Paixão pelo bambu

A utilização do bambu como material de construção em Macau é uma prática secular, que tem passado de geração em geração sem que exista um manual, um livro. Três arquitectos portugueses empenham-se agora para que este conhecimento adquirido de forma empírica entre para a lista de património imaterial de Macau.

 

 

Texto Cláudia Aranda

 

Chio Seng Wai e Leong Wo deixaram o trabalho no campo numa aldeia algures perto de Zhuhai no final da década de 1970 para se tornarem o que são hoje em Macau, empreiteiros e mestres do bambu. O mais velho e experiente Chio Seng Wai, na casa dos 60 anos, estima que, na altura, houvesse cerca de 200 pessoas a trabalhar na construção com bambu. Hoje, não haverá mais de 70 trabalhadores, todos com idades superiores a 40 anos, diz Chio, diante de uma chávena de chá que sorve enquanto conversa com a MACAU, sentado ao lado do colega de profissão, Leong Wo, num estabelecimento de comidas situado na Rua do Pagode, não muito longe do templo budista de Hong Kung.

“Muitos jovens não querem trabalhar na construção, porque é um trabalho muito árduo”, traduz do cantonês para o português o arquitecto e artista plástico João Ó, que tem dedicado parte do seu trabalho a investigar as potencialidades do bambu na arquitectura e a desenvolver projectos artísticos contando com os velhos mestres para os executar.

Os empreiteiros do bambu sublinham as vantagens da utilização deste material orgânico nas estruturas temporárias de andaimes na construção civil ou dos grandes pavilhões de bambu destinados a espectáculos de ópera cantonesa, erguidos e desmontados diante dos templos por altura da celebração dos rituais dedicados aos deuses chineses.

“O bambu é um terço mais barato do que o ferro, é bastante mais versátil, os andaimes metálicos são feitos a direito não há a possibilidade de dobrar. O bambu é muito fácil de se deformar e de acompanhar as curvas do edifício”, explica João Ó, em português, enquanto Chio Seng Wai prossegue em cantonês.

Apesar das vantagens da utilização do bambu, há cada vez menos gente a aprender a utilizá-lo na construção. Houve também um decréscimo no número de empresas especializadas a trabalhar com bambu em obras de construção civil, devendo existir hoje à volta de “17 ou 18 companhias”, dizem os empreiteiros.

“A grande dificuldade é a falta de mão-de-obra”, diz Chio. Outro aspecto que dificulta muito o trabalho desta geração de profissionais, explica João Ó, é “lidar com a burocracia”. “Para montar um andaime na fachada de um edifício, os empreiteiros têm que mostrar a metodologia de trabalho, fazer desenhos de execução, explicar como vão fazer a obra. Os mestres do bambu são pessoas intuitivas, esta geração é de cavalheirismo, eles dizem que vão fazer, assinam um contrato e vai em frente”, explica o arquitecto, que desenvolveu com os construtores uma relação de colaboração profissional, tentando adaptar-se à sua forma empírica de trabalho.

Para os mestres, habituados a empreitadas em grandes obras de construção civil e a erguerem andaimes obedecendo a técnicas já por eles bem conhecidas, o convite para executarem instalações de arte revelou-se um verdadeiro desafio. Os mestres não hesitaram e aceitaram o repto e, ao fim de várias instalações artísticas concretizadas, estão cada vez mais convencidos de que os seus conhecimentos aplicados a um projecto de arte podem ajudar a promover a continuação da tradição do bambu em Macau.

Em todo o caso, alerta o mestre Chio, para assegurar que a utilização de bambu na construção não se venha a perder definitivamente, “será necessário o apoio do Governo na protecção deste ofício”. “Se não houver apoio institucional na protecção do conhecimento sobre o uso do bambu não haverá certamente esse futuro”, sublinha o mestre.

Chio Seng Wai conta que ele próprio e a Associação dos Barraqueiros de Macau à qual pertence têm tentado desenvolver actividades por forma a defender a profissão. Tentaram promover acções de formação sobre o uso do bambu, mas sem grande sucesso, devido à fraca divulgação dos cursos, admitem. Também em 2012, procuraram apoio no sentido de apresentar ao Governo uma proposta de candidatura para a inclusão da arte e ofício da construção em bambu no património cultural imaterial de Macau.

Por enquanto, os empreiteiros do bambu permanecem esperançosos de que a utilização do bambu em Macau continue, não obstante a actual falta de mão-de-obra e a tendência crescente para a utilização do ferro poderem colocar em risco o futuro da profissão. O que vai acontecer, dizem, “é que vai ocorrer uma espécie de alteração de papéis”. Daqui a 10 anos, “a geração deles já não vai trabalhar, já vai estar reformada. Provavelmente, eles conseguem passar a pasta administrativa aos filhos, mas a mão-de-obra será importada, já não será local, porque há cada vez menos profissionais a fazerem este trabalho localmente”, explica João Ó.

