Átrio | Viver para contá-las

Cheong Kin Man quis “dizer tudo ao mesmo tempo” em 31 minutos. O resultado foi Uma Ficção Inútil, curta-metragem que conta várias histórias e tempos, premiada internacionalmente, e que continua a correr mundo a mostrar a imagem poética de Macau

Crédito Mona Ruzicka

 

Texto Fátima Valente

 

“Podes fazer tudo, mas seria melhor fazer algo que não aborreça”, disse-lhe um dia o cineasta alemão Kristian Petersen. Já com algum trabalho cinematográfico na bagagem quando rumou à Alemanha para frequentar um mestrado em Antropologia Visual e Media, Cheong Kin Man – ou A-Man para a família e os amigos – viu-se, assim, atacado por uma inesperada torrente de liberdade nas aulas na Freie Universität Berlin. Outra professora que lhe abriu os olhos foi a antropóloga visual francesa Nadine Wanono. “Eu não percebi a maior parte das suas aulas, mas no momento certo ela falou algo muito acertado – disse-me que a imaginação é ilimitada. A partir daí comecei a ver filmes ficcionais como referência para a dissertação, a ler literatura em vez de coisas académicas”.

Lentamente, o projecto de mestrado, que tinha sido pensado para ser a continuidade de Ou Mun Ian – um documentário sobre a identidade macaense que A-Man realizou em 2009 –, acabou a dar uma volta de 180º graus: “Mudei a proposta de investigação nos últimos quatro ou cinco meses antes da entrega. Com o Kristian Petersen, com o Laurent Van Lancker [antropólogo e cineasta belga], e com os conselhos dos meus colegas, fiz o que as pessoas vêem agora”.

 

Com Marina Uzelac, programadora do Festival of Migrant Film. Foto de Eva Križaj

 

Os olhos de Nadine Wanono, vêem “um filme fascinante”, que o jovem “profundamente enraizado numa metodologia auto-reflexiva” concebeu “como uma banda sonora”. Para a antropóloga, Uma Ficção Inútil é uma “subtil e poética combinação de uma abordagem visual e sonora, criando uma rede de conexões sensoriais com questões levantadas pelo autor sobre a realidade das nossas identidades”.

A-Man assume que “quis dizer tudo ao mesmo tempo em 31 minutos” e que a curta-metragem “contém muitos tempos, muitas camadas” tanto nas histórias como nas expressões visuais e sonoras. “Se calhar fui muito ganancioso”, atira. O filme joga com a escrita e imagem, e inclui elementos tão diversos como uma canção interpretada pela norte-americana Hsu Shi-tien e textos em coreano reescritos por Dabin Park. Outra fonte de inspiração, segundo o autor, foram as obras cinematográficas e literárias dos japoneses Kon Ichikawa, Michio Takeyama, sendo também uma homenagem para Yasunari Kawabata. “Havia vários tópicos que eu queria abordar: o próprio processo reflexivo do making of, a introspecção sobre a cultura e forma de pensar, as semelhanças e diferenças culturais e as questões da tradução e interpretação de línguas”, explica. Uma das particularidades do filme é o facto de o nome do tradutor acompanhar a legendagem. “Não é muito comum”, nota A-Man, também ele tradutor, ao registar a agradável surpresa de alguns colegas de profissão.

Em Uma Ficção Inútil grandes blocos de texto sobrepõem-se a imagens de Macau e de outros sítios por onde A-Man andou, entre línguas asiáticas e europeias. A de Camões chega por Sophia de Mello Breyner Andresen, que o jovem autor descobriu num artigo (Em defesa da cultura) republicado no jornal Expresso. Pegou nas palavras da escritora e transportou-as para a sua curta-metragem. E Porquê? Porque “é importante democratizar o acesso à cultura”.

 

Crédito Sadaf Javdani

 

Nos olhos do mundo

Distinguido no Festival Internacional de Cinema do Canadá (Vancouver), com o prémio “2015 Rising Star Award”, na categoria de cinema experimental, Uma Ficção Inútil também deu nas vistas em Cannes. “Comecei a enviar o filme para festivais em todo o mundo e o ‘Short Film Corner’ estava a receber candidaturas. Recebi a resposta positiva no dia do meu aniversário (9 de Fevereiro), mas na altura não prestei muita atenção porque não era um programa de competição. Só depois do prémio no Canadá é que pensei que podia ir a Cannes”, recorda.

A experiência “foi interessante”, mas A-Man não a destaca entre outras, porque “Cannes é uma plataforma mais para ficção”. O que mais o marcou até à data foi o Festival Cinemística em Granada (Espanha), onde recebeu a “Distinción Amarilla” do prémio “La Lupa y el Imán” e contactou com filósofos que “fizeram muitos comentários interessantes”.

