Um ano para mais tarde recordar  

Uma reconciliação há muito aguardada, a construção de novas sinergias e o regresso do intercâmbio comercial a terreno positivo, após dois anos menos frutuosos em termos de negócios. O ano que terminou em Dezembro foi um dos mais profícuos da última década no que concerne ao fomento das relações entre a República Popular da China e os países de língua portuguesa, sobretudo no que toca aos avanços notórios verificados no capítulo da aproximação de Pequim ao universo lusófono.

 

 

 

Texto Marco Carvalho 

 

Num ano de feitos notáveis, um dos mais significativos – senão mesmo o mais preponderante – consumou-se no final de Março, com a adesão formal de São Tomé e Príncipe ao Fórum de Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Fórum Macau). Pela primeira vez, em quase uma década e meia, o organismo sentou à mesma mesa representantes da China e dos oito países onde o português é falado e, em Abril, o primeiro-ministro são-tomense, Patrice Trovoada, visitou a República Popular da China numa deslocação oficial que serviu sobretudo para alinhavar o futuro da cooperação bilateral.  

Do encontro entre o chefe do Executivo de São Tomé e Príncipe e as autoridades chinesas resultou a assinatura de acordos e memorandos de entendimento onde está inscrita a atribuição de donativos e de ajuda orçamental, mas também um perdão de dívida. Pequim comprometeu-se a doar 146 milhões de dólares norte-americanos a São Tomé até 2022. O dinheiro deve servir, maioritariamente, para alavancar a dinamização de projectos de infra-estruturas no arquipélago. 

Para o especialista em relações sino-lusófonas, o brasileiro Severino Cabral Filho, o regresso de São Tomé e Príncipe à esfera de influência de Pequim preconiza o alinhamento do pequeno arquipélago com a ordem consensual prevalecente no seio da comunidade lusófona. “Trata-se da rectificação positiva de uma política praticada por um único segmento da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa que, até recentemente se mantinha afastado da política consensual, neste particular, de todo o bloco lusófono”, ilustra o director do Instituto Brasileiro de Estudos da China e Ásia-Pacífico (IBECAP). “Temos que considerar que os benefícios deste acontecimento político-diplomático devem ser múltiplos e recíprocos, servindo, é claro, aos dois lados, com proveitos tanto para a China como para São Tomé e Príncipe.” 

Antes ainda de Gualter Vera Cruz ter assumido, a 1 de Agosto, o estatuto de primeiro delegado do país junto do Fórum Macau, São Tomé e Príncipe recebeu a promessa de apoio logístico e financeiro para o alargamento do seu Aeroporto Internacional e para a construção de um porto de águas profundas, empreitadas estimadas, respectivamente, em 244 milhões e em 979 milhões de dólares norte-americanos. 

Para já, a presença chinesa é visível em áreas como a saúde e a agricultura, com investimentos em equipamentos e formação de quadros, bem como a construção de uma série de infra-estruturas de relevo. 

Mais difícil de averiguar é o impacto do restabelecimento das relações nas trocas comerciais entre os dois países. Em 2016, o comércio entre os dois países ultrapassou a fasquia dos 58 milhões de dólares. A China exportou para São Tomé e Príncipe produtos no valor de 56,8 milhões de dólares, tendo comprado bens e mercadorias no valor de 1,5 milhões de dólares norte-americanos. 

Com o entendimento sobre rodas é de esperar que o volume de dinheiro movimentado em 2017 no âmbito das trocas comerciais tenha conhecido um crescimento significativo, a exemplo, de resto, do que sucedeu no domínio global das relações sino-lusófonas.  

 

 

2017, um ano de boa memória 

Os dados relativos ao comércio entre a China e os países de língua portuguesa em 2017 ainda não são definitivos, mas um facto é já adquirido e incontornável: ao fim de dois anos de quebra e de interacção pautada por um recuo em termos de intercâmbio comercial, os negócios entre os dois blocos económicos voltaram a terreno positivo, superando pela primeira vez, desde 2014, a barreira dos 100 mil milhões de dólares norte-americanos. 

Nos 11 primeiros meses do ano passado (os dados finais relativos ao ano transacto só devem ser conhecidos nas próximas semanas), as trocas comerciais entre Pequim e os países lusófonos cresceram 24,79 por cento em termos homólogos anuais para os 107,75 mil milhões de dólares. A China adquiriu ao bloco lusófono bens no valor de 74,75 mil milhões de dólares, um valor 32,21 por cento superior ao transaccionado nos 11 primeiros meses de 2016. No mesmo período, os chineses venderam aos oito países de língua oficial portuguesa mercadorias no valor de 32,99 mil milhões de dólares, mais 23,66% por cento do que em igual período de 2016. 

Para Paulo Duarte, investigador do Instituto do Oriente do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, são vários os factores que justificam o reforço das relações comerciais entre os dois blocos económicos, a começar pela necessária resposta ao reajustamento da economia mundial e pelo fomento, bem-sucedido, de uma classe média chinesa que começa a apresentar um poder de compra significativo. “O reforço do comércio entre a China e os países de língua portuguesa deve ser ponderado à luz de um contexto macro-económico. A economia chinesa procura recuperar face a um cenário menos positivo comparativamente ao extraordinário desempenho que a tem caracterizado nas últimas décadas”, começou por explicar o investigador, reiterando que “a este facto acresce a emergência notável de uma classe média na China que é hoje maior do que a toda a população dos Estados Unidos. Esta classe média tem a possibilidade de ter uma dieta mais vasta, come carne e peixe com maior frequência e é também mais exigente em termos de consumo”. 

