Educação | Os desafios do multilinguismo

O repto do ensino multilingue aumenta nas escolas com língua veicular chinesa e população estudantil estrangeira. Aqui, educadores e educandos têm que aprender a ajustar-se ao ambiente multicultural composto na maioria por filipinos, portugueses e brasileiros

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Texto Cláudia Aranda | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

É em mandarim que Hon Iok, director da Escola Oficial Zheng Guanying, cumprimenta as cerca de 20 crianças do terceiro ano do ensino infantil que saem alinhadas para o recreio da manhã, enchendo o pátio do estabelecimento escolar situado nas traseiras da sede da União Geral das Associações dos Moradores de Macau, na zona do Fai Chi Kei.

Entre os garotos em formatura, surgem Afonso e Isabel, ambos de cinco anos, que respondem em uníssono ao “olá” em português que lhes é dirigido pelos jornalistas da revista MACAU. São 15 no total as crianças portuguesas a frequentarem esta que se distingue das outras por ser a primeira e única escola pública em Macau que introduz como língua veicular de ensino o mandarim, a língua oficial da República Popular da China e a mais falada no mundo.

A escola entrou em funcionamento no ano lectivo de 2011/2012 nas instalações da extinta Escola Primária Luso-Chinesa de Tamagnini Barbosa. A Zheng Guanying integra o projecto em fase de estudo piloto que visa a reforma curricular e põe em prática o objectivo do governo da RAEM de diversificar o sistema escolar e dar um novo rumo ao desenvolvimento das escolas oficiais. Introduz novos conceitos, modelo de gestão e sistema curricular e pretende oferecer uma opção nova aos alunos que ingressam nas escolas oficiais.

“O Afonso entrou no ano passado no segundo ano da infantil e já se desembaraça perfeitamente no mandarim”, congratula-se o director Hon Iok. “O mandarim é um idioma novo tanto para as crianças portuguesas como para as crianças chinesas, para quem a língua materna é o chinês-cantonês, assim como para as crianças de outras nacionalidades – francesa e japonesa – que frequentam a escola”, acrescenta o responsável.

Daí que, os professores nas aulas não fazem distinção entre as crianças e aplicam os mesmos métodos de ensino centrados na escuta e na conversação, com recurso a jogos, canções, histórias e outras actividades lúdicas. “Nas classes infantis a integração é mais fácil”, assegura Hon Iok. “Encorajamos os alunos a reconhecer um número cada vez maior de caracteres chineses à medida que vão avançando no pré-escolar. Nos primeiros níveis não estimulamos ainda a escrita”.

O plano curricular da escola Zheng Guanying foi desenvolvido por forma a preparar alunos com qualidades diversas. “Queremos encorajar os nossos estudantes a falar três línguas”, explica o director Hon Iok. O estudo do português inicia-se no nível dois do ensino infantil, cerca de 15 minutos por dia e de forma lúdica. No nível três da infantil os garotos passam a ter uma hora de português por dia, dividida em sessões de 30 minutos. A aprendizagem do inglês começa no primeiro ano da primária, à semelhança do que acontece nas outras instituições públicas.

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Três línguas e quatro idiomas

Em termos de diversidade de línguas a aprender, a fasquia exigida aos alunos das escolas de Macau é alta. Pede-se que os alunos conheçam, na prática, três línguas escritas – chinês, português e inglês – e quatro idiomas, incluindo mandarim e cantonês.

O mandarim possui 80 mil caracteres, chamados de hanzis, dos quais 7000 são mais usados. São necessários pelo menos 3000 caracteres para ler um jornal ou um livro, “com recurso a dicionário”, no caso de se tratar de um estrangeiro, explica Kathleen Lau, professora de liceu e do Centro de Difusão de Línguas da DSEJ. Mas, bastam mil caracteres para um estrangeiro ser capaz de ler, comunicar e escrever frases simples. O cantonês escrito, por sua vez, acrescenta caracteres próprios, usa uma gramática diferente e atribui significados distintos, conforme explica Kathleen, o que dificulta a compreensão para quem apenas fale mandarim.

