Urbanismo | Avenida Almeida Ribeiro

As ruas são os traços de expressão duma cidade. São únicas estas rugas do tecido urbano e cada uma tem uma história para contar. Mas há ruas tão importantes que são capazes de encher vários capítulos da mesma memória urbana. A quase centenária Avenida Almeida Ribeiro é uma delas. Com esta obra esbateu-se a fronteira entre chineses e portugueses, Macau fez-se cidade cosmopolita. Na San Ma Lo, como é conhecida entre os residentes, conjuraram espiões estrangeiros e refugiados chineses, passearam escritores e cineastas embevecidos pelo cenário simultaneamente romântico e exótico. Todos queriam descrever aquele Oriente multicultural e foi em ruas híbridas como a Almeida Ribeiro que primeiro lhe tiraram o pulso

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Texto Patrícia Lemos | Ilustração Rodrigo de Matos | Fotografia Gonçalo Lobo Pinheiro

 

O grande mérito da San Ma Lo reside, provavelmente, na forma como agregou as cidades cristã e chinesa, ligando o Porto Interior e a Praia Grande, dois motores importantes do desenvolvimento local. Afinal, foi a grande razão desta obra, que ainda ajudou a cidade a fazer face ao galopante crescimento da população, apanhando assim o comboio urbano que reformava a Europa. Mas a locomotiva do progresso derrubou muito à sua passagem. Para além das demolições e expropriações, a obra cortou ainda a garra de um dragão que dava bom feng shui a Macau, assim acreditam os chineses que, consta, não eram muito a favor desta obra.

Antes da avenida ser avenida existiam apenas dois braços de terra batida: um com pouco mais de 100 metros que desembocava na Rua dos Mercadores e um outro troço que incluía o Largo do Senado. Durante quase uma década a avenida cresceu em três fases, primeiro construiu-se o troço da praça ao Pátio do Martelo, naquela que foi uma extensão de 62 metros e, dois anos mais tarde, em 1913, arrancaram as demolições. O primeiro alvo a abater foi uma parte do Bazar chinês. Em 1918 foi a vez da casa do comerciante abastado Lin Lian ir abaixo, no cruzamento da Almeida Ribeiro com a Rua da Praia Grande. O terceiro troço, até à Praia Grande, ficou concluído no ano seguinte depois das últimas expropriações.

Apesar do seu espírito agregador, a San Ma Lo esteve sempre dividida entre a actividade comercial que seguia pelas perpendiculares, Porto Interior afora, e a administração pública, concentrada na primeira metade da avenida. Ainda hoje assim é, apesar do comércio não ser tão variado como outrora, daquele já não ser o coração do entretenimento local e das enchentes de turistas terem afastado o consumidor local.

Talhada segundo o figurino europeu, à Almeida Ribeiro acorriam muitos funcionários públicos portugueses que trabalhavam no Leal Senado e nos Correios de Macau e outras gentes atarefadas que visitavam o balcão do BNU ou tratavam de negócios nas muitas empresas que ali tinham o seu escritório montado, como a icónica importadora H. Nolasco. Havia sempre tempo para dar um salto à mercearia Soi Cheong que também era cambista ou passar pela Tabacaria Filipina e ainda afiar a má-língua nos cafés das redondezas. Foi assim durante décadas com os carros a tomarem cada vez mais conta daquele longo braço de asfalto da cidade.

A Almeida Ribeiro era a favorita das promenades de Macau. Havia muito para apreciar: as lojas e o colorido da publicidade, as fachadas neoclássicas dos edifícios públicos e das bonitas moradias de famílias ricas cheias de motivos de art déco e arte nova, sobretudo na segunda metade da avenida. Era até “chique” ir aos sábados ao Apollo e depois do cinema “ir tomar um café ao Ruby”, como recordou Henrique de Senna Fernandes numa palestra em 2002. Os mais boémios, chineses e estrangeiros, ainda se divertiam nos clubes dos hotéis Central e Kuoc Chai, alguns até para alimentar o vício do jogo. Afinal foi na San Ma Lo que nasceu o casulo do jogo de Macau.

A Almeida Ribeiro perdura até aos nossos dias como a principal artéria da cidade. Foi renovada nos anos 1980 mas ali já não moram os famosos cafés, os grandes hotéis com os seus clubes misteriosos, as populares salas de cinema e despareceu grande parte do seu comércio tradicional. Agora a San Ma Lo é mais para turista ver.

 

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Avenida de Almeida Ribeiro (亞美打利庇盧大馬路)

San Ma Lo (新馬路: a-mei-ta-lei-pei-lou-tai-ma-lou)

Traduções possíveis

Estrada Nova

Caminho Novo para os Cavalos

Grande Rua (Avenida) Nova dos Cavalos

 

 

  1. Hotel King Kee/Riviera

O primeiro hotel de Macau abriu no século XIX como King Kee (King Hee), mudando de gerência no início da segunda década do século XX e de nome para Macao Hotel. É depois remodelado por 120 mil patacas e abre como Riviera, tornando-se o favorito dos portugueses e dos turistas de Hong Kong atraídos pelo requinte da sua decoração e bem-estar proporcionado. Ali esteve hospedado o poeta Camilo Pessanha e eram muitos os espiões que se reuniam naquele edifício. Nos anos 1970 foi demolido e hoje é morada do Edifício Comercial Nam Tung.

 

  1. BNU

Foi o primeiro banco comercial de Macau e pioneiro nas suas características ocidentais, apesar de estar em funcionamento com filial desde 1902 só ganhou esta casa própria em 1926, naquele que era então o pólo económico da cidade. Alvo de várias remodelações, a sua grande renovação e ampliação dá-se em 1997, sendo acrescentada uma estrutura moderna no topo sem mácula para a fachada tradicional. Está nas mãos da Caixa Geral de Depósitos desde 2001.

