Lou Kau, o primeiro magnata do jogo  

Lou Kau fez fortuna com o comércio de carne de porco, mas é hoje sobretudo relembrado por lançar as fundações da indústria do jogo em Macau. Líder da comunidade chinesa, o empresário foi agraciado pelo rei de Portugal por duas vezes. São poucos os estudos sobre a vida deste homem que, endividado, acabaria por se enforcar em casa, ainda não tinha completado 60 anos.

 

 

Texto Catarina Domingues 

 

Nasceu pobre, morreu endividado. Mas entre este primeiro e último momento de vida fez fortuna, dominou a indústria do jogo de Macau, foi o mais influente membro da comunidade chinesa local da época, ponte entre portugueses e chineses, filantropo. Em apenas 59 anos de vida, Lou Kau deu muito mais à cidade do que apenas uma casa e uma rua com o seu nome. Mas a história deste homem, que começou por fazer fortuna com o comércio da carne de porco entre Macau e a Província de Guangdong, ainda está por ser estudada e escrita. Para tentar perceber quem foi Lou Kau é necessário recorrer a historiadores, bibliotecas, tradutores, perceber o que é mito, o que é realidade, atribuir uma forma humana ao herói. 

“Há uma relativa escassez de estudos sobre o papel das famílias de comerciantes chineses no Macau moderno”, refere Lin Guangzhi, co-autor de uma compilação de trabalhos sobre Lou Kau, publicada em 2010 pelo Instituto de Assuntos Cívicos e Municipais (IACM). A obra, intitulada Colectânea de teses do seminário sobre a família Lou Kau e a comunidade chinesa, escrita em chinês e com prefácio e um resumo em português, reúne estudos de vários investigadores, presentes num seminário dedicado ao tema. “É o primeiro estudo sistemático sobre as famílias de comerciantes chineses que deram um contributo importante para o desenvolvimento de Macau moderno”, escreve Hao Yufan, director do Centro de Estudos de Macau da Universidade de Macau, que organizou o seminário em conjunto com o IACM. 

Prova do estatuto adquirido pelo homem de quem hoje escrevemos, é a Mansão Lou Kau, no número 7 da Travessa da Sé, no coração da cidade. Esta casa-pátio de dois pisos foi construída em 1889 e integra hoje a lista de Património Mundial da UNESCO. “Era uma pessoa importante, porque tinha a possibilidade de ter uma casa junto à Sé Catedral, o que na altura não acontecia [entre os chineses]”, refere Vincent Ho, historiador da Universidade de Macau. 

 

 

Da carne de porco ao jogo  

Lou Kau, nome pelo qual ficou conhecido Lou Va Sio, nasceu em 1848 em Xinhui, actual Jiangmen, na Província de Guangdong, no seio de uma família humilde. Com apenas nove anos, mudou-se para Macau. 

Pouco antes de Lou Kau nascer, Macau passou por momentos conturbados. Hong Kong, ocupada pelos britânicos durante a primeira Guerra do Ópio (1839-1842), retirou à cidade sob administração portuguesa o estatuto de porto comercial. À procura de novas fontes de receitas, Macau legalizou em 1847 o jogo, que se viria a tornar num dos principais motores económicos da região. 

À semelhança de várias famílias de comerciantes chineses, também os Lou prosperaram com o negócio décadas mais tarde. E as regiões vizinhas deram um empurrão: em 1872 o governador de Hong Kong, Arthur Edward Kennedy, proibiu jogos de fortuna e azar na colónia britânica, fazendo com que os jogadores daquela cidade rumassem a Macau; também em 1875, Cantão proibiu a lotaria vae seng, jogo que acabaria por se tornar num dos mais populares de Macau, a par do fan-tan, das lotarias pacapiu e da Santa Casa da Misericórdia, negócios explorados ao longo de décadas pela família de Lou Kau. 

“Lou deu um contributo muito importante para o desenvolvimento sustentável da indústria do jogo em Macau. Foi ele que lançou os alicerces da moderna indústria de Macau”, escreve ainda o historiador Lin Guangzhi na Colectânea de teses do seminário sobre a família Lou Kau e a comunidade chinesa 

O especialista realça, no entanto, que o empresário é frequentemente lembrado pela actividade profissional na área financeira e do jogo, mas que foi a vender carne de porco que fez a primeira fortuna. No final da década de 60 do século XIX, Lou estabeleceu-se na Província de Guangdong, entrou para o negócio da carne de porco, abriu um pequeno banco privado e explorou o negócio do jogo. 

