É de pequenino que se aprende chinês

Viver a cidade em pleno. Esta é uma das motivações que leva cada vez mais famílias originárias dos países de língua portuguesa residentes em Macau a optar pelo ensino chinês. Fomos ouvir a história de quem o fez. Do ensino regular chinês, ao luso-chinês ou multilingue, esta é também a história de uma cidade que está a tentar chegar a mais comunidades.

 

 

Texto Catarina Domingues | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro e Tiago Alcântara

 

Já passam das cinco e meia da tarde. A Escola Oficial de Zheng Guanying, na zona norte da cidade, está praticamente vazia. Chove lá fora, dois homens estão sentados nas escadas da entrada, como se esperassem a chuva passar. Obras bloqueiam a porta principal e chegamos ao recinto escolar pela parte lateral. Nos corredores, não se sente a presença de ninguém, mas quem sobe ao primeiro andar começa a ouvir ao longe a voz da correria. Maria João, Leonor e Carlota estão à nossa espera numa das salas. “Vais filmar?”, pergunta Maria João, dez anos, inclinada sobre a mesa.

É a irmã mais velha e pousa para a máquina fotográfica. Leonor e Carlota, de oito e cinco anos, correm pelo espaço, vão e vêm enquanto falamos, óculos coloridos, seringas e estetoscópios de brincar nas mãos.

As três irmãs, portuguesas, entraram para a escola Zheng Guanying, de ensino veicular em mandarim, em 2012, um ano depois do estabelecimento de ensino abrir as portas.

 

 

Maria João ainda passou pelo ensino regular português – frequentou a Escola Portuguesa de Macau durante um ano. A adaptação ao ensino chinês “foi um bocadinho difícil”, diz. “Não percebia nada do que se estava a dizer nas aulas. Primeiro comecei a falar, depois a escrever, depois a ler.” Tinha apenas seis anos.

Na escolha dos pais, em Macau há 14 anos, pesou o futuro, o presente também, diz a mãe. “Tem de se começar cedo, a língua é complexa, requer muita memorização, e achámos que aprender a língua local proporcionaria novos horizontes. Se eu estivesse emigrada num outro país, aprenderia provavelmente essa língua”, nota Patrícia Ribeiro.

Leonor, a filha do meio, entrou para a Zheng Guanying no segundo ano do jardim-de-infância. Quando ouve a mãe dizer que as três filhas já nasceram em Macau, Leonor interrompe, porque quer deixar claro de onde vem. “Eu sou portuguesa”, vinca.

 

 

“Ainda me lembro de querer ir à casa de banho, não saber pedir à professora [em chinês] e sair da aula a correr”, relembra.

Segue-se um diálogo entre as duas irmãs mais velhas, que começa em mandarim, a língua mais falada da China, e acaba em cantonês, a língua mais falada de Macau. Apesar da língua veicular do estabelecimento educativo ser o mandarim – o português e o inglês são línguas segundas – as três irmãs vivem o recreio em cantonês e também entre vários idiomas. E é tão natural quanto estas brincadeiras por aqui. “Na rua, às vezes, as pessoas ficam espantadas porque sou portuguesa e falo chinês”, diz Maria João.

“Carlota, queres falar comigo?”, pergunto. Mas a mais nova das irmãs leva as mãos à cara. “Estou cansada”, vai dizer mais tarde.

 

 

Aposta no multilinguismo

A Escola Oficial de Zheng Guanying entrou em funcionamento em 2011 nas instalações da antiga Escola Primária Luso-Chinesa de Tamagnini Barbosa. Trata-se de um projecto-piloto do Governo de Macau, que tem em vista a diversificação do sistema educativo das escolas oficiais locais. Ao contrário da maioria dos estabelecimentos de ensino de Macau, cuja instrução é feita em cantonês, aqui é o mandarim a língua de ensino. O objectivo é que os alunos se tornem fluentes também em português e inglês, idiomas que vão sendo introduzidos ao longo do percurso escolar.

Quando abriu as portas, a escola contava apenas com 106 alunos, divididos por seis turmas. Hoje são 298 estudantes e 16 turmas, desde o jardim-de-infância até ao segundo ano do secundário. Números que segundo a directora do estabelecimento de ensino, Wu Kit, são “prova de que o sistema está a funcionar”.

