Educação de fronteiras alargadas

Ensinar português e ensinar em português. Macau manteve as duas abordagens após 1999, nalguns casos até reforçadas, graças à definição da RAEM como plataforma entre a China e os países onde se fala o português. O ensino superior está no centro deste palco, crescendo de ano para ano em importância e ambição como formador de alunos locais, do Interior da China e dos países de língua portuguesa.

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Texto Nuno G. Pereira

 

Há várias instituições de ensino superior da RAEM onde o português está presente, mas em nenhuma com a amplitude que tem no Instituto Politécnico de Macau (IPM). Aqui, o propósito atribuído à região pelo Governo Central – ser a plataforma entre a China e os países de língua portuguesa – é replicado no universo da educação com o afã de quem procura fazer melhor todos os dias. Essa ambição aplica-se naquilo que mais se espera numa casa de saber – cursos e formação em geral – mas também na busca permanente de parcerias e outras acções pedagógicas. No ano passado, o IPM apresentou a nova licenciatura em Relações Comerciais China-Países Lusófonos e o manual de ensino Português Global (que garantiu ir ser “amplamente introduzido e divulgado nas universidades chinesas de Macau e do Interior do País ”). Mais recentemente, a Universidade de Coimbra (UC) anunciou ter criado um mestrado para formar professores de Português na Universidade de Estudos Estrangeiros de Cantão, num processo só possível graças ao apoio dado pelo IPM, conforme agradeceu publicamente o próprio reitor da UC.

João Malaca Casteleiro, o conhecido linguista português, exerceu o papel de examinador externo no IPM nos últimos cinco anos e não tem dúvidas em afirmar que “a China é o país onde mais se aprende português hoje em dia e o número de instituições onde se aprende português está a aumentar”. A RAEM tem ajudado a que essa realidade se intensifique e, no caso do IPM, o total de alunos em mobilidade internacional no actual ano lectivo (2016-2017) atingiu os 196 (ver caixa). Entre eles há um exemplo paradigmático, revelador de um aproveitamento inteligente do papel de plataforma que Macau pode e deve ter: foi criado o curso de Gestão do Jogo e do Lazer, com uma turma no Centro Pedagógico e Científico do Jogo, que inclui 17 alunos de Cabo Verde. Um contingente numeroso, se for tido em conta o número de habitantes daquele país de língua portuguesa a estudar no ensino superior, justificado pela perspectiva profissional no horizonte – David Chow, empresário de Macau, está a construir um resort com casino em Cabo Verde, e os jovens, se concluírem a licenciatura, garantem um bom emprego no seu país de origem.

 

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Bruna e Laura

A MACAU falou com duas estudantes que conhecem bem a mobilidade internacional proporcionada pelo IPM, em dois contextos diferentes mas exemplares: o benefício de bolsas criadas pelo Governo Central através de Macau e a perspectiva animadora de entrar no mercado de trabalho para tradutores de português-chinês na RAEM.

Em Macau, os cursos de português-chinês têm bastantes alunos, principalmente porque os jovens sabem que o mercado local de tradutores nestas línguas tem falta de profissionais. Ou seja, o emprego é certo e bem remunerado. O curso do IPM desta área inclui um ano em Portugal, no Instituto Politécnico de Leiria. Laura Barroso, macaense de 22 anos, está no 4.º ano da licenciatura em Tradução e Interpretação de Português-Chinês. A ida para Portugal, no 3.º ano, era obrigatória, e ela encarou-a com agrado. “Tenho lá origens, o meu avô português que se casou com a minha avó chinesa. Já lá tinha ido algumas vezes, visitar familiares, e sempre gostei. Fui para Portugal passar um ano por causa do curso, mas achei que assim podia aprender melhor a língua, tinha muito mais hipóteses de praticar o português.”

A história da brasileira Bruna Sebastiany é muito diferente. Nascida há 21 anos em Lajeado, uma cidade de Rio Grande do Sul, tomou a decisão de vir para Macau estudar apenas um mês e meio depois de saber da oportunidade. “Comecei um curso de Letras no Brasil, com foco em língua portuguesa, mas parei para vir para Macau aprender chinês, com o objectivo de mais tarde dar aulas no meu país. Vi um edital na minha escola, pedindo inscrições. Achei que era uma óptima ideia. Já falo português, já falo inglês, então o chinês era a próxima língua, porque é a mais falada. Também me dá muitas oportunidades profissionais, se não quiser ser professora posso trabalhar numa empresa multinacional que faça negócios entre Brasil e China. E também quis vir por ser uma chance de viajar e conhecer uma nova cultura.”