A poucos quarteirões de distância da Escola Oficial de Zheng Guanying, na sala de leitura da Escola Luso-Chinesa do Bairro Norte, em pleno bairro da Ilha Verde, cinco crianças chinesas e uma filipina, a frequentar o segundo ano do pré-escolar, entoam em uníssono uma história escrita em caracteres chineses. Os seis meninos lêem alto e em bom som a partir de um texto que cada um segue no respectivo livro com o pequeno dedo indicador.

Têm apenas entre quatro e cinco anos mas os pequenos alunos já são capazes de reconhecer um número relevante de caracteres. Lam Peng Wun, directora da Escola Primária Luso-Chinesa do Bairro Norte, refere que, no ensino infantil, “o importante é ler e reconhecer os caracteres e as palavras que se podem criar, não lhes pedimos que escrevam”. Com quatro e cinco anos não se espera que as crianças saibam identificar mais do que 100 caracteres, segundo a opinião de diferentes professores. No entanto, já poderão desenhar estruturas básicas.

A escrita do chinês é, todavia, uma prática encorajada desde cedo na Escola Primária Oficial Luso-Chinesa Sir Robert Ho Tung. Por volta dos três ou quatro anos, assim que atingem o segundo semestre do primeiro nível da infantil, as crianças iniciam-se nos caracteres chineses. “Começam por desenhar simples grafismos próximos da estrutura base dos caracteres chineses”, explica a directora Maria Rita Lizardo Faria Correia.

Aos seis anos de idade, quando chegam ao ensino primário, os pequenos deverão ser capazes de reconhecer pelo menos 600 caracteres. Mas só no quinto ou sexto ano de escolaridade é que as crianças, entretanto, já com cerca de oito ou nove anos, começam a ser capazes de falar e escrever e de compreender frases, adivinhando-lhes o sentido, mesmo que não conheçam todos os caracteres inseridos no texto.

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Trabalhar desde pequeninos

Os graus de exigência diferem de escola para escola, assim como os planos curriculares. A escrita nas classes infantis, tanto do chinês como do inglês, é igualmente encorajada na escola particular Pui Ching. Aqui, os alunos são admitidos com a idade de três anos e, geralmente, só deixam a escola quando terminam o secundário complementar, aos 18 anos. Esta é uma instituição orientada para assegurar o sucesso dos alunos no momento de se candidatarem a universidades de prestígio de todo o mundo e aposta em níveis elevados de trabalho. Das crianças com cinco ou seis anos que terminam o nível pré-escolar, espera-se que consigam escrever cerca de 100 palavras em chinês e ler uma história. Na língua inglesa, os miúdos já deverão ser capazes de escrever umas 50 palavras e recordar-se das frases que aprenderam nas aulas.

Também na Escola São Paulo os alunos da infantil têm de saber 100 palavras em chinês antes de avançarem para a primária, têm de conhecer o alfabeto romano em maiúsculas e minúsculas, assim como 100 palavras em inglês. Frases de saudação e de pedido de permissão são ensinadas antes das crianças completarem o ensino infantil.

 

O mundo a falar chinês

A educação multilingue encontra alguns dos seus maiores desafios no ensino de crianças estrangeiras e não-falantes de chinês. O número de estudantes estrangeiros tem vindo a aumentar de forma visível nos últimos anos, sobretudo, em algumas escolas públicas. “Na Taipa, as crianças estrangeiras representam para cima de 50 por cento dos alunos”, constata Lo Veng I, directora da Escola Luso-Chinesa da Taipa. Situação idêntica revela a directora da Escola Primária Oficial Luso-Chinesa Sir Robert Ho Tung, no centro de Macau, onde predominam os estudantes de nacionalidade filipina, tailandesa, portuguesa e brasileira. Num total de 75 crianças integradas no ensino infantil da Sir Robert Ho Tung, 50 são filipinas, 23 são chinesas e os restantes tailandeses. No ensino primário, num total de 166 alunos, 100 são filipinos, 66 são chineses e há um birmanês.

Ambas as escolas utilizam o cantonês como língua veicular e seguem os planos curriculares recomendados e aprovados pela DSEJ. No entanto, adaptaram as metodologias de ensino, de modo a ajustarem-se aos diferentes ritmos de aprendizagem das turmas, em muitas das quais, há mais estudantes estrangeiros do que chineses.