“Macau, como plataforma de serviços entre a China e os países de língua portuguesa, tem muito potencial e atrai cada vez mais estrangeiros que aqui querem ficar a viver ou fazer carreira. Penso que a maioria dos pais [destes alunos] quer encontrar um lugar para os filhos nesta cidade”, reforça a responsável.

 

 

Estamos na sala de português do jardim-de-infância, sentadas num mundo em miniatura. As mesas e as cadeiras são pequenas, as cores variam, tons verdes, azuis, amarelos. A acompanhar a directora está ainda um grupo de professoras.

Anita Wu é coordenadora do jardim-de-infância e é com ela que muitos dos alunos dão os primeiros passos na língua chinesa: “Têm dois anos e meio ou três quando chegam e nas duas primeiras semanas falamos na língua com a qual se sentem mais confortáveis”, realça a responsável, admitindo que, aos poucos, se vai introduzindo o mandarim no dia-a-dia das crianças. No segundo ano do jardim-de-infância já falam chinês, no terceiro são fluentes, refere a coordenadora.

Há, no entanto, quem sinta dificuldade em adaptar-se ao sistema. A direcção realça que nem todos os alunos portugueses “conseguiram adaptar-se ao ambiente, abandonando a escola no primeiro ou segundo mês”. Mas são uma excepção, garante a directora Wu Kit, que acredita que a adaptação ao sistema de ensino da Zheng Guanying deve contar também com a colaboração dos pais e o “respeito pela cultura de ensino” vigente.

 

 

Adaptar-se às diferenças

Com as três irmãs, o processo de aprendizagem do chinês foi “muito natural”, explica a encarregada de educação. “De repente estavam a olhar para um texto, a ler e saía tudo direitinho”, diz Patrícia Ribeiro.

Para fazer o acompanhamento dos estudos depois das aulas, Maria João, Leonor e Carlota têm a ajuda de um professor que dá apoio na revisão da matéria e nos trabalhos de casa.

Patrícia Ribeiro realça ainda aspectos do ensino chinês aos quais ainda se estão a adaptar, como é o caso do sistema de avaliação, que considera “muito matemático”.

 

 

“Não se tem em conta como é que foi a progressão durante o ano, se melhoraram ou não, se fizeram muitas apresentações na sala, se participaram. Nesse aspecto são um pouco rígidos”, nota a encarregada de educação.

Também o número de alunos por aula – entre 25 e 27 – tem vindo a aumentar desde que a escola começou a funcionar. A directora Wu Kit, que considera o número “razoável”, explica que o aumento se prende com o volume crescente de alunos inscritos no estabelecimento de ensino.

“Quando há crianças cujas línguas maternas são tão variadas como aquelas que vemos nesta escola, é uma preocupação ter turmas grandes, [porque o ensino] é menos individualizado, o professor não tem tanta capacidade de chegar a todos da mesma maneira”, sublinha Patrícia Ribeiro, referindo, porém, que este é um aspecto comum a outras escolas de Macau.

 

 

De uma forma geral, a encarregada de educação mostra-se “satisfeita com o trabalho da escola”. Aqui, há espaço e tempo para as filhas “serem espontâneas”, refere. “Sempre quis que, para além de sentirem a necessidade de cumprir aquilo que está estipulado, pudessem ter liberdade para terem tempo para brincar e serem criativas e isso elas têm.”

 

Chegar a todos

Bem mais antiga é a Escola Secundária Luso-Chinesa de Luís Gonzaga Gomes, fundada em 1985. Uma nota no portão principal indica que a entrada se faz pela porta lateral. Passamos pelo campo de jogos, a chuva salienta as cores do piso, laranja e azul, que contrastam com o edifício principal, rosa seco. A estrutura data dos anos 40 do século passado e é um exemplar da arquitectura modernista de Macau. Ao fundo, do lado direito, surge imponente o Grand Lisboa; vê-se apenas a parte superior deste hotel-casino de 258 metros, tons dourados.

 

 

Entramos no recinto escolar. As aulas decorrem, o corredor principal permanece em silêncio; numa das paredes lê-se: “Partilhamos com alegria, juntos crescemos”, escrito em chinês, português e inglês; está lá, também, o busto do escritor, sinólogo e professor macaense que deu o nome ao estabelecimento de ensino, Luís Gonzaga Gomes. Cinco estantes alinhadas expõem troféus, são tantos, que é impossível fazer as contas em tão pouco tempo.

