Negócios | A hora do café

A forma como Macau olha para o café tem vindo a alterar-se, com o compasso acelerado de abertura de estabelecimentos que privilegiam a qualidade do que colocam no interior de uma chávena. A crescente procura confirma que, mesmo num recanto do ancestral império do chá, o café trilha o seu caminho na tentativa de encontrar terreno fértil para crescer

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Texto Diana do Mar | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Os ponteiros marcam cinco horas no relógio de parede de um café de Macau, localizado a centenas de metros do rebuliço do coração da cidade. A reduzida dimensão do espaço, com sentido estético, fez com que um grupo de uma dezena de amigos logo preenchesse as escassas mesas e cadeiras disponíveis. O cenário reproduz-se como um eco em meia dúzia de estabelecimentos, onde quem lá entra só procura – e, muitas vezes, apenas encontra – um produto: café.

É assim no “Philo”. De portas abertas somente desde Fevereiro nasceu da “paixão” do seu jovem proprietário pelo café, aguçada com um part-time durante os tempos de estudante universitário. “Enquanto estava a estudar Psicologia na universidade trabalhava como barista, mas gostei tanto da experiência que pensei que podia abrir o meu próprio negócio”, conta Austin Cheong, de 25 anos, que optou por se lançar à aventura mesmo antes de terminar a licenciatura.

Pelas portas de correr do “Philos” passa uma média de 50 clientes por dia, na sua maioria jovens como Austin Cheong, atraídos pelo fenómeno do speciality coffee, com cada vez mais apreciadores em Macau. “Há clientes que querem provar novos sabores e combinações, mas muitos procuram aqueles que já lhes são mais familiares”, explica o jovem, que bebe sete a oito cafés por dia, sem contar com as “provas” que faz sempre que tira um.

Apesar de constatar um crescente interesse, Austin Cheong defende que, de certo modo, “as pessoas de Macau ainda estão mais focadas nas sobremesas e/ou noutros produtos além do café, o que faz com muitos estabelecimentos optem por manter outro tipo de oferta”, como doces ou sandes, ao contrário da ‘filosofia’ do “Philos”, pelo que, defende, afigura-se “necessária uma maior promoção do café de origem e de qualidade únicas”.

Foi precisamente com esse objectivo em mente que Keith Fong, também natural de Macau, abriu o “Single Origin”, em Janeiro do ano passado: “Apercebemo-nos de que não havia este tipo de espaços incidindo no fenómeno do speciality coffee e achámos que seria interessante mostrar o conhecimento, a arte, o profissionalismo e a qualidade que está por detrás do café”.

Embora tenha cada vez mais clientela, Keith Fong diz que não se pode propriamente dizer que o “Single Origin” está já totalmente orientado para o lucro: “Acreditamos que mais pessoas vão aderir e queremos fazer com que este tipo de café se torne cada vez mais popular, permitindo mudar a atitude”, sublinha o jovem, para quem “existe ainda uma percepção muito forte sobre o café”, nomeadamente assente no “tradicional amargo”.

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Variedade de grãos

O “Single Origin” salta à vista numa esquina pelo moderno design interior, onde quatro funcionários são chamados a operar diversas máquinas, incluindo as de pour over, expostas no balcão do exíguo espaço. Sob a chancela da “Blooom Coffee House”, ali também se comercializam pequenos sacos com grãos de café. As combinações das mais variadas origens, que lhe conferem naturalmente distintos aromas e sabores, são diversas.

“Um café pode ser algo de realmente único”, realça Keith Fong, que inaugurou, no início do ano, outro espaço. Embora o “Communal Table” também tenha a sua “assinatura”, o conceito é “um pouco diferente” do “Single Origin”, conforme explica a sua assistente Joyce Vong. “O principal foco é o café, mas também temos uma selecção de sandes e de outros refrescos, sem esquecer o chá”, explica. O café não deixa, contudo, de ser o “especial”, porque o princípio continua a ser o de “partilhar algo diferente com a comunidade”. “O núcleo do negócio é o café e fazemos um esforço para nos mantermos actualizados, trabalhando na qualidade do produto”, realça Joyce Vong. Os funcionários, à semelhança dos do “Single Origin”, fizeram um curso para se tornarem especialistas na preparação de café e de bebidas à base de café, complementando a formação que recebem dia-a-dia in loco.

