Jogos Asiáticos 2014 | O longo caminho para a glória

Sete medalhas, três de prata e quatro de bronze. Em Incheon, na Coreia do Sul, Macau obteve uma das suas melhores prestações de sempre nos Jogos Asiáticos. Mas a 17.ª edição do evento, que decorreu em Outubro, marcou também um virar de página para o desporto local. A prova foi a última de Jia Rui, de Cheung Pui Si e de Paula Carion, os atletas que mais medalhas conquistaram com as cores da RAEM.

Paula Carion

 

Texto Marco Carvalho | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Largos dias têm cem anos. Os de Li Yi e de Huang Junhua assemelham-se a centúrias quase desde sempre: começam cedo, desenrolam-se com a mecânica regularidade de um pêndulo e terminam com uma refeição espartana, já a lua se alça há muito sobre o horizonte. Aos 22 e aos 23 anos, respectivamente, os atletas garantiram um lugar nos anais da história do desporto de Macau, mas a longa caminhada para o pódio – Li e Huang foram dois dos sete representantes do território que subiram à tribuna de honra na 17.ª edição dos Jogos Asiáticos, em Incheon, na Coreia do Sul – não se fez sem percalços e sem uma grande dose de abnegação.

O destino de Huang Junhua cruzou-se com o wushu aos seis anos e a modalidade é desde então o compasso a partir do qual se estrutura um quotidiano e uma vida. “Treino seis dias por semana, de segunda a sábado. Tenho aulas todos os dias de manhã, inclusive aos domingos. Ao final da tarde treino com os meus colegas entre três a quatro horas. Jantamos, fazemos os trabalhos de casa e só então descansamos. Esta tem sido a minha rotina desde os seis anos”, diz Huang, sem que se lhe note na voz qualquer nota de desagrado.

Sorriso rasgado e olhar alegre, um corpo sólido, de feições renascentistas, Huang Junhua exala confiança, mas nem sempre assim foi. “Foram precisos muitos sacrifícios para chegar onde cheguei e a ideia de desistir passou-me muitas vezes pela cabeça. Fracturei o osso da perna esquerda e nessa altura pensei em desistir. Mas o wushu, mais do que um modo de vida, é para mim um sonho. Quero ser o melhor do mundo. Foi esse sonho que me fez continuar.”

Huang Junhua ainda não é o melhor do mundo, mas a medalha de prata alcançada em Incheon, na prova que combinou as categorias de nanquan e de nangun, ajudou a dissipar fantasmas. O galardão colocou o atleta no mapa do wushu do continente asiático e elevou-o ao estatuto de grande promessa da modalidade que mais longe levou o nome do território fora de portas. Das 28 medalhas conquistadas por Macau nas sete edições dos Jogos Asiáticos em que se fez representar, 13 foram de atletas de wushu.

A disciplina, aliás, continua a ser a que oferece maiores garantias de novas medalhas, defende Zeng Tieming, o seleccionador de wushu da RAEM. “Estes dois atletas, a Li Yi e o Huang Junhua, competiram nos Jogos Asiáticos pela primeira vez, mas antes de terem obtido um bom desempenho em Incheon, já tinham participado com sucesso noutras competições internacionais. A Li Yi, por exemplo, conquistou uma medalha de ouro no Campeonato Asiático de Wushu e o Huang Junhua foi segundo no Campeonato do Mundo. São atletas muito talentosos e o facto de serem ainda jovens faz-me acreditar que poderão fazer ainda melhor”, sustenta o técnico.

Cheung Pui Si

Os trunfos ditam os vencedores

A par de Huang Junhua, Li Yi, de 22 anos, é outra atleta a quem os Jogos Asiáticos elevaram a um novo patamar de esperança. A atleta arrecadou a medalha de prata na prova combinada das categorias de jianshu e de qiangshu. “Eu e o Huang Junhua temos uma rotina muito similar. Treinamos todos os dias e quase não temos folga. Foi a primeira vez que competi nos Jogos Asiáticos e investi muito na preparação. Não queria ter de voltar para Macau de mãos a abanar. Fiquei muito feliz com a medalha de prata. Mas tenho a sensação de que posso fazer melhor. Se trabalhar mais, acredito que poderei regressar com uma medalha de ouro da próxima vez”, afirma jeito de promessa.