Trata-se do primeiro estabelecimento de ensino secundário luso-chinês em Macau. Só na secção chinesa estudam 420 alunos – cerca de uma centena são estrangeiros, 17 são portugueses.

“Damos a todas as comunidades e etnias de Macau a oportunidade de estudar”, explica Leong Iao Cheng, director da instituição, referindo que é “uma vantagem aprender português e chinês”, as duas línguas oficiais da RAEM. Ao contrário da Zheng Guanying, o idioma veicular da secção chinesa da Luís Gonzaga Gomes é o cantonês.

 

 

“Ainda agora o primeiro-ministro chinês veio dizer que temos de dar mais importância ao português; o Governo Central quer que Macau seja uma plataforma entre as duas culturas e línguas”, realça o responsável.

 

Entre o chinês e o português está o inglês

Pelas quatro da tarde, ouve-se o toque de saída na Luís Gonzaga Gomes. Estela Martins e Verónica Ramos, alunas portuguesas do 9.º ano da secção chinesa, entram na sala de reuniões, onde nos encontramos, sentam-se lado a lado.

Estela Martins, 14 anos, nasceu nos Açores, é filha de pai são-tomense, mãe tailandesa, e frequenta o ensino luso-chinês desde a primária. É fluente em cantonês. “Estávamos sempre a repetir, a perceber qual era o significado do carácter e voltávamos a repetir”, relembra assim os primeiros tempos de estudante de chinês.

Já Verónica Ramos, 15 anos, é filha de pai filipino e mãe portuguesa. Frequentou até há pouco tempo o ensino regular chinês. “A escola exigia notas altas e não queria que os alunos tivessem 60 por cento num exame, mas sim 80 por cento”, frisa Verónica, referindo que foi por sugestão da própria escola que acabou por sair. A opção recaiu sobre a luso-chinesa. Verónica queria melhorar o português.

Mas na história destas alunas portuguesas, fluentes nas duas línguas oficiais da RAEM, é muitas vezes o inglês que acaba por unir os universos linguísticos que as rodeiam.

“Falo chinês e português com a minha mãe e falo mais inglês com as minhas irmãs”, nota Estela. O inglês é, aliás, a disciplina que as duas alunas mais gostam. São também em inglês os canais de televisão que vêem, os livros que lêem.

Quem também sonha com um mundo falado em inglês é Josecler Nascimento Filho, de origem brasileira. É o único entrevistado desta história que frequenta o ensino exclusivamente em língua chinesa.

 

 

Na China sê chinês

Josecler Nascimento Filho chega encharcado à entrevista. Estamos em meados de Outubro, voltou a chover. O emblema da escola Pui Va está estampado ao longo da gravata grená, que tira ao sentar-se. “O Josy sabe fazer o nó da gravata desde os 12 anos, desde que entrou para esta escola chinesa”, realça a mãe, Siegy Nascimento. Estamos nas instalações da Universidade da Cidade de Macau, na Taipa. É aqui que Siegy trabalha.

Josecler traz vestido o uniforme escolar: calças cinzentas, camisa branca, sapatos pretos, meias brancas. “E têm de ser brancas, sem nenhuma inscrição”, reforça a encarregada de educação. “São muito exigentes nesse aspecto”, diz.

E o filho prossegue: o cabelo tem de ser curto, tatuagens nunca à mostra, o telemóvel é para estar desligado. A importância de se ser disciplinado está sempre lá. Todos os anos, Josecler passa dois ou três dias com os colegas num campo de treino, em Coloane, e entender a rotina de um soldado.

E namorar? “Sim, pode namorar-se, os professores até gozam”, diz.

Josecler, filho de pais brasileiros, nasceu em Macau há 16 anos. Completou o ensino básico na Escola Luso-Chinesa da Taipa. “Por ser mais prático”, lembra a mãe. “Era perto de casa, ele podia ir sozinho e aprendia-se inglês, português e chinês.”

Já fluente em cantonês, os pais decidiram que o filho faria a educação secundária na escola oficial chinesa Pui Va, também na Taipa. O português deixou de fazer parte do currículo do brasileiro.