“A origem do café que servimos é vasta: vai de África (sobretudo Etiópia e Quénia) à América do Sul. Importamos os grãos verdes e depois temos uma unidade de torrefacção em parceria com uma empresa local. A oferta pode depender da época do ano ou do fornecedor e também temos uma marca da casa, havendo um em que juntamos dois tipos distintos de grãos”, especifica Joyce Vong.

Já o “Terra”, que funciona desde Julho de 2012, é fruto da parceria de dois jovens locais, confessos “apaixonados” por café, que decidiram colocar à prova as suas capacidades como independentes atrás de um balcão após experiências anteriores em cadeias como o Pacific Coffee e Starbucks. “Aprendemos a componente da gestão e da técnica e depois inscrevemo-nos em dois cursos da ‘Blooom Coffee House’ acreditados pela SCAE (Speciality Coffee Association of Europe)”, conta Kenny, 31 anos, enquanto Ron, 27, prepara a “La Cimbali” para servir mais um cliente acabado de chegar.

“O café que queremos promover é especial, de elevado valor acrescentado”, destaca o proprietário do “Terra”, assim baptizado para remeter para as raízes, para o solo e origem e para a inerente preocupação com o ambiente. A clientela, maioritariamente local, procura a verdadeira essência do café – principalmente das plantações do Brasil, Colômbia e Indonésia –, embora os mais reticentes também encontrem bebidas alternativas.

À semelhança dos demais espaços do género, o preço de uma chávena de café depende, portanto, da qualidade e do tratamento e preparação exigidos.

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O (en)canto do café

O culto também chegou à Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau (MUST, na sigla em inglês), onde foi montado o centro de formação “The Seasons” que inclui no espaço do restaurante o “Coffee Corner”, onde o specialty coffee se apresenta como o produto de bandeira. Operacional desde Maio de 2013, figura como um espaço privilegiado de aprendizagem para estudantes de cursos ligados à hotelaria e restauração sob a orientação de um instrutor com certificação da SCAE.

O desafio de montar o espaço recaiu sobre Jeremy Souders, um norte-americano que deixou o emprego num casino para deitar mãos à obra no “Coffee Corner”, onde continua sobretudo focado na certificação da qualidade e na formação.

Apesar de escondido e afastado das ruas movimentadas da cidade, o “Coffee Corner”, com uma média de 200 a 300 clientes por dia, beneficia de todo o universo que gira à sua volta: além da própria universidade, onde se integra, há a Escola Internacional de Macau (TIS, na sigla em inglês) e resorts. “O campus da TIS é a principal fonte de clientes por causa dos pais que vão levar e buscar os filhos à escola. Depois há o pessoal dos hotéis e casinos à nossa volta”, explica Jeremy Souders, que se diz capaz de beber “até 20 cafés por dia”.

“Os alunos demonstram muita paixão em aprender o padrão, a parte científica que envolve as diferentes fases do processo até o café chegar à mesa. Mostram muito interesse e acham extraordinário o sabor. Afinal, alguns estão habituados a beber café de lojas de conveniência”, relata Jeremy Souders. Embora o principal objectivo seja esse – o da formação dos estudantes da MUST –, o consultor reconhece que a componente comercial se tem vindo a impor, pelo que hoje arrisca falar num peso de “50-50”.

Actualmente, o “Coffee Corner” tem dois fornecedores: a local “Blooom Coffee House” e uma empresa de Hong Kong com o selo do chamado comércio justo, à qual são requisitados grãos do Brasil e da Indonésia. “Para o consumidor é uma garantia de que os produtores têm condições mínimas, pelo que vale a pena saber que pelo menos tentam promover isso”, realça.