A-Man explica: “Como o filme tem vários temas, histórias e pessoas com diferentes interesses, diferentes conhecimentos geram diferentes percepções”. Mais interessado em “romper preconceitos” e servir como uma espécie de “intermediário cultural”, o jovem diz querer manter-se afastado dos rótulos: “Nunca digo que sou cineasta, e dificilmente sou antropólogo porque só tenho um mestrado em Antropologia Visual. Talvez seja um pouco preguiçoso porque estou mais interessado em ouvir do que em contar as histórias dos outros”, observa.

 

螢幕快照 2015-09-03 上午09.17.45

 

De Macau para o desconhecido

Licenciado em Estudos Portugueses pela Universidade de Macau, Cheong Kin Man trocou o emprego estável de tradutor na administração pública pelo mestrado no estrangeiro, pelas viagens e pelo conhecimento do outro. Fala inglês, francês e alemão, além de chinês e português, e continua muito interessado em aprender línguas “para melhor compreender o mundo”.

Portugal foi o primeiro país que o jovem de Macau conheceu na Europa longínqua, em 2007. Aí viria, um ano mais tarde, a travar diálogo com a investigadora Ana Maria Amaro, que convidou para consultora do seu documentário Ou Mun Ian, Macaenses (2009). Com vida e obra ligada a Macau, a investigadora foi para A-Man uma influência marcante. “Uma das razões porque quis estudar antropologia foi por causa dos seus livros. Ela tem um que é raro – Jogos, Brinquedos e Outras Diversões de Macau –; todos os coleccionadores interessados pelas tradições chinesas o procuram”, conta, enaltecendo a dedicação da antiga antropóloga falecida recentemente.

O primeiro contacto com Portugal foi, todavia, uma surpresa: “Quando cheguei a Lisboa fiquei desapontado porque parecia Macau e não a Europa que eu tinha imaginado. Só quando fui ao Porto é que percebi que havia diferenças, e depois enamorei-me por Coimbra. Tenho bons amigos lá”. Ávido por descobrir África, onde nunca pisou chão, e em explorar outros locais da Ásia como o Myanmar, Coreia do Sul ou Japão, A-Man diz que “o ideal seria dividir [a sua vida] em várias partes do mundo para aproveitar essa diferença geográfica e cultural”. Mas até da terra onde nasceu há 28 anos diz ter muito a aprender: “Macau é muito pequena, mas há muita coisa que não conheço bem. Os indonésios, os filipinos, as minorias. Isso também é Macau e uma Macau que não conheço a 100 por cento”. Actualmente a residir em Bruxelas e ainda sem planos de um regresso definitivo, A-Man partilha um desejo imediato: “Para já quero aprender e ouvir mais histórias”.

 

螢幕快照 2015-09-03 上午09.19.20

 

Depois de Cannes

Depois de duas projecções nos Estados Unidos, incluindo o Columbia Gorge International Film Festival, em Agosto, Uma Ficção Inútil vai novamente a Granada, ainda este ano, e será apresentada em Singapura, a convite da Alliance Française, em Fevereiro.

Para Portugal, para já, está prevista uma exibição da curta-metragem no âmbito de uma conferência internacional na Universidade de Lisboa, no penúltimo mês do ano. Mas A-Man é “ambicioso” e, além de querer “mostrar Uma Ficção Inútil em todo o mundo”, pretende entrar no ciclo dos festivais no país.

A-Man espera ainda que o filme, que tem recebido apoios de várias entidades (Creative Macau, Fundação Macau, Instituto Cultural, Instituto de Estudos Europeus de Macau, Instituto Internacional de Macau e Gabinete de Apoio ao Ensino Superior) chegue à RAEM em 2016. Além de um público mais vasto, essa seria outra oportunidade de a família ver o seu mais recente trabalho. “Acho que a minha mãe não viu. O meu pai disse-me para passar as mensagens claramente, mas também não falou muito. Tenho sorte, porque sempre me deram conselhos, mas respeitam as minhas escolhas”.

 

 

CAIXA

Festivais e Prémios

Festival Internacional de Cinema do Canadá (Vancouver) – Prémio “2015 Rising Star Award”, na categoria de cinema experimental.

 

Festival de Cannes, Short Film Corner (França)

 

Kino Otok – Isola Cinema International Film Festival (Eslovénia)

 

Festival of Migrant Film in Ljubljana (Eslovénia)

 

Festival Cinemística (Granada, Espanha) – “Distinción Amarilla” do prémio “La Lupa y el Imán”.

 

Columbia Gorge International Film Festival (EUA) – Vencedor de melhor filme experimental estrangeiro

 

Festival de Cinema de Macau de San Leandro (EUA)

 

DokuBazaar – Festival Internacional de Documentários (Eslovénia)

 

Duisburger Filmwoche (Alemanha)