Em 2012, o Instituto Cultural anunciou novos itens incluídos na Lista do Património Cultural Imaterial de Macau, nomeadamente A-Má, Na Tcha, Gastronomia Macaense e Teatro Maquista, alargando a lista do Património Cultural Imaterial local para 10 itens. Há seis tradições de Macau que já integram a Lista do Património Cultural Imaterial da China: a ópera cantonense, o chá de ervas, a escultura de Ídolos Sagrados de Macau, as Naamyam Cantonense (canções narrativas), a música ritual taoista de Macau e o Festival do Dragão Embriagado.

Aprender com os mestres do bambu

Em 2015, os mestres do bambu Chio Seng Wai e Leong Wo viajaram com João Ó até Portugal para participarem na construção da obra Palácio da Memória, apresentado no Museu Nacional de História Natural e da Ciência, em Lisboa. Com esta obra João Ó homenageava o sacerdote e cientista Matteo Ricci, o jesuíta italiano do século XVI que se estabeleceu no Interior da China via Macau. No museu de Lisboa, o arquitecto apresentou três instalações de grande escala integradas nos diferentes espaços do edifício, com recurso à utilização de bambu enquanto material tradicional de construção. As obras foram erguidas no próprio local pelos mestres da profissão, sendo que a peça mais desafiante de construir foi a estrutura escultórica constituída por vários lados circulares, que evocava o mapa do mundo em chinês elaborado por Ricci. A adaptação do projecto à realidade acabou por ultrapassar todas as expectativas, com artista e mestres a superarem-se a si mesmos em termos de recursos técnicos que tiveram que idealizar no momento para conseguirem concretizar a obra, conta João Ó.

“O mais engraçado é que, em Lisboa, acho que nos transcendemos, as duas partes, eu como artista e eles como executores”, diz João Ó. “A esfera foi o projecto mais difícil de executar, porque era preciso torcer o bambu. Para isso, os mestres tiveram que relembrar técnicas mais tradicionais que nunca utilizam no dia-a-dia. Na construção do andaime é só conceber a grelha e está feito. Ali, tiveram que abrir uma vara de bambu em seis, um trabalho muito artesanal, transformar a vara em ripas, laminar as ripas para ficarem mais finas, para poder torcer e fazer a esfera. Nesse aspecto, acho que os mestres se transcenderam”, refere o arquitecto.

Para isso muito contribuiu a empatia profissional que arquitecto e mestres do bambu acabaram por desenvolver ao longo de meses de trabalho em conjunto. “A nossa relação é muito fluída, porque tento adaptar-me às dificuldades deles. Como arquitecto tenho que fazer plantas, desenhos, alçados, mas percebi que eles não conseguiam interpretar os desenhos. Para ultrapassar essa dificuldade, fiz uma maquete. Não posso deixar que um obstáculo de interpretação impeça o nosso desenvolvimento, porque nós temos um objectivo, que é concretizar a obra. Tenho de adaptar-me às dificuldades deles e eles também se adaptam, têm que ser mais versáteis em termos de concepção espacial do modelo que eu quero. Nesse aspecto os mestres são bastante ágeis mentalmente, têm uma boa leitura espacial, que advém da profissão. Essa leitura espacial tem também a ver com a minha profissão. Ou seja, ‘espacialmente’ falamos da mesma coisa, é como se fosse música, estamos a tocar notas musicais, entendemo-nos e vamos continuar nesta linguagem”, prossegue o arquitecto.

Na execução dos projectos artísticos, os construtores foram encontrando sempre soluções, em busca do aperfeiçoamento da obra. “Os mestres mantiveram sempre uma atitude construtiva”, afirma João Ó. “Todos os dias, quando acabávamos o trabalho, íamos beber uma cerveja e falar das dificuldades do dia seguinte. E é exactamente isso que eles costumam fazem na obra. Eles disseram isso: ‘Ó Soares, nós acabamos o trabalho bebemos uns copos e falamos do trabalho do dia seguinte, das dificuldades, como ultrapassar, para no dia seguinte o trabalho fluir’. Era o que fazíamos no museu. No regresso ao trabalho, no dia seguinte, os mestres observavam a peça e, de uma forma intuitiva, sabiam já como é que haviam de aperfeiçoá-la. Para mim é óptimo, estou a falar com pessoas que se querem transcender a si próprias, acho incrível”, prossegue.

O interesse de João Ó pelo bambu como material de construção despertou há já alguns anos. Como faltam ainda os livros e um conhecimento sedimentado sobre a técnica de utilização de bambu em Macau, João Ó e a também arquitecta Rita Machado resolveram estudar o que se faz localmente. “Fomos conhecer os mestres e aprender com eles, que é a única forma de aprender a fazer. estive com os mestres, todos os dias, no teatro da ópera do templo de A-Má a desenhar como é que eles iam fazendo as fases da montagem. Achei que era a única maneira de compreender o sistema construtivo”, explica João Ó.

