É hora de valorizar a cultura

Ninguém põe em causa que a prioridade de Macau enquanto plataforma entre a China e os países de língua portuguesa tem de estar na economia. Contudo, os apelos para que os estímulos à cooperação se estendam à área cultural já existem há algum tempo e estão cada vez mais a surtir efeito. Obras literárias, património, gastronomia e festivais são provas de que há já muitas iniciativas que concretizam o papel de Macau como ponto de encontro secular entre Ocidente e Oriente.

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Texto Nuno G. Pereira

 

Cultura é arte, mas também património histórico e gastronomia. Uma área de intervenção rica, cujo valor aumenta exponencialmente se lhe for dado espaço geográfico e humano tão grande como o que inclui China e as nações que falam português. Um conjunto de países em estágios diferentes, mas que já provou saber pôr a funcionar a cooperação económica, onde Macau tem uma palavra a dizer enquanto plataforma privilegiada. Ou várias, porque o reforço deste seu protagonismo está a alargar-se cada vez mais a outras áreas, como por exemplo turismo, telecomunicações e cultura.

O secretário para a Economia e Finanças da RAEM, Lionel Leong Vai Tac, frisou à MACAU que a cooperação cultural é uma prioridade na agenda do Executivo local: “O Governo Central espera que o Governo da RAEM também se foque nas áreas de língua e cultura, incluindo o estudo sobre a construção da base de formação de talentos bilingues e a criação do centro de intercâmbio cultural sino-português em Macau”.

Também no Plano de Acção para a Cooperação Económica e Comercial da 4.ª Conferência Ministerial do Fórum de Macau (2014-2016), ficou escrito que os países signatários querem a cultura como parte integrante do seu trabalho conjunto. “Os ministros, reconhecendo o papel dinâmico da indústria cultural no desenvolvimento económico, decidiram diversificar e utilizar múltiplos instrumentos, estimular o entusiasmo dos grupos artísticos e empresas das indústrias culturais dos países participantes do Fórum de Macau, contribuindo, desta forma, para a intensificação do comércio cultural entre os países participantes.” Um parágrafo importante pelo reconhecimento atribuído à área da cultura, mas também pelo valor que lhe está subjacente – não é por acaso que se utiliza a expressão “comércio cultural”.

 

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No mesmo documento consta outro ponto, onde os membros do Fórum expressam “a sua satisfação pela realização, com sucesso, em Macau, da Semana Cultural da China e dos Países de Língua Portuguesa”, que decorre anualmente desde 2009, conjuntamente com o Festival da Lusofonia, que teve a sua primeira edição em 1998. Uma referência emblemática, pois lembra que, também nesta área, se espera de Macau uma acção dinamizadora preponderante. E como é que a RAEM vai aumentar a sua relevância enquanto plataforma cultural entre China e países de língua portuguesa? Rogério Beltrão Coelho, editor, jornalista e actual presidente da Associação Amigos do Livro de Macau, aponta alguns caminhos. “Verificando-se, em Macau, o convívio permanente entre duas línguas oficiais – o chinês e o português – esta circunstância deveria ser potenciada para a promoção e divulgação das respectivas culturas entre as duas comunidades. Se associarmos a esta situação a existência de mais países de língua oficial portuguesa, maior será o âmbito de tudo quanto se produza em português.” Neste aspecto, explica, assume particular relevância a actividade editorial que traduza para português títulos significativos da bibliografia chinesa, assim como a publicação de traduções em chinês de obras em língua portuguesa. Nos últimos anos tem vindo a aumentar a publicação de obras bilingues (português e chinês), bem como a tradução de clássicos chineses para português, e vice-versa, por editoras sedeadas em Macau.

Nesse contexto, a Associação Amigos do Livro tem vindo a defender a necessidade de, a nível institucional, ser criado um fundo de tradução, que suporte os respectivos encargos editoriais.

