Escola de calceteiros | Olhar o chão

A Escola de Calceteiros de Lisboa forma homens e mulheres que querem aprender a trabalhar a pedra que todos pisam e poucos olham

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Texto Mónica Menezes | Fotos Paulo Cordeiro

Em Portugal

 

Sentado num minúsculo banco de madeira, curvado, pedra numa mão e martelo noutra. Aos 40 anos, Luís, filho de calceteiro, sempre viveu a apreciar o trabalho que o pai fazia no chão. Nunca aprendeu essa arte até ao dia em que ficou desempregado. Dentro da sua área – montador de estrutura metálicas – já não encontrava um rumo, a luz ao fundo do túnel que precisava para continuar a ter uma vida digna. Então, lembrou-se das mãos do pai, dos desenhos que ela fazia com as pedras e pensou: “Porque não?”. A Escola de Calceteiros de Lisboa deu-lhe a esperança que precisava para voltar a entrar no mercado de trabalho. Primeiro as aulas teóricas de História, de Português, de Geometria… Só depois é altura de entrar em campo, ou seja, só depois se começa a mexer na pedra e a perceber o que se pode fazer com ela.

“Conseguir partir a pedra é um passo bastante demorado que pode levar entre um a três meses até os alunos saberem fazer relativamente bem. Na perfeição só ao fim de muitos anos é que o conseguem”, conta Nuno Serra, um dos formadores do Curso de Calceteiros. É um trabalho duro que exige um grande esforço físico. Nem todos aguentam. “O ideal seria ter só pessoas jovens a aprender esta arte, mas não é isso que acontece. Temos alunos entre os 21 e os 54 anos e este é um trabalho muito manual que exige um grande investimento a nível do esforço físico. Por exemplo, num dia, se for calçada corrida um calceteiro consegue fazer 20 metros quadrados, mas se for com desenhos dificilmente ultrapassa os dois ou o máximo de cinco metros quadrados por dia. É esgotante. Isso só é suportável se quem vier aprender tiver um enorme gosto por esta profissão.”

Mas a realidade conta uma história diferente. São cada vez menos a inscreverem-se no curso, são cada vez menos os que suportam o calor a queimar-lhes o rosto, o frio a gretar-lhes as mãos, o corpo curvado durante horas que parece que nunca acabam. Entre as décadas de 1960 e 1970, a Câmara de Lisboa contava com cerca de 400 calceteiros ao seu dispor. Nos anos seguintes, o número baixou drasticamente para 80; à entrada do século XXI só havia 24 e nos últimos dois anos já se contam apenas 11.

Não é trabalho que cative os mais jovens. “Alguns até vêm aprender, mas mal lhes surge uma oportunidade melhor abandonam a escola”, explica Luísa Dornellas, directora do departamento de Desenvolvimento e Formação na Câmara Municipal de Lisboa. O curso é financiado e, ao contrário do que se possa pensar, há muitas oportunidades de trabalho.

Com a crise que o país atravessa, ouvir falar em oportunidades de trabalho pode fazer soar alguma campainha. Hoje em dia, e cada vez mais, a calçada portuguesa está na moda. Um espaço comercial ou até o jardim de uma casa são alguns de muitos trabalhos que um bom calceteiro pode fazer. E será bem pago. “Há muitos pedidos, por exemplo, para o estrangeiro. Quem vive fora e quer deixar a sua marca e agradecimento no país que o acolheu, fá-lo muitas vezes através da oferta de um pátio em calçada portuguesa e pede-nos ajuda para encontrar um calceteiro competente”, revela Luísa Dornellas. E acrescenta: “Há calçada portuguesa onde há portugueses: Angola, São Tomé e Príncipe, Macau, Timor, Moçambique, Venezuela, Holanda, França, Bélgica…”

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Olhar para o futuro através do passado

Não é só de formação de novos calceteiros que vive esta Escola. Luísa Dornellas acredita que a calçada portuguesa poderá ser candidata a Património Municipal ou até Nacional e, por isso, é preciso não só preservar, mas também pôr cada vez mais a calçada nas bocas do mundo. Foi o que aconteceu na Expo 98 quando foi feito um grande investimento público para mostrar aos milhares de visitantes algo genuinamente português com o acrescento de estar “escrito” no chão a história do passado do país no Parque das Nações, em Lisboa. “Foi feita uma abordagem contemporânea, mas os temas foram as descobertas marítimas e a indústria do mar”, conta Nuno Serra.

A abordagem mais contemporânea que já se deu à calçada portuguesa foi feita no Porto através de QR Codes. No mesmo dia, à mesma hora – tendo em conta o fuso horário, claro, foi inaugurado um QR Code na cidade Invicta e no Rio de Janeiro que celebra os 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil. É com os olhos a brilhar de entusiasmo que Luísa Dornellas fala sobre este modernismo. “É preciso saber aliar o passado ao futuro. Por exemplo, no número 100 do Chiado também há outro QR Code com informações turísticas.”

Os turistas, portugueses e estrangeiros, são, aliás, a grande “preocupação” da escola dos calceteiros. Há que sensibilizá-los para o chão que pisam e a melhor forma de fazer isso é através de passeios organizados e, até, de peddy-papers. Há circuitos específicos para os alunos do 1.º e 2.º ciclo que visam não só dar-lhes a conhecer a história da calçada mas, acima de tudo, ajuda-os a fazer uma interligação com o programa de Matemática – disciplina tão pouco querida da maioria dos alunos – através da observação das formas e sólidos geométricos. “É narrada uma história cujas as personagens são as pedras da calçada e as crianças têm ainda a oportunidade de simular o trabalho de um calceteiro”, conta a directora da Escola.

Já as visitas guiadas ou os peddy-papers são feitos a pensar nos mais crescidos e incluem vários percursos da cidade de Lisboa. É a melhor forma de conhecer a história do país em simultâneo com a história da calçada. “São grandes apostas da Escola e, até agora, têm tido muito sucesso”, realça Luísa, orgulhosa.

Na Escola de Calceteiros de Lisboa a hora de almoço aproxima-se e o sol continua a bater forte no rosto dos alunos. Luís pode ter passado uma vida inteira a olhar para as mãos do pai, a perceber como ele segurava o martelo e a pedra, mas ainda não tem a técnica. O tempo e a persistência farão dele um calceteiro, um homem que, tal como o seu progenitor, contará através das pedras a história do seu país. “É um trabalho duro, muito duro mesmo, mas é uma profissão muito bonita”, realça Luís.

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História da escola

Foi em 1986 que surgiu a Escola de Calceteiros de Lisboa. A preocupação do presidente da câmara da altura, Nuno Krus Abecassis, era a de não se perder os conhecimentos sobre calcetar, tal como angariar mais calceteiros, dar-lhes a conhecer a história da calçada e divulgar esta arte. Não deixar cair no esquecimento termos como calcetar “ao quadrado”, “desdobrar da pedra” e “malhetar” é, ainda hoje, um dos maiores objectivos desta escola. Só assim poderá estar assegurada a sobrevivência de uma profissão genuinamente portuguesa que, através de pedras ao lado de pedras, conta muita da história do país.