É em 1882 que regressa a Macau. Do jogo ao ópio, passando pelo comércio e imobiliário, Lou actuava em vários sectores. “Eram todos negócios legais, ele tinha um clube privado onde os ricos podiam jogar, fumar e encontrar prostitutas”, nota o presidente da Associação de História de Macau, Chan Su Weng. 

 

 

 

Filantropo e intermediário  

Lou Kau enriqueceu e retribuiu à cidade. O “primeiro magnata do jogo”, como também ficou conhecido, contribuiu nas áreas da educação e da saúde, passando pela cultura e o urbanismo. “Foi um homem que fez muita caridade, foi um dos presidentes do Hospital Kiang Wu, cuja construção ajudou a financiar, e fez doações para o desenvolvimento da medicina”, diz Chan Su Weng.  

Lou Kau criou escolas de ensino gratuito, fundou a Escola dos Filhos e Irmãos dos Pescadores e, em conjunto com outros comerciantes chineses, estabeleceu a Associação de Beneficência Tung Sin Tong. Detentor de terrenos em Macau, construiu habitação económica e apoiou a urbanização da cidade, servindo de intermediário entre as autoridades e os moradores de zonas expropriadas pelo governo. 

“Foi de longe a pessoa mais influente entre a comunidade chinesa”, salienta João Guedes, jornalista e investigador da história de Macau, realçando que Lou Kau facilitou a comunicação entre chineses e portugueses. Estatuto, nota ainda o jornalista, que lhe “permitiu fazer uma coisa importantíssima, que era a ligação com o Governo de Guangdong”. João Guedes recorda ainda uma história por poucos conhecida: “Lou Kau tinha dinheiro, mas precisava de ter nome e, por isso, pagou a uma pessoa para ir a Cantão fazer em seu nome os exames imperiais e foi assim que obteve o grau de mandarim”. 

Em 1888 foi-lhe atribuída nacionalidade portuguesa. “Nessa altura era uma raridade”, recorda Guedes. “Só quando Salazar sobe ao poder é que a lei passa a ser a jus soli e qualquer pessoa que nascesse em território português era português.” 

E não foi o único, completa o historiador Chan Su Weng: “Nesse mesmo ano, Lou Kau publicou no boletim do governo uma nota que dizia que seis dos seus filhos tinham nascido em Macau, o que não era verdade, e que gostariam de obter a nacionalidade portuguesa. Se essa nota não recebesse nenhuma objecção ao longo de um mês, então poderiam tornar-se portugueses.” E foi isso que aconteceu.  

Do rei de Portugal D. Carlos I, Lou Kau recebeu o título de Cavaleiro da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo, assim como a Comenda da Real Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa. Aqui pesou a ajuda prestada a Macau entre 1895 e 1896, quando a cidade foi afectada pela peste bubónica. 

Pouco claro na genealogia da família Lou é o número de descendentes que deixou. Registos históricos avançam diferentes teorias, sendo que a versão mais ambiciosa conta a história de dez mulheres, 17 filhos e 16 filhas. O historiador Chan Su Weng rejeita o número: “Morreu aos 59 anos, é muito improvável que tenha tido tantos filhos”. Dos sucessores de Lou Kau destacam-se vários varões, sendo o mais conhecido Lou Lim Ioc, que herdou o negócio do pai. “Nem sabemos como se chamavam as filhas, nessa altura não era suposto as mulheres serem populares”, vinca Chan.  

 

 

 

Sun Yat-sen, os Lou e a revolução 

Sun Yat-sen foi médico, revolucionário e o primeiro presidente da República da China. Depôs a Dinastia Qing em 1911, depois de quase 300 anos no poder. Com a família Lou, o pai da República manteve relações próximas desde finais do século XIX, quando chegou a Macau a convite de Lou Kau para trabalhar como médico no Hospital Kiang Wu. 

Em 1895, após uma tentativa de revolta em Cantão, é a família Lou que auxilia Sun Yat-sen na fuga. “Primeiro para Hong Kong e depois para o Japão”, conta Chan Su Weng. 

