Como se faz um calendário

Ordenar o tempo exige ciência e engenho. Mas os criadores do antigo calendário chinês foram mais longe, buscando raízes na sua própria filosofia tradicional. No princípio eram o yin e o yang...

 

 

 

Texto Luís Ortet | Fotos Gonçalo Lobo Pinheiro

 

Os historiadores das ciências costumam sublinhar o facto de a astronomia ter sido uma das primeiras a desenvolver-se nas várias civilizações. Perante uma mutabilidade imprevisível do “mundo sublunar” (como chamavam os antigos filósofos europeus ao mundo imediato em que vivemos), o movimento dos dois astros luminares, o Sol e a Lua, das “estrelas errantes” (os planetas) e ainda das estrelas “fixas” obedecia a padrões cíclicos respeitados com um rigor matemático. Não admira pois que tenham dedicado uma atenção especial ao registo desses movimentos e que tenham visto neles como que mensagens de uma realidade superior, não submetida aos acidentes da impermanência.

De todos esses movimentos, os do Sol e da Lua são os que causam um impacto mais imediato e perceptível no quotidiano do já referido “mundo sublunar”, assim chamado por se situar (no esquema cosmológico clássico europeu), imediatamente abaixo da esfera da Lua. Ao contrário das esferas celestes, onde se moviam ordenadamente corpos constituídos por uma matéria imperecível, o éter, o mundo sublunar estava submetido, nessa visão cosmológica, aos princípios da geração e da corrupção (o mundo da impermanência), a que o filósofo grego Aristóteles dedicou uma das suas obras (Sobre a Geração e Corrupção) .

O movimento aparente do Sol em torno da Terra ao longo do ano marca o ciclo das quatro estações. Trata-se realmente de um ciclo, isto é, algo que nunca começa nem acaba mas que se repete cíclica e indefinidamente (o carácter zhou 周 da língua chinesa sintetiza bem este conceito). Aristóteles defendia igualmente a natureza circular do tempo, em contraste com o nosso actual e artificial conceito de tempo, o templo não cíclico, sem retorno, dos relógios de quartzo.

 

Yin e Yang

Um dos princípios incontornáveis da filosofia tradicional chinesa é o da polaridade yinyang. Este deve ser um dos assuntos sobre os quais mais se escreveu nas línguas ocidentais nas últimas décadas, pelo que pouco há a acrescentar sobre o seu significado fundamental.

O yin 阴 é a noite e o lado passivo, frio, feminino e flexível das coisas. O yang 阳 é o dia e o lado activo, quente, masculino e dinâmico das coisas. Os criadores dos oito trigramas e 64 hexagramas do clássico Yijing (I Ching) exprimiram esta antinomia através de uma linha quebrada “- -” para significar yin e uma linha contínua “—” para significar yang. O filósofo e matemático alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, criador dos números binários, na segunda metade do século XVII, manifestou a sua particular admiração por este conceito. Do jogo destes dois princípios deriva tudo o que existe no universo em que vivemos.

Ao longo do ano sucedem-se as quatro estações e por volta do dia 21 de Dezembro ocorre a noite mais longa do ano no hemisfério norte. É o solstício de Inverno. Noite, “frieza”, passividade, isto é, yin. O dia 21 de Dezembro representa, em termos do ciclo anual, o pico do princípio yin.

Por outro lado, 21 de Dezembro é o ponto central do espaço de tempo que decorre entre 8 de Novembro e 3 de Fevereiro, a que o Calendário do Agricultor (nongli 农历) da China chama a estação dong 冬, que os dicionários ocidentais costumam traduzir, com algum grau de imprecisão, como “Inverno”. A estação dong equivale à fase shui 水, que corresponde a um dos wuxing 五行. Shui é a fase do princípio yin amadurecido e estabelecido. Não é possível haver mais yin. É um estado extremo, e os extremos tocam-se. Por isso o extremo yin desperta o princípio que se lhe opõe, o yang.

É assim que a partir do dia 21 de Dezembro as noites (no hemisfério norte) começam a diminuir, ao mesmo tempo que os dias (princípio yang) começam de novo a crescer.

Mas só a partir do dia 4 de Fevereiro se considera que o princípio yang realmente desperta. O dia 4 de Fevereiro é conhecido como Lichun 立春, ou seja, o dia do estabelecimento ou começo da “Primavera”. Ora, em termos meramente climáticos, 4 de Fevereiro está longe de ser um dia de Primavera (como a entendemos no Ocidente) em países como a própria China (às vezes neva quer em Pequim ou em Xangai, por exemplo), em países europeus ou nos Estados Unidos da América.

Também é verdade, por outro lado, que na língua chinesa chun 春 está associado a muitas características que conotamos com a nossa Primavera, como o amor e a sensualidade, encontrando-se repetidos exemplos disso na literatura. Em todo o caso as quatro fases do ano conhecidas em chinês como chun 春, xia 夏, qiu 秋 e dong 冬 devem ser entendidas antes de mais como conceitos cósmicos e não necessariamente climáticos.

Entre 4 de Fevereiro e 6 de Maio ocorre então a “estação” cósmica conhecida como chun, que tem o seu pico a 21 de Março, dia do equinócio da Primavera, em que, em todo o mundo, os dias e as noites se equilibram (daí o nome “equinócio”). Esta “estação” chun está associada ao “elemento” madeira, ou melhor, mu 木, que não tem exactamente o mesmo significado que a nossa “madeira” ou o wood inglês. Uma vez mais estamos a lidar com conceitos filosóficos e não com a mera descrição da realidade concreta. O que importa reter é que mu (como chun) significa o princípio yang ainda jovem e a crescer.

As outras duas “estações” seguem-se de acordo com os quadros que acompanham este artigo.

 

 

A neutralidade do elemento terra

Um pormenor a ter em conta é que, apesar de só haver quatro estações, o conceito numerológico chinês em torno do número cinco levou à criação de uma quinta “fase”, a terra, que se interpõem entre o fogo (o yang amadurecido) e o metal (o princípio yin na sua fase crescente).

No final chegamos à sequência natural do wuxing: mu 木 – madeira (estação chun ou Primavera), que gera huo 火 – fogo (xia ou Verão), que gera tu 土 – terra (“estação” neutra, que aparece no terço final de cada uma das quatro estações climáticas) que gera jin 金 – metal (qiu ou Outono), que finalmente gera shui 水 – água (dong ou Inverno), que por sua vez gera, de novo, mu (madeira), prosseguindo o ciclo indefinidamente.

 

 

Como se pode igualmente ver nas ilustrações, a sequência wuxing também ocorre no ciclo diurno resultante do nascer e pôr-do-sol, em que igualmente se oscila entre o extremo yin (a meia-noite) e o extremo yang (o meio-dia). E também aqui aparece tu (a terra) como “elemento” neutro por excelência, tornando-se dominante no terço final de cada uma das quatro fases do dia, quando a natureza de certo modo se neutraliza, preparando-se para dar lugar à fase que se segue. Mu e huo têm uma tónica yang, ao passo que jin e shui têm uma tónica yin, e tu, uma vez mais, nem é yang nem é yin, representando a fusão dos dois princípios.

Resumindo e concluindo, o ciclo diurno dos dias e das noites e o ciclo das quatro estações (siji 四季) são duas manifestações paralelas de um mesmo conceito e de um mesmo ciclo natural.