Mais do que brilhar nas principais montras do wushu mundial, Li Yi e Huang Junhua têm em mãos a incumbência de suceder o mais bem sucedido atleta da história do desporto da região. Em 2010, Jia Rui inscreveu o nome da RAEM a letras douradas no livro de honra da principal competição desportiva do continente asiático. O atleta tornou-se o primeiro desportista a conquistar com as cores da RAEM uma medalha de ouro nos Jogos Asiáticos, ao bater a concorrência na prova combinada das categorias de daoshu e de gunshu.

Jia voltou a competir na Coreia do Sul e a celebrar nova conquista. Um segundo lugar no changquan possibilitou a terceira subida de Jia Rui ao pódio em outras tantas edições dos Jogos Asiáticos, naquela que foi a sua última performance. O atleta mais bem sucedido da história do desporto de Macau despediu-se em Incheon da alta competição, mas a sua retirada não deve ser vista como um drama, adverte Zeng Tieming. “Da primeira vez que ele competiu, não conquistou nada. E porquê? Era jovem e não tinha experiência. Não tinha atingido o seu melhor nível. Com os anos tornou-se um atleta mais maduro e é normal que tenha conseguido bons resultados”, reconhece o treinador. “A mesma teoria se aplica aos outros atletas que hoje trabalham connosco. Se eles se esforçarem, estou convencido de que poderão continuar a oferecer bons resultados a Macau.”

José Tavares partilha da boa fé de Zeng Tieming. Para o presidente do Instituto do Desporto de Macau (IDM), a despedida de Jia Rui não fragiliza a RAEM, nem irá comprometer o desempenho do território em grandes competições internacionais, desde que se acautele atempadamente o futuro. “O abandono do Jia Rui não é uma questão fácil de digerir, mas não podemos parar. A Associação Geral de Wushu já se apercebeu desta questão e está a preparar terreno para que nos próximos jogos Macau possa conquistar mais medalhas. Quem sabe até se não poderemos celebrar um novo ouro?”

Li Yi

Entre ases e manilhas

Só o tempo poderá dizer se a 17.ª edição dos Jogos Asiáticos pauta ou não um virar de página para o desporto de Macau. Para além de Jia Rui, também Cheung Pui Si e Paula Carion competiram na Coreia do Sul pela última vez em Jogos Asiáticos. A atleta macaense ainda disputou em Novembro, em Bremen, o Campeonato do Mundo, mas Cheung Pui Si já pendurou o kimono. Com o abandono das duas atletas, o karaté-do da RAEM fica sem duas das suas mais sólidas protagonistas. “No que me diz respeito, creio que basta. Quero ter tempo para fazer outras coisas. Dediquei-me durante muitos anos ao karaté e acho que chegou a hora de dar oportunidade aos mais novos. Talvez eles possam obter melhores resultados do que eu. Isso me deixaria muito feliz”, reconhece Cheung, de 36 anos.

Em sete participações nos Jogos Asiáticos, Macau arrecadou 28 medalhas, uma de ouro, nove de prata e 18 de bronze. Dos 28 galardões conquistados por atletas do território, dez foram ganhos por Jia Rui, Paula Carion e Cheung Pui Si. Antiga vice-campeã asiática de kata, Cheung esteve em quatro edições dos Jogos Asiáticos e em todas subiu ao pódio. Paula Carion só não igualou o registo da colega porque marcou presença em menos uma edição da prova. A quarta ida aos Jogos Asiáticos se afigura muito improvável. “Não me parece que venha a competir daqui a quatro anos. Uma das questões que se coloca é a da idade e, a meu ver, ter participado em três edições é já bastante bom. Mas vou competir no Campeonato Asiático da modalidade no próximo ano, e depois disso vou tentar perceber como me sinto e como as coisas evoluem. Vou continuar a competir enquanto tiver vontade”, admite a atleta macaense, sem acusar o desgaste de mais de duas décadas de treinos, exercícios e rotinas.

Paula Carion morava no Canadá e tinha nove anos quando fez do tatami um improvável campo de batalha. O gosto pela modalidade não se esbateu com o regresso a Macau e, em 2005, a atleta saltou para a ribalta do desporto da região ao conquistar uma medalha de ouro na 4.ª edição dos Jogos da Ásia Oriental, que decorreu em Macau. Ao longo da última década, Paula Carion foi uma das mais bem sucedidas protagonistas de uma geração de atletas que levou longe o nome do karaté de Macau, mas nem as duas medalhas de bronze conquistadas em Incheon iludem as nuvens negras que pairam sobre a modalidade.

