Cabo Verde | “Há condições para catapultar a parceria bilateral a novos patamares”

Júlio Morais descreve uma relação calorosa entre Cabo Verde e China, com dinâmica crescente de negócios. Aponta desafios que é preciso superar, mas sublinha com optimismo que 2015 tem tudo para ser o melhor momento da cooperação entre os dois países

 

 

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Texto Nuno G. Pereira | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

 

Em 2013 afirmou acreditar que 2014 seria o ano de viragem nas relações económicas entre Cabo Verde e a China. Foi isso que aconteceu?

Por força de atrasos imprevistos em estudos de viabilidade, só este ano iremos assinar documentos-quadro de projectos estratégicos da parceria económica bilateral, cada vez mais dominada pela dinâmica de negócios abrangendo áreas importantes da agenda de transformação de Cabo Verde. Se tudo decorrer conforme previsto, a minha premonição vingará este ano, ainda antes do quarto trimestre.

 

Em que ponto está a cooperação entre os dois países?

Há um ambiente favorável, a todos os níveis, nas relações bilaterais, que vêm adquirindo uma intensidade digna de registo. Este ano, a institucionalização do mecanismo de consultas políticas bilaterais e a realização da segunda sessão da Comissão Conjunta de Cooperação Económica, Comercial e Técnica irão reforçar a amizade e a confiança mútuas. Será também a forma de propiciar maior prossecução de projectos comuns em matéria de cooperação económica, consolidando condições para catapultar a parceria bilateral a novos patamares.

 

Há obstáculos?

O maior desafio ao aprofundamento e diversificação das relações económicas reside na concretização dos planos de cooperação já acordados, com estudos prévios de viabilidade consolidados e em curso, nas áreas de economia do mar, turismo, tecnologias da informação e aero-negócios. Tal como acordado pelos dois governos, são projectos que visam a transformação de Cabo Verde numa plataforma segura e competitiva de prestação de serviços às frotas chinesas mercantil, pesqueira e aérea no Atlântico Médio, próximo dos grandes mercados e das principais fontes de matérias-primas estratégicas.

 

Um desafio que também pode ser um contexto vantajoso para o reforço das relações entre China e Cabo Verde.

Sim. É sobre esse pano de fundo que os próximos tempos testemunharão certamente uma maior aproximação entre governos, empresas públicas/ privadas e instituições financeiras dos dois países, na busca de melhores entendimentos e soluções mutuamente vantajosas. Procuramos também ultrapassar constrangimentos prevalecentes: o nosso endividamento público externo, as especificidades vocacionais de desenvolvimento de cada um dos países, as culturas negociais e legislações diferentes, o estádio embrionário das recém-criadas instituições financeiras chinesas no quadro do Fórum Sino-Africano e do Fórum Macau.

 

Como analisa o papel de Macau nessa equação, com ênfase no papel de plataforma entre a China e os países de língua portuguesa?

Em estrita observância do princípio “um país, dois sistemas”, Macau tem protagonizado importante papel na dinamização de contactos institucionais e comerciais entre a China e os demais países participantes no Fórum Macau, e, em particular, com Cabo Verde.

 

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Um país com o qual a RAEM tem ligações antigas.

As relações de amizade e cooperação entre Cabo Verde e Macau remontam há décadas, com a chegada dos primeiros emigrantes cabo-verdianos para trabalhar na função pública macaense, bem antes da transição em 1999 e, alguns, mesmo antes da independência de Cabo Verde. Mas a criação do Fórum Macau veio elevar o patamar de relações, com particular destaque para a intensificação de contactos a nível da cooperação económica, cultural e técnico-institucional. Por outro lado, Macau Plataforma tem servido para aproximar e divulgar Cabo Verde na RAEM e no Delta do Rio das Pérolas, mormente na perspectiva do potencial de cooperação económica e comercial, cuja dimensão e localização era de relativo desconhecimento da China até um passado recente. Hoje podemos falar de evidentes avanços, já traduzidos na projecção de investimentos concretos no meu país, estando agendado para breve o início da execução de um grande projecto de turismo, imobiliário e entretenimento na Praia, capital de Cabo Verde, por um conhecido grupo económico de Macau.

