Educação à portuguesa

Falam português, cantam o hino nacional, as Janeiras e estudam a história de um país que não conhecem. Gerda, Celine, Manuel e David são apenas alguns dos alunos que estudam na Escola Portuguesa de Macau e não têm o português como língua materna. O sistema educativo e as perspectivas profissionais pesam nesta escolha.

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Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

“Fala em português”, pede a mãe. Gerda faz um compasso de espera antes de se virar na minha direcção. Estamos na casa da família Kriger, na península de Macau. “Antigamente, quando falava com os meus pais e esquecia-me de uma palavra em russo, dizia em português, mas eles não entendiam. Agora já me habituei a esta mudança de línguas.”

Gerda tem 15 anos, nasceu em São Petersburgo, na Rússia. O nome, escolhido pelo pai, foi inspirado numa das personagens do conto A Rainha da Neve, do autor dinamarquês Hans Christian Andersen. Quando nasceu, Gerda tinha olhos negros, sérios, “assim como o nome”, diz o pai, Denis Kriger.

Os olhos, rasgados, são herança da mãe. Tatiana Kriger é professora de piano e nasceu na república russa da Iacútia, na Sibéria. O pai, violinista da Orquestra de Macau, tem ascendência alemã e é oriundo da região de Kaliningrado, Rússia ocidental. Conheceram-se em São Petersburgo, eram estudantes de música.

Gerda cresceu entre línguas e é difícil perceber qual delas fala melhor: sonha em português, escreve ao telemóvel em inglês, traduz o que não entende para russo. Para Gerda, cada objecto pode ter pelo menos três nomes. As línguas tornaram-se num passatempo, são quase objectos de colecção, diz o pai.

A família Kriger mudou-se para Macau em 2003. Gerda tinha dois anos e começava a articular as primeiras palavras em russo. “Um dia passeávamos pela cidade e encontrámos este espaço maravilhoso perto do Jardim da Flora, o Jardim de Infância D. José da Costa Nunes, gostámos muito do ambiente, porque os jardins-de-infância chineses tinham áreas pequenas.”

Não fosse o acaso pôr no caminho do casal este edifício rosa, estilo arte déco, talvez o percurso escolar de Gerda tivesse sido outro. Depois do ensino primário, Denis e Tatiana consideraram ainda o ensino em língua inglesa, mas acabaram por optar pela Escola Portuguesa de Macau (EPM).

 

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Começar do zero

David Chunta deixou a Costa Rica há três anos – e nota-se um ligeiro sotaque espanhol quando fala português. É aluno do 11.º A, área de Ciências, na Escola Portuguesa de Macau.

A família, oriunda da Província de Cantão, mudou-se para a América Central há cerca de 30 anos para abrir um bar-restaurante em Santo Domingo, na Província de Heredia.

A vinda para Macau, onde o pai já estava a viver há cerca de um ano, deu-se por várias razões: a possibilidade de David contactar de perto com a língua e cultura chinesas foi determinante. Fala cantonês, mas não escreve nem lê. “Mas quando cheguei a Macau era difícil entrar numa escola chinesa, porque já tinha 16 anos, e então a minha tia sugeriu que fosse para a EPM.”

David está sentado no sofá da pequena sala de leitura da escola portuguesa. Ao lado encontra-se Manuel Fan, do 12.º B, com quem frequentou o ano preparatório – uma espécie de ano zero por onde passam os alunos que não falam português. Os dois vestem uniforme, calções e pólo, ao peito lê-se EPM. Pergunto em que língua comunicam um com o outro, respondem que é meio português, meio chinês.

Manuel Fan tem um percurso diferente, pouco comum. O jovem, natural de Macau, estudava na Pui Ching, uma das mais prestigiadas escolas da cidade, quando os pais decidiram que mudaria para a escola portuguesa. Estava no 9.º ano de escolaridade, do português tinha apenas noções básicas, adquiridas num curso do Instituto Português do Oriente. Manuel é também o único destes estudantes que esteve em Portugal.

“Uma das razões desta mudança é que quero estudar Direito [em Portugal] e, além disso, os meus pais queriam que eu contactasse mais com outra cultura.”

“Foi difícil?”, pergunto. “Sim.” O tom da resposta, seguro, não deixa dúvidas. “Comparando com o David, eu não sabia falar espanhol, não tinha essa base, e a gramática era completamente nova para mim.”

David Chunta frequentou o período preparatório durante um mês, Manuel Fan durante dois semestres, acabando por perder um ano. “É um investimento, ainda não sei qual é o retorno”, nota.

 

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Independentes desde pequenos

Manuel e David aparecem para a entrevista sem os pais, que não tiveram disponibilidade para falar à revista MACAU devido a compromissos profissionais.

