A laca chinesa

Os objectos lacados são uma das grandes invenções chinesas e atingiram o seu expoente entre o Período dos Reinos Combatentes e a Dinastia Han do Oeste. Devido ao processo ser muito complicado e trabalhoso custavam fortunas e por isso, apenas os governantes e as famílias ricas tinham acesso a eles.

 

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Texto e Fotos José Simões Morais

 

Existem dois tipos de laca, a vegetal, produzida a partir da resina da Rhus verniciflua, originária da China e a animal, produto do insecto Coccus lacca, Kerr, proveniente de Pegu, Myanmar. Esta última aparece nos troncos de certas árvores (como a figueira religiosa) devido à fêmea do insecto Coccus lacca aí colocar as suas larvas, protegendo-as assim dos seus predadores. Cortados os ramos, ficam estes à sombra a secar até as incrustações resinosas se desprenderem da madeira. Era esta conhecida nas farmácias europeias por intermédio dos árabes que a denominavam pelo nome de locsumutri, que quer dizer laca de Samatra, assim chamada porque de Pegu era levada para os portos de Samatra. O primeiro europeu a examinar a origem da laca animal, conhecida actualmente por goma-laca, foi Garcia de Orta, que a descreve como “um corante asiático de origem vermelha cuja real fonte são insectos parasitas do género Kerria. Contudo, as formigas são frequentemente atraídas para as colónias de laca devido à segregação de uma resina doce pelo insecto” e por isso, os antigos escritores portugueses davam-lhe o nome de lacre de formiga.

Já na China, a laca, lacre ou charão, em mandarim shengqi (生漆), é produzida a partir da resina da Rhus verniciflua, ou Árvore da Laca, sendo sobretudo Yunnan, Guizhou, o Leste de Sichuan, a parte Oeste de Hubei e Shaanxi, as cinco províncias chinesas onde se consegue mais abundância desta goma. A árvore começa a produzi-la entre o terceiro e o quinto ano após plantada, mas só no sétimo é de qualidade para ser usada no lacar de objectos, variando a idade de produção entre os 50 e 70 anos. De 21 de Maio a 8 de Setembro é o período do ano em que se faz a extracção, sendo a melhor recolhida entre Junho e Julho e por dia, de cada árvore, pode-se retirar entre dois a três quilogramas.

As incisões na casca devem ser feitas antes do pôr-do-sol para que o calor não solidifique e estanque o sangrar da árvore, assim como é colhida ao clarear do dia para que a alva resina não fique escura. Retirados os potes das árvores, é o látex com aparência de creme despejado para um maior recipiente de madeira que cheio é tapado com uma folha de papel oleoso. Em seguida, a laca é levada para ser filtrada e retirar-lhe as impurezas, assim como parte da água que contém. Preparada a laca para o trabalho específico que se pretende com ela realizar, coloca-se num recipiente hermeticamente fechado para a proteger da luz e do contacto com o ar.

 

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O lacar

À laca preparada para trabalhar, dá-se-lhe o nome em mandarim de jingzhiqi (精制漆) e é o melhor dos vernizes, tendo um sem número de aplicações. Usa-se a madeira, gesso, metais e tecidos, como suporte para aplicar o verniz, camada sobre camada, revestindo assim esses materiais. A quantidade de camadas varia entre pelo menos três, até à centena, o que cria uma espessura considerável aos objectos lacados. Após a aplicação de uma camada, tem esta de ficar seca para se voltar a dar uma nova camada, exigindo por isso um ambiente com uma certa humidade (entre 70 a 80 por cento) para lentamente (de horas a alguns dias), sob a influência da lactase, endurecer e se combinar com as camadas anteriores. Na maior parte dos trabalhos, após as camadas de laca ficarem bem secas e endurecerem, a base é-lhe retirada.

Os objectos lacados são à prova de humidade, resistentes ao calor e às soluções alcalinas e ácidas, sendo as cores e lustro altamente duráveis. Usada como verniz para proteger e decorar, após solidificar serve para nela se esculpir com a ajuda de uma faca bem afiada.

Para trabalhar com laca deve-se ter alguns cuidados, protegendo o rosto e as mãos para que não se seja ‘comido pela laca’, já que o contacto com a pele cria perigosas irritações. Se tal acontecer deve ser a pele lavada com água salgada.

 

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Desde há pelo menos 8000 anos que se faz uso da laca, como se pode constatar pelos achados na província de Zhejiang, na Cultura Kuahuqiao e mil anos depois em Hemudu, assim como também na Cultura Liangzhu de há 5300 anos. Em Wujiang, província de Jiangsu, foram desenterrados objectos de barro preto pintados a laca, estando intactos uma chávena e um pote.

O soberano Yao (2357-2258 a.C.) usava recipientes protegidos por laca preta para comer e no período de DaYü (o primeiro Imperador Xia) havia utensílios para uso em rituais, lacados por fora com cor preta e por dentro de cor vermelha.