 

Pode dar mais exemplos?

Não posso deixar de referir que, desde 2003 (ano da criação do Fórum Macau), realizaram-se em Cabo Verde dois encontros de empresários da China e dos países de língua portuguesa (2008 e 2012). Além disso, evidencia-se uma crescente participação de empresários de Cabo Verde em eventos económicos em Macau e no Interior da China, assim como várias visitas de delegações empresariais de Macau e interior da China a Cabo Verde. Recordo ainda mais de duas dezenas de acções de formação de curta duração e estágios profissionais, e, por fim, a marcada consolidação do intercâmbio cultural, cujo ponto alto é anualmente traduzido na Semana Cultural e no Festival da Lusofonia em Macau.

 

Mas ainda há muito a fazer, certo?

Em face do potencial latente, sim. A criação do Fundo da Cooperação para o Desenvolvimento entre a China e os Países de Língua Portuguesa, cuja operacionalização é vista com expectativas acrescidas, bem como uma maior atenção da agenda do Secretariado Permanente do Fórum Macau em torno de acções económico-empresariais, por um lado, e a consolidação institucional no seu funcionamento, por outro, indicam que estamos no bom caminho. Da parte dos PALOP, é com muita honra que passaremos a acolher visitas de líderes económicos e institucionais da RAEM, tão importantes para consolidar o ambiente favorável à cooperação multifacetada.

 

Cabo Verde atinge em 2015 os 40 anos de independência. O que representa a data para o país?

Constitui um marco histórico no devir de um jovem país como Cabo Verde, cujos governos conseguiram eliminar o espectro da fome e do subdesenvolvimento, edificar um estado democrático e credível, com bons níveis de infraestrutura física e humana, e elevá-lo à categoria de País de Rendimento Médio (baixo escalão). Isto apesar dos constrangimentos estruturais – descontinuidade geográfica, seca cíclica, escassa população, precariedade de recursos naturais transformáveis – mas também graças ao apoio solidário dos seus parceiros de desenvolvimento. As conquistas animam-nos em prosseguir a gesta da construção de uma sociedade com um futuro cada vez mais promissor e sustentável.

 

Macau terá um papel nas comemorações?

As comemorações estão impregnadas de simbolismo e autoestima, não podendo deixar de destacar o papel relevante da nossa diáspora que, inquestionavelmente, constitui um activo agente de desenvolvimento do país e sem a qual não estaríamos onde estamos hoje. Cabo Verde tem uma população emigrada superior à residente, com as remessas a atingir em média 10 a 12 por cento do PIB, tendo já chegado a cerca de 20 por cento. É neste quadro, considerando que Macau alberga a nossa maior comunidade na Ásia (perto de 60 pessoas, incluindo nove estudantes) que decidimos transferir este ano as comemorações oficiais para a RAEM. Em coordenação com o nosso Consulado Honorário, as duas associações aqui registadas e o apoio das autoridades locais, iremos protagonizar um ambicioso programa, contendo actividades essencialmente culturais, evidenciando a nossa história e a nossa visão do futuro.

 

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Embaixador de Cabo Verde na China desde 2005 e, cumulativamente, no Japão desde 2012, como tem sido a sua experiência na Ásia?