 

  1. Café Ruby

Muito popular entre portugueses e macaenses nos anos 1950, este café enchia aos fins-de-semana antes e depois das sessões de cinema do Apollo que, como a Tabacaria Filipina, ficava nas proximidades. O Ruby reinou como espaço de convívio macaense até aos anos 1960, altura em que o Solmar abriu na avenida da Praia Grande. Terá fechado nos anos 1970. Há vários anos que ali se instalou uma Pizza Hut.

 

  1. Correios de Macau

O primeiro selo de Macau, a Coroa, entrou em circulação em 1884, mas a estação dos correios só se instalou definitivamente no imponente edifício de betão da Almeida Ribeiro em 1929. Ocupou o espaço de várias casas, incluindo a sede da Associação de Beneficência Tong Sing Tong. Nos Correios e Telégrafos de Macau funcionava ainda a Central Telefónica Automática e, em 1933, foi inaugurado o posto de radiodifusão CRY9 no segundo andar do edifício.

 

  1. Cinema/Teatro Apollo

Conhecido entre os chineses como Peng On Hei Yuen, esta sala de cinema com plateia e galeria abriu em 1935 com uma lotação superior a mil pessoas, tendo ainda sido palco de espectáculos nas décadas seguintes. Eram vários os cinemas de Macau, mas o Apollo era um dos mais populares, mantendo-se em actividade durante cerca de 60 anos. O edifício é agora ocupado por uma loja de pronto-a-vestir.

 

  1. Edifício do Leal Senado

A obra original terá sido construída entre 1573 e 1620 e incluía um muro. Era então conhecida como o Pavilhão Senatorial. Um segundo edifício foi ali erguido em 1784 em estilo barroco e a fachada neoclássica, conforme a conhecemos, data da remodelação dos anos 1940. Ali já operou uma cadeia, um tribunal e até uma estação de correios, mantendo-se ainda hoje ali abertas ao público uma capela e a mais antiga biblioteca de Macau que é um dos ex libris da cidade. De Senado passou a Câmara Municipal em 1847 e é desde 1999 a sede do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais.

 

  1. Mercearia e Cambista Soi Cheong

Ainda em actividade mas com sucursais em vários pontos da cidade, esta firma começou com uma mercearia e cambista na Almeida Ribeiro. Depois de abrir em 1935 tornou-se a favorita dos portugueses que lá se abasteciam de tabaco, conservas, vinhos e até gelados. Fornecia ainda as repartições públicas, o exército e a armada e era tal o orgulho que tal constava na sua publicidade. No lugar da Soi Cheong opera agora uma loja de óculos.

 

 

  1. H. Nolasco & Cia

Como a Soi Cheong esta empresa mudou muito desde a sua fundação em 1920. Começou por se dedicar à importação de produtos de Portugal, alargando depois a actividade e abrindo uma agência de viagens em 1947. O negócio continuou a crescer no sector dos serviços, expandindo-se até para fora de Macau. Esta empresa foi fundada por Henrique Nolasco da Silva que também detinha a Pharmácia Popular.

 

  1. Café Safari

Como os cafés Belo e Ruby, este foi um dos espaços de convívio mais populares da San Ma Lo. Consta que era conhecido nos anos 1960 como “O Nosso Café” e era um ponto de encontro da “malta”, leia-se macaenses.

 

10. Hotel President/Central

O Hotel President abriu em 1928 mas não era tão conservador como o seu contemporâneo Riviera. Ganhou fama por ser o primeiro arranha-céus de Macau e pelo animado salão de dança do Clube Hou Hing. O Central, como se viria a chamar dois anos mais tarde, incluía até um cinematógrafo, o famoso restaurante Golden Gate, um jardim no terraço e elevadores eléctricos. Atingiu o apogeu durante a guerra, com os salões cheios de japoneses, refugiados e ocidentais. Foi mesmo motivo de inspiração do escritor Ian Fleming. Manteve o nome no virar do século mas perdeu o fausto. É hoje um hotel decadente de apenas duas estrelas.

 

11. Vitória

O primeiro cinematógrafo de Macau terá aberto em 1910 na Calçada Oriental ou aqui mesmo nesta esquina, reabrindo depois como Teatro Vitória em 1921. Remodelado e modernizado nos anos 1930, este cinema viria a ser demolido em 1971, dando depois lugar a uma sucursal do Banco Tai Fung.

 

12. Loja de Penhores Tak Seng On

A Torre Prestamista e a Casa de Penhores Virtude e Sucesso (Tak Seng On) abriram em 1917. Um exemplo arquitectónico deste milenar negócio chinês, o edifício pertencia à família Kou Ho Ning e prosperou até à década de 1970. O conjunto foi renovado em 2000, a torre foi convertida numa casa de penhores tradicional e abriu três anos depois a par do Clube Cultural que, entretanto, fechou no início de 2014.

 

13. Casino Kam Pek

Foi um dos primeiros casinos de Macau, abrindo as portas em 1963. Há cerca de 15 anos que as máquinas de jogo foram desligadas. Hoje em dia, dá pelo nome de Kam Pek Community Centre e funciona sobretudo como sala de eventos.

 

14. Grand Kuoc Chai

Construído em 1941, este hotel de luxo tinha como grande alvo o mercado chinês. Viveu os melhores dias na II Guerra Mundial como palco de episódios dignos dos melhores filmes de espionagem. Conhecido por muitos como Grand Hotel, neste edifício de dez pisos com motivos de art déco funcionava um salão de dança no primeiro andar e um salão de chá no último com vista panorâmica. A partir do final dos anos 1980 entrou em decadência e, apesar de já ter sido a obra mais moderna da região, o edifício está hoje sem utilização.

 

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