A bolsa inclui o valor total do curso, alojamento e alimentação por quatro anos, com os pagamentos assegurados pelo Governo chinês, através do IPM. Quando deu a entrevista, Bruna tinha aterrado há apenas duas semanas, pronta para agarrar o 1.º ano da licenciatura em Ensino da Língua Chinesa como Língua Estrangeira. “O mais difícil na minha adaptação tem sido a comida, conseguir comer com pauzinhos é difícil. Mas já que estou aqui, quero conhecer a gastronomia local, saber o que é bom e o que não é. Há poucos dias eu e os meus amigos fomos almoçar [Bruna veio num grupo constituído por seis estudantes brasileiros], eles acharam que estavam a comer frango e comeram tofu. Aos poucos vamos aprendendo. Antes de vir para cá, achei que não devia haver cá quase ninguém que falasse português ou mesmo inglês, mas não acho difícil comunicar com as pessoas.”

 

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Sair da casca

Laura escolheu o seu curso pelas boas perspectivas profissionais, a mesma razão que está a levar vários jovens de Macau a optar pela aprendizagem do português. “Em Macau, o mercado para tradutores é muito forte. O meu objectivo é arranjar trabalho como tradutora num tribunal, gosto muito da área da Justiça.”

Ao ir para Portugal, a estudante foi encontrar um país que já conhecia, mas de uma forma diferente: desta vez ia sozinha e por um ano, não era só uma viagem de férias. “Ia nervosa, mas acima de tudo curiosa. Estava a estudar em Leiria. É um sítio sossegado, ao contrário de Lisboa, que tem um ritmo parecido com o de Macau. Foi um pouco difícil, porque o meu português ainda não estava tão apurado que me permitisse acompanhar as aulas percebendo tudo. Também senti uma mudança grande com o tempo, é muito fresco comparado com o calor de Macau (risos).” O balanço é francamente positivo, em particular porque a autonomia obriga à desinibição, a família está longe, é preciso ir atrás do que se quer. O ambiente que encontrou também a deixou satisfeita. “Fiz muitos amigos portugueses, tenho saudades de lá voltar.”

Para Bruna, a desinibição também é um factor relevante. Embora esteja há pouco tempo em Macau, já teve uma experiência prévia longe de casa. “Passei um semestre fora, fui para o Canadá no ano passado. Embora soubesse falar inglês, tinha receio de me expressar, e indo para lá consegui vencer esse medo. Também fiz amizades do mundo inteiro, foi muito bom.”

Concentradas nos cursos, que lhes ocupam o momento actual das suas vidas, tanto Bruna como Laura mostram alguma dificuldade em analisar algo mais distante da sua realidade, apesar de tão significativo para a mesma, como a cooperação entre a China e os países de língua portuguesa no domínio da educação. Como é que sentem os benefícios dessa cooperação? “Beneficio de uma bolsa de estudo, esse é um ponto importante”, adianta Bruna. “Vim num grupo de seis brasileiros, mas sou a única estudante que estava num curso de línguas. Eles estavam em relações internacionais, publicidade, engenharias, e vieram para estudar chinês. Se houvesse mais bolsas disponibilizadas para estudar cá noutros cursos que não fossem língua chinesa, acho que viriam muito mais alunos. Também era importante, dentro dessa cooperação que houvesse equivalências de disciplinas entre os cursos dos diferentes países.” Laura remata falando de outro ponto. “Se houver mais oferta de bolsas para cursos em países de língua portuguesa, muitos jovens de Macau estarão interessados nessa oportunidade.”

 

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Mobilidade internacional no IPM

O total de alunos em mobilidade internacional no IPM (recebidos e enviados) chegou a 196 no ano lectivo de 2016-2017. Um número que não inclui os alunos oriundos do Interior da China através das vias normais de inscrição, mesmo na licenciatura de Tradução e Interpretação Chinês-Português/Português-Chinês.