Só no decorrer de 2016, já foram mais de 25 obras, incluindo, para citar alguns exemplos, Antologia de Du Fu, com tradução de António Graça Abreu (Instituto Cultural), Clepsidra, tradução do clássico de Camilo Pessanha para chinês por Yao Feng (Instituto Internacional de Macau), Imperador da China, Auto-Retrato de K’Ang- Hsi, de Jonathan D. Spence (Livros do Meio), ou o Glossário Português-Chinês de Provérbios e Expressões, de Li Fei e Jorge Bruxo (Instituto Politécnico de Macau).

 

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Biblioteca da cooperação

Ao colocar-se no epicentro da cooperação cultural do eixo China-Lusofonia, Macau ganha responsabilidade, mas também a oportunidade de chamar a si oportunidades únicas. Seria viável criar uma biblioteca bilingue online, com acesso gratuito a obras de autores dos países de língua portuguesa e da China, com Macau como motor da ideia? Beltrão Coelho acha que sim. “Basta começar pelas obras que se encontram esgotadas ou fora de circulação, incluindo edições antigas. O que passa por digitalizar (com qualidade) os livros que caíram já no domínio público e aqueles que, esgotados ou não, os autores e editores disponibilizam para o efeito.”

Para o editor local, numa biblioteca com as características descritas faria também sentido ir além dos livros, pelo menos num pormenor. “Muito útil para os investigadores seria digitalizar a Imprensa de Macau, em português e chinês, desde os seus primórdios, e disponibilizar esta informação na Internet, como o fez Hong Kong.”

 

Escritores unidos

A produção literária traduzida para outras línguas tem vindo a ganhar cada vez mais destaque no panorama editorial da região. Agarrando esse bom momento, foi lançado em 2012 o “Rota das Letras – Festival Literário de Macau”, trazendo à cidade escritores, editores, tradutores, jornalistas, músicos, cineastas e artistas plásticos. A literatura é o ponto de partida para debates com os autores, que constituem o prato forte ao longo dos dias em que o festival decorre, mas também há exposições, concertos e projecção de filmes. O evento foi fundado pelo jornal Ponto Final, que actualmente o co-organiza todos os anos com o Instituto Cultural de Macau. A organização diz com orgulho que se trata do “primeiro grande encontro de literatos da China e dos países de expressão portuguesa” e que “dá expressão no sector cultural à desejada aproximação e cooperação entre a China e o mundo lusófono, através de Macau”.

O festival culmina com a publicação de um livro trilingue (português, chinês, inglês) de contos subordinados a Macau escritos pela pena de autores convidados – a maioria aceita esse desafio – e pelos participantes de um concurso de contos aberto para o efeito.

Yao Jing Ming, subdirector do Rota das Letras, ex-vice-presidente do Instituto Cultural, académico e tradutor de obras de autores portugueses como Fernando Pessoa ou Eugénio de Andrade, constata um aumento do intercâmbio cultural sino-lusófono que radica na abertura da China ao mundo. “A actividade económica e comercial dá impulso, dinamiza o movimento cultural: há mais livros publicados, um maior intercâmbio, mais actividades, mais visitas, mas sobretudo entre a China e o Brasil.”

 

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Para além deste festival que se realiza em Macau, há ainda iniciativas que decorrem além portas e que se focam também na cooperação cultural tendo Macau como rampa de lançamento, como é o caso do Encontro de Poetas Lusófonos e Chineses, organizado pelo Instituto Internacional de Macau. Depois de duas edições na cidade (2006 e 2013), poetas das duas línguas voltaram a reunir-se em 2015 em Lisboa, com a promessa de continuidade em qualquer ponto do globo. Fernando Pinto do Amaral, um dos dinamizadores da iniciativa, destaca que a intenção principal é mostrar que a poesia não tem fronteiras, independentemente das barreiras linguísticas. “A China é vítima de um certo cliché e é preciso desconstruir esse mito, essas ideias relacionadas com um certo estado zen, com as flores de lótus e um infindável número de imagens e símbolos que temos na nossa cabeça. Este encontro é um enorme privilégio para nós”, afirmou à MACAU na última edição do Encontro.