Apesar da sua diversidade étnico-religiosa e a turbulência da sua história, a Ásia é também caracterizada pela profundidade idiossincrática, onde a harmonia do ser/estar do homem consigo próprio (individualmente e, sobretudo, em família, valor de transcendental importância neste continente) e com a natureza constitui um denominador mais do que comum. Foi este traço que mais me marcou, instando sempre a questionar-me sobre o equilíbrio e a pertinência das minhas decisões, numa busca constante da perfeição. Ou seja, o corolário da síntese de forças fundamentais opostas e complementares (o yin e o yang), que se encontram em todas as coisas e que expõem a dualidade de tudo que existe no universo, num dialéctica em transformação contínua. Embora possa parecer contraditório, não foi sem surpresa que também me apreendi da natureza pragmática e orientada para resultados da praxis da vida quotidiana dos asiáticos, atingindo amiúde os limites do razoável quando confrontada com as especificidades acrescidas do mundo judaico-cristão, onde predominam os valores do amor ao próximo, da compaixão e da misericórdia.

 

Tem sido uma aprendizagem única?

Estas descobertas, embora imersas no meu subconsciente desde os tempos da vida académica, adquiriram aqui vitalidade com o passar dos anos, pelo interagir com a sociedade chinesa (já que resido em Pequim) mas reproduzindo-se também sempre que viajava para locais como Índia, Japão, Mongólia, Tailândia ou Vietname. À parte disso, foi de extrema utilidade e um prazer conviver com estas sociedades numa dinâmica de aprendizagem e autoquestionamento (por vezes, até, problemático) constantes.

 

 

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Veterano da diplomacia

Júlio Morais foi o primeiro embaixador de Cabo Verde na China, posição que detém desde Agosto de 2005. Foi também, na sequência dessa nomeação, o primeiro diplomata cabo-verdiano a ser embaixador residente num país asiático. Ocupa cargos no Ministério das Relações Exteriores desde 1991, tendo antes desempenhado várias funções no Ministério do Planeamento e da Cooperação (1985-1991). Desde Setembro de 2012 que acumula o cargo de embaixador de Cabo Verde no Japão, mas mantém a sua residência em Pequim. O domínio das línguas é um dos pontos fortes do embaixador – fala fluentemente crioulo, português e russo, bastante bem francês, inglês e castelhano, e de forma satisfatória italiano e línguas eslavas. Estudou em Moçambique, Cabo Verde e Portugal, tendo obtido o mestrado em Relações Internacionais na Universidade T. G. Chevtchenko, em Kiev (Ucrânia).

 

 

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Momentos marcantes na relação China-Cabo Verde

Profundo conhecedor de toda a evolução do relacionamento entre China e Cabo Verde, Júlio Morais fez uma cronologia dos seus momentos mais importantes.

 

1976

Estabelecimento formal das relações diplomáticas

 

1982

Acordo Cultural

 

1998

Acordo de Promoção e Protecção Recíprocas de Investimentos

 

2001

Abertura da embaixada de Cabo Verde em Pequim (1ª missão diplomática do país na Ásia)

 

2004, 2006 e 2012

Visita oficial do primeiro-ministro de Cabo Verde à China

 

2005

Acreditação do 1º embaixador de Cabo Verde na China

Acordo de Supressão de Vistos Cabo Verde-RAEM

 

2007

Acordo Geral de Cooperação Militar

 

2007 e 2010

Visita oficial do Presidente da República de Cabo Verde à China

 

2009

Visita oficial do vice-primeiro-ministro da China a Cabo Verde

 

2010

1ª sessão da Comissão Conjunta de Cooperação Económica, Comercial e Técnica, em Pequim (2ª sessão deve realizar-se este ano)

Acordo de Serviços Aéreos Cabo Verde-RAEM

Convenção para Evitar Dupla Tributação Cabo Verde-RAEM

 

2011

Criação da ONG cabo-verdiana Associação de Amizade Cabo Verde-China

 

2011-2012

Parcerias formalizadas entre Universidade Pública de Cabo Verde e universidades provinciais chinesas

 

2013

Acordo de Cooperação Jurídico-Judiciária Cabo Verde-RAEM

 

2014

Acordo de Supressão de Vistos em Passaportes Diplomáticos e Passaportes de Serviço

 

2015

Protocolo para instalação do Instituto Confúcio em Cabo Verde