Antes da invenção da tinta já se utilizava a laca para escrever, como se comprova pelas vinte e oito varas de bambu retiradas de um túmulo em Xinyang, Henan, do Período dos Reinos Combatentes.

 

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Entre o bronze e a porcelana, a laca

Os objectos lacados, em mandarim qi qi (漆器), foram-se desenvolvendo simultaneamente com os de bronze durante as dinastias Xia, Shang e Zhou do Oeste, mas no Período dos Reinos Combatentes (475-221 a.n.E.), devido às grandes possibilidades decorativas e serem peças muito mais leves, ganharam a preferência aos de bronze como utensílios de uso diário. Dos túmulos dessa época foram desenterradas uma grande quantidade de peças lacadas com uma enorme qualidade, comprovando-se que nos reinos Chu e Han se faziam trabalhos excepcionais com a laca. Usavam sobretudo a madeira como suporte e variavam entre artigos de mesa, como copos, pratos e colheres; de uso diário como caixas, arcas, pentes, camas, estantes e baldes; objectos rituais tais como, recipientes, vasos e caixões, aparecendo também armaduras, capacetes, punhos de espadas e instrumentos musicais, como guqin, tambores e sinos lacados. Os objectos eram preciosamente decorados com diferentes cores e como a resina de laca é transparente, para lhe dar cor (vermelho, amarelo, azul, branco e preto) no Período dos Reinos Combatentes usavam-se já pigmentos dissolvidos em óleo tong (桐油), extraído da árvore chinesa de TongShu.

Os trabalhos em laca tornaram-se um produto nacional aquando da unificação do país pela dinastia Qin. Na dinastia Han, a resina da laca servia tanto para proteger e conservar as madeiras da humidade, como usada para decorar peças de uso quotidiano. Os objectos lacados tinham vantagens em relação aos utensílios de bronze para comer e por isso, nesta dinastia substituíram-nos. Tinham um fundo preto decorado a vermelho e vice-versa. Foi também no final desta dinastia que, com o aparecimento da porcelana, muitos desses objectos deixaram de se produzir.

Atingiu-se então o apogeu, tanto na quantidade como em qualidade, tal como se popularizou o seu uso. Havia oito províncias que realizavam o trabalho de lacar e onde estavam colocadas as dez fábricas estatais dessa indústria, tendo oficiais destacados para as supervisionar, encontrando-se então o centro na província de Sichuan, em Chengdu e Guanghan. Nos objectos eram gravados a data, o local e o nome do artista, apesar de em cada um deles trabalhar um imenso número de pessoas, que por vezes apareciam referenciados com as suas posições. Equipa constituída pelos que tratavam do suporte, quem nele colocava as camadas de verniz e lhe dava as cores, os encarregados da secagem, os que aplainavam, os que gravavam as inscrições, quem fazia o último polimento e os artistas, que concebiam, modelavam ou esculpiam os objectos. Havia ainda fábricas privadas.

 

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A base de suporte para lacar, para além da usual madeira e bambu, passou a ser o papel, o couro, o metal, tecidos e raramente o jade. Nos objectos lacados eram aplicados metais preciosos para complementar a decoração.

O processo de decoração menos trabalhoso é passar algumas poucas camadas de laca de cor preta e depois fazer os desenhos com laca vermelha. Já outra técnica é a de aplicar esta resina, camada sobre camada, construindo um corpo com uma certa espessura e antes de secar, modelar as figuras. Tal técnica em laca vermelha surgiu na dinastia Han, tendo durante a dinastia Tang evoluído. Cada camada de laca aplicada tinha que secar e após a espessura necessária eram então esculpidas as figuras em relevo com o uso de uma faca afiada.

Entre o século III e VI faziam-se estátuas modeladas em barro revestidas com tecidos que eram depois lacados e após bem secas essas camadas, eram-lhes retirados os moldes.

 

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Técnicas de trabalhar a laca

Poucos são os objectos lacados encontrados do período que vai dos finais da dinastia Han até à dinastia Song, devido a muitos deles terem sido substituídos por porcelana. Durante a dinastia Tang houve um incremento na arte de lacar, quando famosos artistas usaram-na para esculpir estátuas budistas. Em 772, um édito imperial proibia o uso do ouro e prata para decorar as peças lacadas, assim como impedia que elas acompanhassem os mortos nas suas sepulturas. Nesta dinastia muitos objectos lacados foram levados para o Japão, tal como aconteceu no período Song e até meados do século XIV eram também exportados de Guangzhou para a Índia e Pérsia.

No Período das Cinco Dinastias (907-960) aplicava-se já madrepérola nas peças lacadas e Zhu Zun Du (朱遵度) escreveu o Livro da Laca (QiJin, 漆经) que desapareceu, conhecendo-se a sua existência pois outros livros o mencionam.

