no país. Mas o papel do jesuíta foi bem mais além da evangelização. A música foi o instrumento através do qual ele estabeleceu uma relação de mais de três décadas com o imperador Kangxi

 

Kangxi

 

Texto Alexandra Lages

 

Numa investigação intitulada O Mundo Musical do Padre Tomás Pereira, a investigadora norte-americana Joyce Lindorff explora a faceta musical do missionário Tomás Pereira, que também se destacou na diplomacia, na ciência e na matemática. Foram as suas habilidades musicais que o levaram a viajar de Macau e instalar-se na corte do imperador Kangxi no século XVII e a impressioná-lo com as primeiras notas musicais do Ocidente reproduzidas então na China. Foi a música que aproximou o padre do soberano numa relação que se prolongou por mais de três décadas. E foi também a principal arma de Tomás Pereira para cumprir o dever da evangelização.

O português chegou à China há 340 anos – em 1674 – e não só logrou manter uma relação pessoal e privilegiada com o imperador, como se impôs como um músico inovador e um hábil mediador das relações sino-russas. Tendo ocupando o cargo de Prefeito do Tribunal das Matemáticas e assumindo o papel de efectivo representante e protector da Missão Cristã na Corte imperial, a ele se ficou ainda a dever a construção da nova Igreja de Nantang em Pequim.

O jesuíta, que recebeu o nome chinês de Xu Risheng (徐日昇), chegou primeiro a Macau, em 1672, com a missão de evangelizar os chineses, função a que se dedicou até morrer, em 1708. As suas contribuições musicais incluem, por exemplo, a construção de órgãos e a escrita do Lulu Zhengyi Xubian, obra em que explica o sistema ocidental de notas musicais em escrita chinesa. Nenhuma das composições do português foi ainda encontrada.

 

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O Mundo Musical do Padre Tomás Pereira é o tema da sua investigação. Qual foi a razão que a levou a escolher este tema?

Há 20 anos, mudei-me de Nova Iorque para fazer um ano de residência a leccionar cravo no Conservatório de Xangai. No momento em que cheguei, encontrei um postal à minha espera. Foi enviado por Igor Kipnis, um cravista de renome que estava a trabalhar na história do cravo. Ele encarregou-me de escrever um curto artigo sobre a história do cravo na China, que me lançou no caminho da investigação que ainda hoje estou a percorrer. Descobri que existiram dois missionários europeus que desempenharam um papel de destaque na corte chinesa: um deles era Tomás Pereira e, mais tarde, o italiano Teodorico Pedrini.

 

Diz que o Padre Tomás Pereira era um músico sublime. Como é que se iniciou na música?

Braga, cidade próxima de onde Pereira nasceu, tinha estabelecido um dos primeiros cursos de música, que remonta ao século XVI. Coimbra, onde ele estudou até à sua partida de Portugal em 1666, tinha um centro altamente internacional do pensamento musical e composição daquela época. Então provavelmente, Pereira chegou à China com um conhecimento musical muito sofisticado.

 

Ele não era um mero músico, contudo. Porquê?

Como muitos dos missionários europeus da época, Pereira chegou à China preparado para empregar múltiplas habilidades – o que poderia ser útil para o imperador e, assim, facilitar o seu objectivo de propagar o cristianismo. Mas Pereira foi um polímata excepcional. Ele estava envolvido em matemática, relojoaria, construção de órgãos e também se destacou na diplomacia e na astronomia. Isso levou à sua proeminência na negociação do Tratado de Nerchinsk, o primeiro acordo entre a China e o Ocidente. Pereira teve um papel de liderança entre os jesuítas na Ásia e construiu uma forte amizade com o imperador chinês Kangxi.

 

Foi por causa da música que Pereira foi enviado em missão para a China…

Em 1671, o missionário Ferdinand Verbiest estava a servir como chefe do calendário da corte de Kangxi [Verbiest foi encarregado de reformular o calendário chinês]. Pereira esteve em Macau e Verbiest recomendou-o como músico ao imperador. Pereira foi então convocado para a China, onde chegou em 1673.

 

Qual foi a importância de Tomás Pereira para o desenvolvimento da música na China?

Pereira conseguiu impressionar o imperador Kangxi com uma demonstração de notação musical ocidental. Foi capaz de reproduzir melodias tradicionais chinesas após uma primeira audição apenas. A música criou uma ligação imediata entre Pereira e o imperador. O missionário inspirou-se para realizar estudos e medições de instrumentos tradicionais chineses. Embora a música ocidental fosse de facto importante para o relacionamento com o imperador, a sua prática não retirou a importância da música tradicional chinesa durante o tempo de Pereira na corte. O imperador respeitava muito Tomás Pereira e utilizou muitas das suas habilidades. Contudo, a música foi a mais importante. Teodorico Pedrini, que chegou à China logo após a morte de Pereira, também serviu como músico a Kangxi. Pedrini descreveu numa carta a primeira reacção de Kangxi à sua música que estava carregada de memórias emocionais de Pereira, que serviu a sua corte durante 35 anos.

 

Foi a música uma maneira de converter os chineses à religião católica?

A música desempenha um papel importante na maioria das religiões e o órgão é uma voz poderosa na liturgia cristã. Tomás Pereira foi capaz de construir órgãos, o que atraiu muito interesse entre os ouvintes chineses tanto pela sua mecânica como pelo som. Talvez ainda mais importante foi o papel da música no estabelecimento de uma forte relação entre Tomás Pereira e Kangxi, que em última instância controlava a actividade religiosa dos missionários. Pereira foi fundamental em convencer o imperador a emitir o decreto 1692 que permite a pregação do cristianismo.

 

Está ainda a desenvolver esta investigação. O que ainda procura?

Seria maravilhoso encontrar mais detalhes sobre as primeiras influências musicais de Pereira em Portugal.

 

O seu trabalho defende que há três mistérios por desvendar do mundo musical de Tomás Pereira. Que mistérios são esses?

O primeiro mistério envolve a sua própria música. Apesar de Tomás Pereira ter passado 35 anos na China, nem uma composição musical sobreviveu. O que aconteceu com elas e será que um dia poderão ser encontradas? O segundo mistério é sobre o seu trabalho teórico. Nós temos as versões em chinês, mas não o original em português. O último mistério é a autoria do Lulu Zhengyi Xubian, o tratado sobre música ocidental que Tomás Pereira começou. Será que o seu sucessor, Pedrini, lhe acrescentou algo ou simplesmente o organizou para incluir os volumes do imperador? Espero encontrar as respostas algum dia.

 

 

Joyce Lindorff

 

Perfil

Joyce Lindorff integra o corpo docente da Faculdade de Música Boyer na Universidade de Temple, em Filadélfia. A investigadora já leccionou na Universidade de Cornell, na Hong Kong Baptist University e no Conservatório de Xangai, onde foi professora honorária durante 20 anos. Durante o seu percurso na Ásia, realizou duas cátedras Fullbright na China e em Taiwan. Os primeiros sete anos de residência na Ásia inspiraram-na a investigar sobre música europeia nas cortes das dinastias Ming e Qing. Lindorff  tem publicado extensamente sobre o assunto e o seu mais recente artigo versa sobre a música na embaixada Macartney à China. As suas apresentações mais recentes incluem simpósios em Pequim, Macau e Lisboa.