Os dois jovens habituaram-se desde cedo a tomar decisões, a assumir responsabilidades. É que a barreira da língua dificulta o envolvimento dos encarregados de educação nos assuntos escolares. “Também não é necessária ajuda, estudar é algo que diz respeito a nós próprios”, diz Manuel Fan, realçando que o ensino na escola portuguesa é “menos intensivo” do que no sistema chinês. “Uma das vantagens aqui é que temos mais tempo livre.”

“Quando vamos buscar as notas, eu sou o tradutor, ouço o que o professor tem a dizer e transmito em chinês à minha mãe”, acrescenta David.

Celine Ng também é de Macau, tem 14 anos e está no 9.º B. Em casa, os pais não sabem quando tem testes nem o que se está a dar a física ou a português. “Eles acreditam em mim”, diz.

Celine gosta e fala de liberdade. “Não gosto de coisas apertadas, não gosto de nada que me controle, talvez um dia seja piloto, é uma profissão livre.”

A liberdade é um conceito que Celine conhece desde pequena. E essa é uma das razões para nunca ter estudado numa escola chinesa, reforça o pai, Ng Iam Man. “É uma educação à base da memorização, os professores obrigam os alunos a decorar as coisas.”

O pai de Celine é de Macau, tem uma fábrica de material de segurança contra incêndios; a mãe do Interior da China, de Shuangxiang, Província de Hunan, e trabalha como vendedora. Queriam um sistema de ensino mais flexível do que o chinês para a filha.

No 6.º ano de escolaridade, Celine entrou para a EPM. Vinha da escola internacional School of Nations – é fluente em inglês e nesta entrevista vai variando de língua. É assim que comunica também com as amigas, ora em inglês ora em português. “Eu não conhecia bem o ensino português, mas sabia que os métodos europeus e norte-americanos eram mais flexíveis do que na Ásia, que existia maior liberdade”, nota Ng, acrescentando que a opção acabou por ter “influência na personalidade da filha”. Independência, confiança e iniciativa própria são palavras que associa a Celine.

Também Denis Kriger acreditou no projecto educativo da EPM. “Eu ensino música e tenho-me apercebido que os alunos da escola portuguesa falam todos muito bem inglês e o resultado é importante para mim.”

Gerda, que frequenta o 10.º C, admite que tem uma relação “virtual” com Portugal. Canta o hino português, estuda a história do país, mas nunca lá esteve. “Há aqueles momentos em que são todos portugueses e que se fala da cultura geral de Portugal, de alguns doces ou pratos que eu não conheço, e eu não entendo.”

 

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De olho no futuro

Se antes da transferência de administração, estudar na Escola Portuguesa de Macau não era uma opção óbvia para quem não tinha o português como língua materna, passados quase 17 anos esta é uma escolha cada vez mais comum. O corpo de alunos do estabelecimento de ensino português é composto por mais de duas dezenas de nacionalidades. Dados cedidos pela EPM à MACAU revelam que, entre os 545 estudantes inscritos no início do ano lectivo de 2015/2016, 93 não eram portugueses – 38 tinham nacionalidade chinesa, 14 eram de origem brasileira, oito angolana e quatro cabo-verdiana. A lista, que agrupa um total de 22 nacionalidades, estende-se pelos cinco continentes do globo.

Manuel Machado, presidente da direcção da EPM, diz que o projecto educativo do estabelecimento de ensino é um dos factores que pesa na decisão dos pais. Ao ingressar na EPM, têm a possibilidade de estudar nas universidades portuguesas ou estrangeiras. “Temos alunos que vieram de escolas chinesas com o objectivo de prosseguirem os estudos em Portugal”, sublinha.

 

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Ano lectivo 2015/2016

Proveniência dos alunos

Portugal – 452

China – 39

Angola – 8

Austrália – 1

Bielorrússia – 1

Brasil – 14

Cabo Verde – 4

Costa Rica – 2

Espanha – 1

Filipinas – 2

França – 2

Guatemala– 2

Indonésia – 3

Itália – 1

Japão – 1

Mongólia – 1

Nova Zelândia – 1

Peru – 1

Reino Unido – 4

Rússia – 3

São Tomé e Príncipe – 1

Timor-Leste – 1

 

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Reconhecimento de diplomas

A Escola Portuguesa de Macau já reconheceu 73 diplomas de alunos do ensino secundário de língua não portuguesa da RAEM. O estabelecimento de ensino tem a competência para conferir as equivalências desde Julho do ano passado, quando foi assinado um acordo entre o Ministério da Educação português e a Direcção dos Serviços de Educação e Juventude de Macau. “[São] alunos que terminam o ensino secundário nas escolas de Macau e que querem ver reconhecido o seu ensino secundário para depois prosseguir os estudos em Portugal”, diz Manuel Machado, presidente da direcção da EPM. Até ao momento, a Escola Portuguesa de Macau não rejeitou nenhum pedido.