Jeremy Souders também lecciona na “Blooom Coffee House”, ao lado de um dos seus mentores, Keith Fong, o mesmo dos cafés “Single Origin” e “Communal Table”. Os dois, com conhecimentos adquiridos na Europa, são os únicos formadores em Macau com certificação SCAE e, portanto, acreditados para atribuir diplomas a quem completa os diferentes módulos, contra os sete que se contabilizam na vizinha Hong Kong, de acordo com a lista da entidade disponível no seu portal na Internet.

Criada em 2011, a “Blooom Coffee House” permite aos seus formandos adquirirem conhecimentos, técnicas e competências profissionais abrangentes de barista, mas também área sensorial ou da torrefacção, bem como cursos de introdução com workshops mais simples à medida das necessidades locais, seguindo o padrão cada vez mais exigente da indústria do café, de acordo com Keith Fong. A título de exemplo, um curso de barista com uma duração de 20 horas pode custar entre 7000 e 8000 patacas, dependendo da componente prática. Em média, por ano, existe uma centena de interessados, segundo o mesmo responsável.

Além da formação, a “Blooom Coffee House” tem uma vertente empresarial, dado que faz a torrefacção dos grãos de café localmente para garantir a sua qualidade e frescura, oferecendo uma ampla gama de várias origens, a qual acaba por chegar às mesas de muitos dos que decidiram dedicar-se ao speciality coffee.

Seja servido quente ou frio, com ou sem aditivos, curto ou comprido, mais ou menos torrado, com origem em África ou na América do Sul, ou com um número maior ou menor de combinações, o café tem vindo a ganhar cada vez mais adeptos em Macau, terra que conhece os primeiros “aventureiros” na viagem de exploração a este novo mundo.

 

 

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Um espaço em constante evolução

Depois de sentir a influência da secular presença portuguesa e a chegada dos americanos, com a febre do Starbucks e sucedâneos como o Pacific Coffee, a integração do café como espaço no tecido de Macau vive hoje uma nova fase. Nos dias que correm a moda passa por espaços exclusivamente focados em promover um produto de qualidade, geridos por jovens empreendedores que investiram na formação na área antes de irem para trás do balcão. “É um fenómeno interessante, provavelmente resultado do marketing iniciado por espaços como o Starbucks, que publicitaram o produto de uma forma que o tornou muito atractivo para uma cultura que não é tradicionalmente voltada para o café”, observa Timothy A. Simpson. Na óptica do professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Macau verifica-se uma nova mudança de paradigma, com esta “vaga de novos cafés com design apostados em vender um produto com qualidade e em fazer a diferença”.

“Tem-se assistido ao emergir de novos tipos de cafés que se distinguem dos que estávamos habituados a ver”, considera o docente que publicou, em 2008, um artigo sobre a comercialização do café em Macau, no qual traçava a evolução e o papel que esses espaços (ainda) desempenham na vida social, afirmando-se quase como uma “extensão do espaço público”. Entre as principais diferenças destaca o facto de os cafés se estarem a tornar cada vez mais profissionalizados, num fenómeno que, ressalva, não é “exclusivo de Macau”. “As pessoas têm ficado, de certa forma, fascinadas pela variedade de grãos, pelos diferentes sabores do mundo e por toda a experiência”, o que as levou a procurar adquirir conhecimentos.

Timothy A. Simpson mostra-se, porém, surpreendido com a forma como o próprio negócio subsiste face a obstáculos como os elevados preços praticados no mercado imobiliário: “Interrogo-me sobre quão lucrativo pode ser, sobre o volume de café que têm de vender para pagar a renda”. Em paralelo, “regra geral, são espaços muito pequenos, o que, embora compreensível face ao valor por metro quadrado, limita naturalmente o número de clientes, dos quais muitos ficam sentados durante horas apenas com um expresso a ler ou a estudar, pelo que não sei como podem fazer dinheiro”, observa. À boleia dos novos espaços, diz, poder-se-ia era dar mais um salto em frente, com a aposta em esplanadas.

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