Por exemplo, no primeiro ano do ensino primário da escola da Taipa há apenas uma criança chinesa na turma de 11 alunos. Os restantes são filipinos e há um tailandês. É em coro, aparentemente afinado, que aquelas crianças respondem às perguntas colocadas em cantonês pela professora. “Este já é o quarto ano em que estas crianças aprendem em chinês, pelo que já falam e percebem e sabem usar a língua para comunicar com a professora”, explica Chan Sio I, subdirectora da Escola Luso-Chinesa da Taipa. A interacção entre aluno e professor, no entanto, acontece de forma mais elementar e o ritmo de aprendizagem é mais lento do que ocorreria numa turma de falantes de cantonês.

O ensino infantil apresenta ainda muitos desafios, explica Chan Sio I. “O número de crianças estrangeiras é superior ao das chinesas, elas não falam nem entendem o cantonês. A escola tem que primeiro ensiná-las a falar, a escrever. Só depois é que elas começam a aprender outras matérias.”

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Imigrantes a crescer

A população imigrante tem um peso relevante na composição demográfica de Macau com reflexos na população escolar. Devido a afluência de trabalhadores não-residentes, entre 2001 e 2011, houve um aumento substancial do número de indivíduos naturais de outros países e territórios, com um total de 14.544 pessoas naturais das Filipinas, 7199 do Vietname e 6269 da Indonésia, representando no conjunto 5,1 por cento da população total, segundo os Censos de 2011.

O contexto cultural e familiar bastante diferenciado em que vivem as crianças estrangeiras influencia e pode atrasar o processo de aprendizagem, dado o esforço que as crianças são obrigadas a fazer para se ajustarem aos diferentes ambientes da escola, de casa e do círculo de amiguinhos que, entre si, comunicam na língua materna.

Na prática, defendem os diversos professores abordados ao longo da reportagem, seja qual for a nacionalidade do aluno, a assimilação da língua chinesa, ou de qualquer outro idioma, vai sempre depender do grau de estimulação que as crianças possam receber não só na escola, mas também noutros contextos de ensino, incluindo em aulas de apoio ou mesmo em casa com a ajuda dos pais ou avós.

 

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Talentos multilingues

 

Simon, de 16 anos, revela-se destemido e desembaraçado no uso do inglês, que aprendeu nos cursos de verão que frequentou durante três anos em escolas no Reino Unido. Afirma que quer seguir o curso de Direito para ser advogado, assim que terminar o ensino secundário na Escola Secundária de Pui Ching. É em Macau, onde nasceu, que tenciona exercer a profissão. Simon pondera tirar a licenciatura de Direito em Portugal, por forma a facilitar a integração no sistema legislativo da RAEM, onde o Direito tem raiz portuguesa. Ele sabe que um jurista bilingue tem meio caminho andado para conseguir um emprego de topo. De ascendência chinesa, Simon tem como língua materna o cantonês, fala inglês fluente, e está empenhado em aprender o português para fazer carreira profissional. Simon, representa uma reduzida percentagem da população que teve a possibilidade de aperfeiçoar a língua no estrangeiro, pois em geral faltam oportunidades para os estudantes locais praticarem as línguas assimiladas.

O cantonês é o idioma mais usado no dia-a-dia por 83,3 por cento dos 552.503 habitantes de Macau, conforme dados dos Censos de 2011. Há uma pequena fracção da sociedade que é bilingue chinês-português. Uma grande parte dos funcionários públicos e quadros superiores em Macau é bilingue e alguns executivos de topo na indústria bancária e do jogo dominam e falam com fluência mais do que dois idiomas, como o português, o cantonês, o inglês e, por vezes, o mandarim.

Macau tem vindo a acentuar a sua faceta multicultural em resultado da liberalização da indústria do jogo, do boom económico que lhe está associado, do turismo e do afluxo de mão-de-obra imigrante, factores que estão a transformar o tecido social da cidade. Os Censos de 2011 assim o comprovam, o uso do mandarim e do inglês aumentou na última década, em resultado da imigração e do acréscimo de trabalhadores não-residentes. Aos funcionários públicos é exigido que dominem, pelo menos, uma das línguas oficiais, a chinesa ou a portuguesa.