Se nas fileiras do wushu há novos valores que despontam, no karaté a renovação não é ainda um dado adquirido, admite José Tavares. “Olhando para o futuro, estamos cientes de que algumas modalidades poderão enfrentar dificuldades. O karaté é um exemplo. Já alertamos a associação que terá de se aplicar mais na captação e formação de atletas”, argumenta o dirigente.

Para contornar o problema, o IDM e a Associação de Karaté-do de Macau avançaram, em 2009, para a criação da Escola de Karaté Juvenil. Cerca de três dezenas de jovens já estão a treinar e a esperança é de que no grupo, às ordens do iraniano Reza Rashidnia, possa despontar uma nova Paula Carion ou uma nova Cheung Pui Si. “Alguns deles são muito bons, têm muito potencial, mas ainda são muito jovens e, em Macau, os estudos e a educação são uma questão incontornável. A escola consome muito tempo e muita energia. Foram muitos os atletas que deixaram para trás o karaté por causa dos estudos e os que não o fizeram abriram mão de outras coisas. Antes de participar nos Jogos Asiáticos não tive vida social durante mais de seis meses”, diz Paula Carion.

Huang Junhua

No fio da espada

Para além das duas medalhas de bronze no karaté e das três de prata no wushu, Macau notabilizou-se na Coreia do Sul também no taekwondo, com Liu Qing e Wang Junnan a garantirem dois outros terceiros lugares. A modalidade tornou-se a quinta a oferecer um lugar no pódio à RAEM, depois do wushu, do karaté, dos saltos para a água e do culturismo. Em Incheon, taekwondo, karaté e wushu foram a santíssima trindade com que se escreveu o sucesso do desporto do território, mas José Tavares está convicto de que os atletas locais poderão vir a dar cartas noutras modalidades. “Estamos agora a apostar em novas modalidades e em disciplinas em que a conquista de medalhas não é de todo impossível. Um bom exemplo é a esgrima. Nos últimos Jogos Asiáticos, os nossos atletas de esgrima assinaram boas exibições, embora ainda não tenham um nível competitivo muito elevado, daí que eu julgue que a esgrima pode ser uma boa aposta”, aponta o presidente do IDM.

A 18.ª edição dos Jogos Asiáticos terá Jacarta como cidade anfitriã e no certame não estarão já nem Jia Rui, Cheung Pui Si ou Paula Carion. Ao longo da última década, os três sacrificaram família e amigos, colocaram de lado estudos e vida social para que vitórias que eram deles se tornassem triunfos de todos.

Na hora do adeus à alta competição, as atletas olham para o passado sem arrependimento e sem saudades do futuro. “Entreguei-me de corpo e alma ao karaté durante muitos anos. Não sinto tristeza. Esta é a altura de parar”, diz Cheung Pui Si, com a mesma convicção com que Paula Carion garante que voltaria a repetir cada treino, cada combate e cada lágrima derramada: “Valeu a pena, a todos os níveis. Espero que alguém olhe para mim e veja nas minhas conquistas não só um motivo de orgulho, mas também um exemplo. Espero que possam abrir mão do conforto e se possam dedicar a algo. Não digo necessariamente ao karaté, mas a algo que os possa fazer olhar para trás um dia e dizer, como eu, valeu a pena.”

Liu Qing

 

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Os sete magníficos de Incheon

Jia Rui

Medalha de prata nos exercícios de Changquan

O mais bem sucedido protagonista da história do desporto do território anunciou o adeus à alta competição depois dos Jogos Asiáticos de Incheon e no seu encalço deixa um legado difícil de ignorar. A medalha de ouro conquistada há quatro anos em Cantão é a mais significativa de um extenso palmarés que inclui quatro títulos de campeão do mundo e mais de duas dezenas de medalhas nas categorias de gunshu, daoshu, changquan e duilian. Nascido a 18 de Fevereiro de 1987, licenciou-se em Educação Física no Instituto Politécnico de Macau e vai agora trabalhar ao lado de Zeng Tieming na descoberta e formação de novos campeões.