Lou Lim Ioc, o filho mais velho de Lou Kau, manteve contacto frequente com o médico e com os membros do partido nacionalista chinês. Na sequência da Revolução de Xinhai, que derrubou os Qing, Lou Lim Ioc convidou Sun Yat-sen para ficar no pavilhão da Erva da Primavera, na casa onde vivia – actualmente o Jardim Lou Lim Ioc – e uns anos mais tarde chegou a oferecer um avião ao então presidente para apoiar a criação de uma força aérea na China. 

Mas de todos os membros da família de Lou Kau, foi o terceiro filho, Lou I Ioc, que manteve a relação mais próxima a Sun Yat-sen, que conhecia desde jovem. Enquanto estudava no Japão e em Inglaterra, Lou I Ioc juntou-se à revolução, tornando-se líder da Liga dos Chineses Unidos (secção de Macau). 

Responsável máximo por este grupo, Lou I Ioc organizou a primeira actividade revolucionária no Teatro Ching Ping, em 1909. Tratava-se de uma campanha que encorajava a população a abandonar hábitos da Dinastia Qing, como a utilização de vestuário manchu e de tranças longas.  

 

 

1907: O ano da morte de Lou Kau 

Em finais do século XIX, o governo regional de Guangdong abriu concurso para a atribuição de uma licença de jogo naquela província chinesa. A concessão foi atribuída pelo general Li Hongzhang a Lou Kau e a um grupo de investidores de Macau, Hong Kong e do Interior do País por um período de oito anos. Lou Kau pagou a pronto uma quantia avultada para a exploração do negócio da lotaria vae seng. 

Porém, três anos depois, o general Cen Chunxuan, que substituiu Li Hongzhang, anunciou a proibição do jogo e anulou a concessão, recusando-se a devolver o capital investido pela empresa de Lou Kau. Durante as negociações, o empresário exigiu uma compensação de dois milhões de yuans e tentou angariar apoio entre as autoridades portuguesas, mas sem resultados. 

Com mais dívidas do que bens, Lou Kau acabaria por se enforcar na casa onde vivia. Tinha 59 anos. 

Foi Lou Lim Ioc que tomou as rédeas dos negócios da família. E seguiu as pisadas do pai, mantendo investimentos no sector do jogo e apoiando a população através de acções de caridade. Lou Lim Ioc foi presidente honorário da Associação Comercial de Macau e director da Associação de Beneficência do Hospital Kiang Wu.  

Amante da botânica – aliás, como o pai – o filho mais velho de Lou Kau investiu uma soma significativa no Jardim Lou Lim Ioc, inspirado nos clássicos jardins chineses de Suzhou.  

Morreu aos 49 anos de doença grave. Na ruína, os descendentes viram-se obrigados a vender parte da propriedade do jardim à Escola Pui Cheng. No início dos anos 1970, o Governo de Macau adquiriu a restante parte deste espaço por 2,7 milhões de patacas. 

 

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A vida de Lou Kau 

1848 – Nasce em Xinhui, Província de Guangdong 

1857 – Fixa-se em Macau com a família 

1878 – Nasce o filho mais velho, Lou Lim Ioc, sucessor dos negócios da família 

1881 – Funda a Yee On (mais tarde denominada de Nova Companhia Sam Kee) e compra a empresa de lotarias Kung Son Vo Wei 

1884 – Nasce o terceiro filho, Lou I Ioc, que partilhava os ideais políticos de Sun Yat-sen 

1889 – Construção da casa de família na Travessa da Sé, hoje Património Mundial da UNESCO  

1890 – Recebe o título de Cavaleiro da Ordem Militar de Nosso Senhor Jesus Cristo, atribuído pelo Rei de Portugal 

1892 – Co-fundação da Associação de Beneficência Tung Si Tong de Macau  

– Convida Sun Yat-sen para trabalhar como médico no Hospital Kiang Wu. 

1888 – Adquire nacionalidade portuguesa  

1890 – É agraciado por Portugal com a medalha da Comenda da Real Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa 

1897 – Estabelece com Lou Kong U e um operador de jogo a Companhia Hung Vo, autorizada a vender cautelas da lotaria da Santa Casa da Misericórdia 

1907 – Endividado, enforca-se em casa