 

Alunos recebidos

Provenientes dos países de língua portuguesa

Licenciatura em Ensino de Língua Chinesa como Língua Estrangeira – 18 (10 de Cabo Verde, 6 do Brasil, 1 de Portugal e 1 de Moçambique);

Licenciatura em Gestão do Jogo e do Lazer – 17 (Cabo Verde);

Licenciatura em Tradução e Interpretação Chinês-Português/Português-Chinês – 24 (contingente especial de parceria, vindo do Instituto Politécnico de Leiria para frequentar o 3.º ano)

Licenciatura em Administração Pública (língua veicular portuguesa) – 3 (Portugal);

Licenciatura em Informática – 1 (Portugal);

Licenciatura em Gestão – 4 (Portugal);

Licenciatura em Enfermagem – 10 (Portugal).

Total: 100

 

Provenientes da Universidade de Línguas e Culturas Estrangeiras, de Pequim

Licenciatura em Tradução e Interpretação Chinês-Português/Português-Chinês – 23 (contingente especial de parceria, para frequentar o 3.º ano);

Total: 23

 

Alunos enviados

Para o Instituto Politécnico de Leiria:

Licenciatura e Tradução e Interpretação Chinês-Português/Português-Chinês – 50 (contingente especial de parceria, para frequentar o 2.º ano);

Licenciatura em Relações Comerciais China-Países Lusófonos – 23 (contingente especial de parceria, para frequentar o 2.º ano).

Total: 73

 

 

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Opções para estudar português

No panorama do ensino superior da RAEM, há várias instituições que oferecem a possibilidade de aprender a língua portuguesa. O Departamento de Português da Universidade de Macau é um dos mais abrangentes, disponibilizando um ensino que passa por cultura, literatura e linguística. Tem bacharelato e licenciatura em Estudos Portugueses, mestrado em Língua e Cultura Portuguesa (com dois ramos, um de Estudos Literários e Culturais, outro de Linguística Aplicada), doutoramento em Linguística Aplicada e em Literatura e Estudos Interculturais, e organiza ainda, há já 30 anos, o curso de Verão em Língua e Cultura Portuguesa. Na Universidade Cidade de Macau e na Universidade de Ciência e Tecnologia de Macau, o português surge como uma cadeira opcional disponível para as licenciaturas. Na Universidade de São José, regista-se o mestrado em Estudos Lusófonos de Literatura e, pela primeira vez este ano lectivo, a licenciatura em Português/Chinês, Línguas e Culturas. No Instituto Português do Oriente existe o curso geral de língua portuguesa, que este ano, segundo revelou o seu director, João Laurentino Neves, pode chegar aos 1300 alunos inscritos.

 

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Formação promovida pelo Fórum de Macau

A mais importante instituição da RAEM na promoção de parcerias pedagógicas e de formação profissional entre a região, a China e os países de língua portuguesa é o Fórum de Macau. Desde a sua fundação, em 2003, o seu papel tanto na criação de acções próprias como na promoção e apoio a iniciativas feitas noutras instituições, nomeadamente no quadro do ensino superior local, tem sido regular e cada vez mais extenso. São inúmeros cursos de formação, mas também colóquios, palestras, workshops e seminários, em áreas tão distintas como turismo, administração pública, gestão e medicina tradicional, entre outras.

 

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Laboratório de tradução automática entra em acção

O Instituto Politécnico de Macau vai inaugurar no mês de Outubro, por ocasião da V Conferência Ministerial do Fórum de Macau, um laboratório de tradução automática de chinês e português, projecto de “grande importância” que tem como parceiro o Politécnico de Leiria, segundo indicou Lei Heong Iok, presidente da instituição. O laboratório, que vai funcionar nas instalações do IPM, vai contar com três equipas, versadas em particular na área da informática e da interpretação/tradução, em que membros de Macau, de Portugal e do Interior do País vão trabalhar em conjunto para conceber uma “máquina” capaz de traduzir de chinês para português e de português para chinês. “É um projecto difícil, mas de grande significado”, observou Lei Heong Iok, explicando que o laboratório conjunto das duas instituições de ensino superior – parceiras de longa data – vai contar com outros ‘reforços’ de Portugal e do Interior do País. “Tem o apoio da Universidade de Coimbra. E, do outro lado, conta com o apoio técnico da maior empresa de tradução da China, porque eles já têm tecnologia na área da tradução chinês-inglês/inglês-chinês”, e da Universidade de Línguas Estrangeiras de Cantão.