O arquitecto optou por desenhar porque a fotografia, neste caso, “não serve”. “É um emaranhado de informação, não se consegue sistematizar e absorver o conhecimento.” Foi através do encontro regular com os empreiteiros, do acompanhamento constante do seu trabalho, do desenho diário das fases construtivas até a finalização da obra do templo de A-Má e do templo de Coloane, que João Ó conheceu os mestres.

Também em 2015 a dupla de arquitectos João Ó e Rita Machado inaugurou na Universidade de Macau o pavilhão Treeplets, uma estrutura temporária de bambu constituída por três árvores colocadas aleatoriamente no espaço público e que foi seleccionado através de um concurso internacional lançado pela associação local Babel.

Em 2016, o mestre Chio Seng Wai voltou a acompanhar João Ó a Lisboa para a construção de uma canópia em bambu – uma estrutura para proteger do sol – montada no terraço da galeria Zé dos Bois (ZDB), no Bairro Alto.

A obra mais recente supervisionada por João Ó, e que contou com a consultoria de um outro mestre, Leong Siu Kuong, foi o pavilhão Elapse, desenhado e construído por alunos do terceiro ano do curso de arquitectura da Universidade de São José (USJ), à beira do Lago Sai Van.

 

A imaterialidade do bambu

O arquitecto João Palla foi um dos impulsionadores do conceito que envolve os estudantes de arquitectura da USJ na idealização de obras arquitectónicas contemporâneas com recurso a materiais locais tradicionais, como o bambu.

João Palla investiga o bambu como material de construção em Macau desde os anos de 1990 e acredita que todos os movimentos arquitectónicos ou artísticos são importantes para chamar a atenção sobre a importância do bambu como material de construção em Macau.

“Esta multiplicidade de coisas que está a acontecer é um registo de vontades que mostram que o bambu é mais do que um material para fazer andaimes. É também um material de expressão artística e arquitectónica que se quer dignificar”, afirma João Palla.

O arquitecto pretende continuar a sensibilizar a comunidade para a importância da defesa e da preservação deste material orgânico na realidade construtiva de Macau, através do projecto “Bamboo For Macau”. Esta iniciativa visa desenvolver acções para a difusão e promoção do uso do bambu enquanto “material do passado, presente e futuro”, incluindo a realização de documentários de cinema. “Este ‘Bamboo For Macau’ pretende chamar a atenção, tenta preservar as técnicas e estar atento ao que se passa relativamente à indústria da construção em bambu”, explica. “Interessa estar atento às leis, à indústria em si, que é uma indústria sensível”, sublinha.

Para o arquitecto e investigador, “o bambu é também uma espécie de património intangível. Quando está construído é património tangível, quando não está é uma espécie de património intangível, que só é feito com aquelas pessoas que o sabem fazer e que têm aquele sistema tradicional de construção. É um património que, no fundo, faz parte do ADN, do material ‘genético’ de Macau, é isso que defendo”, diz João Palla.

No seu trabalho pela preservação do bambu como material de construção, o arquitecto lembra que o bambu é um tipo de material que já no século XVI os primeiros portugueses e chineses residentes na região começaram a usar para construir casas na colina do Patane – em redor do actual Jardim Luís de Camões. “A construção em bambu em Macau é anterior à construção em betão. Há um património adquirido – que não sendo visível, por essas razões, porque normalmente são estruturas temporárias – faz parte dessa imaterialidade, que é um dos elementos que caracteriza Macau. Há uma tradição construtiva, há técnicas para resolver vários problemas, em que são necessárias estruturas de apoio, do estilo dos andaimes, que se não for em bambu, vão ser muito difíceis de resolver com sistemas metálicos”, explica João Palla.

Para o arquitecto, é na técnica do “laço” ou do “nó” que une as hastes ou os paus de bambu que está o verdadeiro saber sobre como erguer uma estrutura deste material leve, económico, flexível utilizado há milhares de anos na construção. “Estes laços são a forma mais eficiente, não sendo uma coisa completamente fixa, permite alguma flexibilidade e deixa o bambu trabalhar, há uma especificidade”, diz.

Em Macau, a indústria local de construção de andaimes não necessita de desenhos de pormenor, os construtores aprendem com a prática. No entender de João Palla, este conhecimento formulado empiricamente está bastante solidificado e não pode ser adulterado, constituindo “património de Macau”.

“Esse conhecimento que era empírico e era passado de geração em geração, também é património. Veio de lá de trás, sabe-se lá de quando, e chegou aos dias de hoje, por via dessas pessoas. Não está escrito em livros, nem em manuais. Está na cabeça das pessoas, isso é o que faz [este conhecimento] um património imaterial.”