Roque Choi, o “mensageiro discreto” chinês que usava capote alentejano em Macau

A dois meses do 10.º aniversário da morte de Roque Choi, “o mais requisitado dos tradutores-intérpretes da história recente de Macau”, é lançada, hoje, a biografia deste chinês “discreto” tido como ponte fundamental entre comunidades.

Quem se lembra de Roque Choi, falecido em Janeiro de 2006, recorda um homem alto, principalmente para padrões chineses, de farta cabeleira branca, afável e com uma particularidade que saltava à vista nos meses de Inverno: um capote alentejano pelos ombros.

Uma das pessoas que guarda esta memória é Cecília Jorge, autora, com Rogério Beltrão Coelho, da biografia “Roque Choi. Um homem, dois sistemas”.

É, aliás, esta imagem de Roque Choi, com o capote e cachimbo na mão, que consta na capa do livro, através do traço do artista local António Conceição Júnior.

A biografia era um projecto antigo do casal, que tentou até entrevistar Roque Choi em vida, pedido que foi sempre recusado. O projecto nasceu “de uma latinha de chocolates com fotografias”, cedida por um genro que queria “que ficasse registada a memória do sogro, de quem gostava muito”, contaram os autores da biografia à agência Lusa.

A reconstituição da vida de Roque Choi, nascido em 1920, foi tarefa árdua, com pouco contributo de fontes chinesas e até dificuldade de acesso a informação oficial. “É difícil fazer a biografia de um homem que funcionou sempre nos bastidores”, lamentou Beltrão Coelho.

A primeira metade do livro é composta por conversas nunca antes publicadas com o jornalista José Pedro Castanheira, em 1999, e que o descreve como sendo, “o mais requisitado dos tradutores intérpretes da história recente de Macau”.

O seu trabalho, no entanto, ia muito além da simples tradução, explicam os autores da biografia. Roque Choi era “o intérprete medianeiro”, que fazia a ponte entre os líderes da comunidade chinesa, nomeadamente Ho Yin, pai do antigo chefe do Executivo de Macau, Edmund Ho, e a Administração Portuguesa. “Trata-se de uma figura única no desempenho da função de ponte entre as duas comunidades, sobretudo até 1979, quando não havia relações diplomáticas entre Portugal e a China”, indicou Beltrão Coelho.

“Tem ainda a particularidade de ser uma pessoa que não dominava apenas perfeitamente as duas línguas, mas dominava perfeitamente as duas culturas”, acrescentou.

Com um poder administrativo português numa cidade maioritariamente chinesa, era enorme a margem para desentendimentos e conflitos. Roque Choi, que se associou a dois grandes líderes e homens de negócios de Macau, Ho Yin e Pedro Lobo, mas que sempre fora próximo da Administração Portuguesa, surge como o diplomata necessário.

“Não era o intérprete fiel, era o intérprete adequado. Dizia o que era preciso dizer mas de uma maneira que não fecha portas. Tinha a capacidade de, dominando as duas culturas, saber exactamente que mensagem passar para o outro lado”, descreveu.

Foram vários os momentos em que a sua intervenção foi tida como essencial, em especial no “1,2,3”, um motim popular que pôs em causa a Administração Portuguesa em 1966, em plena Revolução Cultural na China.

Para ultrapassar esta crise, Roque Choi substituiu o intérprete oficial do governador. “A importância que Ho Yin teve na resolução faz com que a intervenção de Roque Choi, como intérprete, fosse muito importante. Merece boa parte do crédito”, descreveu Beltrão Coelho.

“Roque foi, indiscutivelmente (…) uma pedra fundamental na construção dos equilíbrios e dos entendimentos necessários à tranquilidade na vida de Macau”, pode ler-se no livro.

Lidou com 21 governadores ou encarregados de governo. “Era o mensageiro discreto e disponível entre dois mundos. No desejo de conciliar posições, era sempre muito cauteloso na forma como traduzia as falas dos interlocutores de modo a facilitar o diálogo e o entendimento”, resume-se.

O seu apreço pela cultura portuguesa facilitou-lhe o trabalho, mas também lhe valeu algumas inimizades entre os chineses.

A origem do capote alentejano está, aliás, envolta em mitos, contou Beltrão Coelho: “Terá sido a partir do ‘1,2,3’. Ele terá ido a Portugal e o Salazar terá falado com ele e posto em causa a sua lealdade para com os portugueses. E em função disso ele passou a usar um capote alentejano”.