 

Património e formação

Macau personifica a união das culturas lusófona e chinesa em múltiplos aspectos, sendo o património histórico um ponto de discussão fulcral na região. Como melhor salvaguardá-lo? E aproveitá-lo? E promovê-lo? Independentemente dos resultados desse debate, que raramente traduzem visões unânimes, o simples facto de se falar do tema quase em permanência coloca a região num patamar vantajoso para levar a conversa fora de portas. Ou seja, a RAEM pode ter uma palavra a dizer na recuperação e divulgação do património cultural (físico e imaterial) dos países de língua portuguesa e da China? Beltrão Coelho não tem dúvidas que Macau poderia dar um contributo nessa área. “Em termos de recuperação, mais no que refere aos países de língua portuguesa, que carecerem de apoio financeiro, e Macau poderia contribuir para o efeito. Quanto à divulgação, tem estado a ser feita, na medida do possível, num sentido e noutro, em iniciativas culturais e pelos meios de comunicação social. Penso que, numa fase de arranque, não se poderá ir mais longe.”

No âmbito da cooperação económica, Macau é uma plataforma competente na maneira como tem sabido aumentar a sua intervenção no capítulo da formação de profissionais de várias áreas, beneficiando tanto a China como os países lusófonos. No que diz respeito a formar agentes culturais, o que há a fazer para ganhar eficácia? É realista pensar-se, por exemplo, na criação de uma grande universidade internacional de belas artes na RAEM? “Há muito que Macau acolhe já estudantes dos países de língua portuguesa e da China, para o ensino universitário, designadamente no domínio das artes. No entanto, numa região administrativa onde não abundam os recursos naturais, um dos principais caminhos para o desenvolvimento – senão o mais importante – é investir no conhecimento. Uma Universidade de Belas Artes pode funcionar em qualquer parte do mundo. Porque não Macau? Só é preciso que adquira prestígio através do seu currículo, da qualidade científica do corpo docente, das condições para o seu funcionamento e na interligação com a sociedade.”

 

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Uma semana única

A Semana Cultural da China e dos Países de Língua Portuguesa, cuja 8.ª edição se realiza em Outubro, constitui o momento do ano mais relevante para o papel de Macau enquanto plataforma na área da cultura. Por toda a cidade sucedem-se manifestações artísticas e ofertas gastronómicas com origem sino-lusófona, numa celebração conjunta de contornos únicos.

Inserido nesta semana, e com bastante popularidade local, está o Festival da Lusofonia, que começou em 1998, organizado então pela Câmara Municipal das Ilhas. A partir de 2002, ficou sob alçada do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais e dos Serviços de Turismo de Macau, passando agora para o Instituto Cultural, assumindo, por isso, um carácter ainda maior de dinamizador cultural. A importância do festival foi tendo cada vez mais reconhecimento e, em 2008, o Fórum de Macau lançou a Semana Cultural, alargando as iniciativas culturais pela cidade, com concertos de artistas dos países de língua portuguesa no coração de Macau, na Praça do Senado. O 19.º Festival da Lusofonia irá decorrer de 21 a 23 de Outubro, com gastronomia, dança, música e artesanato de todas as regiões e países envolvidos.

Para melhor agir enquanto plataforma dinamizadora da cooperação para projectos culturais da China e dos países de língua portuguesa, Macau pode contar com os esforços oficiais, feitos directamente por representantes dos governos de cada país, mas também por cada um dos seus delegados no Fórum de Macau. Há ainda várias associações de índole marcadamente cultural no espaço da RAEM, importantes neste contexto e que são visíveis principalmente durante o Festival da Lusofonia: Associação dos Amigos de Moçambique, Associação Macau-Cabo Verde, Associação dos Macaenses, Associação de Amizade Macau-Timor, Associação Angola Macau e Associação Casa do Brasil. A Casa de Portugal em Macau é a mais relevante, já que comunidade lusófona mais numerosa é a portuguesa e a que mais associações ligadas à sua cultura tem, até porque pode aqui inclui-se também a comunidade macaense.

 

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