“No comecinho, fiquei um bocadinho relutante”, relembra Siegy, oriunda do Rio de Janeiro. “Nesse primeiro ano reprovou, mas com o tempo foi-se ambientando à escola, aprendendo com o ritmo do ensino chinês e a partir daí correu bem”. Hoje a identificação com a cultura chinesa “é total”, diz a mãe.

E assim é: ao pequeno-almoço Josecler gosta de comer siu mai (bolinhos chineses de carne de porco cozidos ao vapor) e salsichas, a televisão está sintonizada nos canais chineses, no telemóvel escreve-se em caracteres.

Nunca se sentiu desintegrado. “É um macaense”, afirma Siegy, que acredita que o interesse pelo ensino chinês está a crescer entre a população estrangeira, residente em Macau: “Pessoas que sabem que o meu filho frequenta o ensino chinês me ligam perguntando como é o ensino, como é que se faz para entrar”.

E depois do liceu Josecler já tem uma ideia do que quer fazer: “Quero estudar Direito em Portugal, acho que terá vantagens para pessoas aqui de Macau que falam as três línguas, acho que é uma boa escolha”, diz.

O futuro deste brasileiro, fluente em pelo menos três idiomas, também está escrito em inglês. Jeito parece que leva. A mãe diz com orgulho que o filho já ficou em primeiro lugar num concurso de declamação de poesia em inglês e que juntava alunos de Macau e Hong Kong. “Poxa, de Hong Kong inteiro, então é porque ele é muito bom.”

 

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14 alunos de língua materna portuguesa frequentam a Escola Oficial de Zheng Guanying, num total de 298 alunos

 

17 alunos de língua materna portuguesa frequentam a secção chinesa da Escola Secundária Luso-Chinesa de Luís de Gonzaga Gomes, num total de 420 alunos

 

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“E a nossa língua materna, onde é que fica?”

Na secção chinesa da Escola Secundária de Luís Gonzaga Gomes, o português é leccionado como língua estrangeira. Para aqueles cuja língua materna é o português, como é o caso de Estela Martins e Verónica Ramos, a frequentar o 9.º ano de escolaridade, a evolução é lenta.

“Continuamos a aprender o mesmo que na primária e temos de estar sempre a repetir coisas do ano anterior, porque os nossos colegas não sabem tanto, e é um pouco chato”, diz Estela.

Vítor Cervantes, professor de português na secção chinesa desta escola, realça que o principal objectivo dos pais que põem os filhos na Luís Gonzaga Gomes, é a aprendizagem do chinês. “Se não falarem chinês, vão viver como estrangeiros nesta terra.” No que diz respeito ao ensino da língua materna, Cervantes realça que há uma série de actividades que permitem uma maior imersão no português. “No 11.º ano, por exemplo, têm oportunidade de frequentar um curso de Verão em Coimbra”, realça.

Já para Patrícia Ribeiro, com três filhas a estudar na Escola Oficial de Zheng Guanying, cuja língua veicular é o mandarim, o ensino do português também é uma prioridade. “A minha maior preocupação, e acho que é a de qualquer pai que pense em pôr uma criança numa escola na qual a língua materna não é a veicular, é: a nossa língua materna, onde é que ela fica?”, assume a encarregada de educação. “Quando elas vieram para a escola, o português era dado como língua estrangeira ou língua segunda, e nós, pais, pedimos para a escola ter atenção e isso foi tomado em conta. Os nossos filhos têm há um ano português como língua materna”, realça.

No currículo da Zheng Guanying, algumas disciplinas são leccionadas em português, como é o caso de música, educação física, educação visual e português. “Esta não é uma escola portuguesa”, relembra a directora Wu Kit, realçando que, ainda assim, sendo este um projecto-piloto, há sempre espaço para adaptar o ensino às necessidades dos alunos.

Carla Sá, coordenadora de língua portuguesa da escola e professora de português, explica que, como não há alunos portugueses suficientes em todos os anos de escolaridade, a escola está a tentar dar apoio de uma forma mais individual aos alunos portugueses.

“Mas é algo que não se pode fazer sempre, porque não se pode ter um professor a trabalhar para um aluno só. Também temos alunos chineses que precisam do nosso apoio e atenção.”

E depois há sempre um esforço pessoal, lá em casa. Antes de ir para a cama, a família Ribeiro tem o hábito de ler à noite para as três filhas. Sempre em português.