O ensino multilingue é uma das características do sistema educativo em Macau e a maior parte das escolas da RAEM proporciona educação em mais do que uma língua. No entanto, apesar das gerações mais novas contactarem com diferentes línguas na escola, o grau de conhecimento e de fluência é muito diverso e as competências linguísticas não são iguais em todas as línguas.

 

A olhar para o futuro

O governo da RAEM reforçou nos últimos anos as políticas e o financiamento para promover o ensino das línguas. A lei de Bases do Sistema Educativo Não Superior, em vigor desde 2006, prioriza o ensino das línguas oficiais, e estipula que as escolas oficiais devem adoptar o chinês ou o português como língua veicular e proporcionar aos alunos a oportunidade de aprender ainda outra língua oficial. No que refere às escolas particulares, a lei diz que estas “podem adoptar como línguas veiculares quer as línguas oficiais quer outras línguas”. As instituições particulares que adoptam outras línguas, contudo, “devem proporcionar aos alunos a oportunidade de aprenderem, no mínimo, uma das línguas oficiais”.

A divulgação do mandarim e a aprendizagem adequada e eficaz da língua portuguesa foram determinadas como prioridades no contexto das políticas do ensino da língua na área do ensino não superior da RAEM. O português ganha significado para “manter e desenvolver Macau enquanto plataforma de intercâmbio da cultura, comércio e economia entre a Grande China e os países de língua portuguesa”. Por outro lado, as exigências de desenvolvimento de Macau como cidade internacional colocam o ensino da língua inglesa e a formação de talentos habilitados noutras línguas estrangeiras como condições para o desenvolvimento socioeconómico.

 

Sistema heterogéneo

Pais e encarregados de educação continuam a preferir que os filhos prossigam a formação no ensino superior e dão preferência à aprendizagem do inglês na escola, pois acreditam que esta opção oferece mais futuro em termos de mercado de trabalho. Daí que procuram escolas orientadas para esse efeito. As escolas privadas, por sua vez, ajustam os planos curriculares de acordo com os objectivos dos estudantes e adoptam uma abordagem da educação centrada no ensino do inglês e do chinês.

O cantonês impera enquanto língua veicular no universo escolar, composto por 78 escolas, 11 públicas e 67 privadas. O chinês é usado em cerca de 85 por cento das 119 unidades escolares, seguido do uso do inglês em 11 por cento e do português, em quatro por cento.

Regra geral, nas escolas particulares, que são a maior parte e onde estudam 96 por cento dos alunos de Macau matriculados no ensino regular, o inglês impõe-se como segunda língua e o português é uma disciplina opcional. Somente nas escolas oficiais, onde estudam 3118 alunos, o que corresponde a pouco mais de quatro por cento do total em Macau, o português surge como a segunda língua e o inglês e o mandarim são introduzidas como línguas estrangeiras.

 

Português com novo fôlego

Na Escola Secundária Luso-Chinesa Luís Gonzaga Gomes são sobretudo portugueses ou adolescentes com ascendência mista (portuguesa e chinesa) os alunos que frequentam a secção portuguesa da escola secundária oficial. Apesar de poucos, há também residentes de Macau de ascendência chinesa que optam pelo ensino veicular em português, por forma a estudarem Direito em Portugal. “Há uma grande procura de talentos bilingues em Macau e os nossos estudantes podem terminar o secundário falando dois idiomas”, refere Leong Iao Cheng, director da Luís Gonzaga Gomes.

A expectativa de obter um emprego na função pública é a grande motivação que leva os jovens a aprenderem português. O sector do turismo e, sobretudo, o ramo da hotelaria constituem também saídas garantidas para os talentos multilingues que se lançam no mercado de trabalho, refere Chan Ieng Lon, director da Escola Luso-Chinesa Técnico-Profissional. Esta escola pública oferece oito cursos vocacionais em diferentes áreas, incluindo técnicas de turismo, tradução e interpretação, design e produção de moda e electrónica. “Há muita procura de bilingues, por isso, estamos sempre a motivar os alunos a aprenderem português. Com duas línguas, os residentes de Macau podem encontrar empregos de topo na indústria hoteleira e do turismo, seja no sector público ou no privado”, refere o subdirector King Ngaida.