A técnica evoluiu bastante na dinastia Song, usando-se uma grande variedade de estilos de lacas, sendo as da província de Zhejiang as mais conhecidas e as melhores da China. Aí existiam lojas de luxo para as vender, sendo Hangzhou e Wenzhou os dois centros mais importantes de manufactura de laca. Ainda nesta dinastia apareceram objectos lacados com desenhos em ouro. A técnica consistia em criar uma base lacada a vermelho ou preto e depois, aplicar uma camada de laca transparente com o desenho pretendido. Antes de a camada secar era colocado o ouro em pó, que devido à laca servir como cola, assim ficava agarrado. Também surgiu a técnica de esculpir rhino (剔犀), muito elaborada pois faz uso de diferentes cores misturadas com a resina, que são aplicadas nas diferentes camadas separadamente e quando depois são esculpidas, essas cores aparecem dando aos veios do contorno das figuras uma noção de grande profundidade.

 

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Laca para a Corte

Na dinastia Yuan a laca era aplicada em camadas sucessivas e antes de secar era modelada para criar os desenhos, fazendo-se também aplicações com ouro e prata, assim como com placas finas e planas de madrepérola. No Palácio Imperial desta dinastia mongol, os artistas que esculpiam em laca eram de Yunnan. Havia também oficinas privadas, como a existente em Jiaxing, na província de Zhejiang, onde grandes mestres como Zhang Cheng e Yang Mao esculpiam os desenhos nas camadas de laca com diferentes cores e Peng Junbao, famoso na técnica de incrustar fios de ouro e prata na laca.

Uma peça de Zhang Cheng, trazida do Japão por um oficial Ming e entregue como presente ao Imperador Yongle, levou em 1421 à criação no Palácio Imperial do departamento de laca Guoyuanchang (果园厂), que apenas existiu durante 20 anos. Daí saíram as melhores obras destinadas à corte Ming, sendo muitas delas de Zhang Degang, filho desse célebre artista da dinastia Yuan. Foi pela simbiose dos dois estilos de esculpir em laca, o de Yunnan e de Zhejiang, que surgiram essas novas peças. Usava-se na base uma série de materiais como ouro, prata, ferro, alumínio, madeira, bambu, assim como eram aplicadas todas as anteriores técnicas conhecidas, o esculpir a laca vermelha, a laca colorida e a Rhino (esculpir nas camadas de laca com diferentes cores), sendo o trabalho mais interessante feito com representações esculpidas na laca de cor vermelha. Ainda da dinastia Ming é o “Registos sobre Laca” (Xiu Shi Lu, 髹饰录) escrito pelo mestre Huang Cheng. Para além de Zhejiang e Yunnan, na província de Jiangsu, em Yangzhou trabalhava-se a laca embutida para decoração das peças e na cidade de Suzhou, obras de laca com dourados, tal como ocorria na província de Shanxi, onde as mobílias de laca eram douradas.

O comércio de artigos de laca para os países da Europa atingiu o seu pico durante a dinastia Qing, entre os séculos XVII e XVIII. Em 1680, no reinado do Imperador Kang Xi, foi criado o departamento de laca, o Zaobanchu (造办处), para criar trabalhos especialmente feitos ao gosto da corte.

 

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Pequim, Yangzhou e Fuzhou são as cidades líderes em trabalhos de laca. Para cada peça são necessárias de 30 a 100 operações até ficar pronta. Após a preparação e polimento do material que vai servir de molde sobre o qual se passa, camada sobre camada, a diluída laca, quando atinge a espessura desejada, que pode chegar aos dois centímetros e com a laca já seca, retira-se o molde que serve de suporte, começando-se então a nela esculpir em relevo a figuração que se pretende. Pronto o trabalho é de novo polido.

Desde o século XVIII os objectos de laca de Fuzhou, conhecidos como “objectos de laca sem corpo”, espalharam-se por todo o país, sendo muito leves e resistentes. De Pequim, a esculpida laca cinábrio é famosa por toda a China. Usando-se o cobre como suporte preferencial, é ele coberto com oitenta, a cento e vinte camadas e após esculpidas as figuras, para terminar faz-se o polimento.

As peças lacadas têm um preço muito elevado já que o processo é demorado e exige grandes cuidados na secagem. Há no entanto outras técnicas que o simplificam substancialmente como, o de lacar com poucas camadas de uma cor e criar com outra o desenho. Também existe um processo que permite uma aparência da técnica de laca esculpida, mas sem as inúmeras camadas deste verniz já que, com uma base feita de um material barato, como a madeira, gesso ou barro, nela se faz a figuração e por fim, cobre-se com laca, ficando o produto final parecido ao trabalhado nas muitas camadas dessa resina.

Actualmente, na arte contemporânea fazem-se experiências com laca, mas que muito distam do brilhantismo alcançado por exemplo em 688, quando Wu Zetian ordenou a um oficial para fazer uma estátua com esse material cujo tamanho era tal que apenas no dedo mindinho se podiam colocar dez pessoas.

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