 

Huang Junhua

Medalha de Prata nos Exercícios Combinados de Nanquan e Nangun

Aos 22 anos, Huang Junhua dificilmente poderia aspirar a uma melhor estreia na principal competição desportiva do continente asiático. Nascido na cidade de Guiping, na Província de Guangxi, o atleta é um dos mais sérios candidatos a ocupar o lugar de primazia deixado vago por Jia Rui. Há um ano, em Kuala Lumpur, garantiu uma medalha de prata no Campeonato do Mundo de Wushu na categoria de nandao e ficou às portas do pódio nos exercícios de nangun. A participação nos Jogos Asiáticos de Tianjin foi ainda mais favorável, com Huang Junhua a garantir a conquista de uma medalha de prata e três de bronze. É aluno do Instituto Politécnico de Macau.

 

Li Yi

Medalha de Prata nos Exercícios Combinados de Jianshu e de Qiangshu

Nascida na Província de Guangdong, Li Yi iniciou-se na prática do wushu aos oito anos e não demorou a assumir o estatuto de uma das mais sólidas promessas do desporto local. Campeã do mundo no escalão de juniores, a atleta de 22 anos brilhou em Incheon com a conquista de uma medalha de prata, mas também já o tinha feito há um ano, em Kuala Lumpur, quando terminou os exercícios de duilian na segunda posição. Na 6.ª edição dos Jogos da Ásia Oriental subiu ao pódio por duas vezes, ao garantir o bronze nas provas de duilian e de qiangshu, tendo terminado o certame de changquan na quinta posição da geral.

 

Paula Carion

Medalha de Bronze em Karaté, Categoria + 68kg

Nascida a 23 de Setembro de 1982, deu os primeiros passos no karaté aos nove anos, no Canadá, mas a modalidade só se tornou um elemento preponderante do quotidiano da atleta quando regressou a Macau. Com três medalhas de bronze noutras edições dos Jogos Asiáticos, Carion começou a dar nas vistas em 2005, com a conquista de uma medalha de ouro na 4.ª edição dos Jogos da Ásia Oriental. Na última edição do certame, em 2013, a atleta macaense voltou a repetir a presença no pódio, com uma medalha de prata.

 

Cheung Pui Si

Medalha de Bronze em Karaté, Kata

Nascida e criada em Macau, Cheung Pui Si está para o karaté do território como Jia Rui está para o wushu, ainda que não se tenha conseguido distinguir com a mesma magnitude nos grandes palcos internacionais. Em quatro participações nos Jogos Asiáticos, Cheung garantiu outras tantas medalhas de bronze, uma por cada um dos certames em que marcou presença. Notabilizou-se também no Campeonato Asiático da modalidade, tendo-se sagrado vice-campeã asiática na Malásia, em 2007. Cheung Pui Si começou a praticar karaté aos oito anos e durante algum tempo conciliou a prática da disciplina com o ténis de mesa por influência do pai, um antigo praticante da modalidade.

 

Liu Qing

Medalha de Bronze em Taekwondo, Categoria –67Kg

É uma das maiores esperanças dos desportos de combate do território. Na estreia, há um ano, no Campeonato do Mundo de Taekwondo, caiu nos quartos-de-final da prova, disputada na cidade mexicana de Puebla. Em 2012, alcançou em Ho Chi Minh, no Campeonato Asiático da modalidade, o seu primeiro grande resultado enquanto sénior, com uma medalha de bronze. Foi, no entanto, na 6.ª edição dos Jogos da Ásia Oriental que Liu Qing alcançou o seu melhor resultado em competições internacionais, ao garantir o ouro em Tianjin. Nasceu a 28 de Janeiro de 1993.

 

Wang Junnan

Medalha de Bronze em Taekwondo, Categoria +73 Kg

Nascida a 7 de Junho de 1989, Wang Junnan soma já quatro participações no Campeonato do Mundo de Taekwondo, mas nunca se conseguiu afirmar na competição. Estreou-se na principal montra mundial da modalidade em 2007, aos 18 anos, mas só no Campeonato Asiático se conseguiu distinguir, conquistando uma medalha de bronze logo na sua primeira participação no certame. Este ano, no Uzbequistão, a atleta ressentiu-se de uma lesão na zona lombar e não conseguiu melhor do que a quinta posição. Há um ano, em Tianjin, nos Jogos da Ásia Oriental, conquistou um terceiro lugar na categoria em que se notabilizou em Incheon.