À natural elevação das expectativas da população chinesa, o académico junta alterações mais tangíveis, que poderão ter um impacto profundo na forma como a China se relaciona com o mundo. “Hoje em dia, na China, já é possível ter-se um segundo filho. Tudo isto ajuda a compreender a busca incessante de petróleo e gás, alimentos e outros bens e serviços um pouco por todo o mundo. Neste domínio entram, entre outras, realidades como o turismo, já que é cada vez maior o número de chineses que viajam. É neste contexto, que tem como pano de fundo a iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, que temos de olhar para o crescimento exponencial do comércio com os países de língua portuguesa”, aponta o autor da obra A Faixa e Rota Chinesa: A Convergência entre Terra e Mar. 

Para Severino Cabral, o incremento das relações comerciais entre a China e os países lusófonos não é mais do que natural à luz da necessidade que o Governo Central apresenta de fomentar a retoma da economia global, num processo em que Pequim se prefigura, obviamente, como parte interessada. 

O responsável do IBECAP antevê ainda maiores benefícios para alguns dos países que integram o bloco lusófono, não obstante o necessário reajustamento à forma como tem evoluído a conjuntura económica mundial. “Os países de língua portuguesa, nomeadamente o Brasil e Angola, são grandes produtores de recursos naturais, no campo energético e agroalimentar e, portanto, supridores naturais do mercado chinês. São, por isso, plausíveis beneficiários do aumento exponencial das compras chinesas nos mercados internacionais.” 

Brasília e Luanda mantêm-se como os principais parceiros comerciais de Pequim. Nos 11 primeiros meses de 2017, as trocas comerciais entre a China e os dois países cifraram-se em 100,68 mil milhões de dólares, com o Brasil a comprar e a vender bens no valor de 80,03 mil milhões de dólares e as transacções entre a China e Angola a atingirem os 26,65 mil milhões entre Janeiro e Novembro. Em ambos os casos, o impulso registado registou um crescimento exponencial, com o volume de negócios a crescer acima dos 25 por cento em ambos os casos. 

 

Dois gigantes, um horizonte comum  

Entre 2009 e 2017, o Brasil acumulou um superavit de 78,599 mil milhões de dólares norte-americanos no âmbito do intercâmbio comercial com a China, de acordo com os dados divulgados no início deste ano pelo Ministério da Indústria, Comércio Exterior e Serviços (MDIC) do Executivo brasileiro. Só no ano passado, o saldo da balança comercial entre os dois gigantes económicos foi favorável ao Brasil em 20,167 mil milhões de dólares norte-americanos. 

Apesar do actual panorama das relações de índole comercial entre Pequim e Brasília favorecer os interesses brasileiros, as autoridades do maior país de língua portuguesa já mostraram interesse em impulsionar uma mudança qualitativa no que diz respeito ao perfil dos produtos exportados para a China. O cabaz de produtos que o Brasil vende é dominado por produtos de menor valor agregado – matérias-primas básicas e commodities agrícolas –, como recorda Severino Cabral. “O Brasil é o maior parceiro comercial da China na América Latina e, no Hemisfério Ocidental, só fica atrás dos Estados Unidos. A posição exponencial do Brasil explica-se pela superabundância de recursos naturais de que dispõe. Esta disponibilidade faz com quem, naturalmente, tenha na China o seu principal e maior consumidor. Os chineses, por sua vez, têm no Brasil um grande comprador de manufacturados”, assinala o director do IBECAP. 

No ano passado, mercadorias como a soja, o algodão, o tabaco, a pasta de papel e alguns recursos minerais foram responsáveis por 86,3 por cento do volume de negócios entre o Brasil e a China no que ao capítulo das exportações diz respeito. As empresas brasileiras, lembra o MDIC, exportaram bens no valor de 47,488 mil milhões de dólares norte-americanos. Três produtos apenas – a soja em grão, o minério de ferro e o petróleo – foram responsáveis por uma expressiva fatia de 80 por cento dos proveitos económicos gerados pelas exportações para a China. 

Numa entrevista concedida no final do ano passado ao jornal brasileiro Valor Econômico, o embaixador chinês em Brasília, Li Jinzhang, assegurava que Pequim está disposta a colaborar com as autoridades brasileiras no sentido de dotar de um novo perfil as relações entre as duas potências económicas, num reajustamento que pressupõe a construção de infra-estruturas no Brasil e a adopção de novos modelos de investimento, que deverão passar pelo estabelecimento conjunto de pólos industriais e de parques de ciência e tecnologia, com o intuito de dotar o tecido industrial brasileiro de capacidade inovadora e de valor acrescentado. 

No entender de Severino Cabral, as mudanças equacionadas têm por objectivo adequar o posicionamento de ambos os países face a uma conjuntura internacional em que economias emergentes têm um papel cada vez mais relevante. Para o investigador, Pequim e Brasília são dois dos principais artífices da construção de uma nova ordem económica mundial que deverá ser pautada por relações de maior reciprocidade. “A parceria estratégica entre os dois gigantes em desenvolvimento e que se situam hoje na linha de frente dos países emergentes, apoia-se na construção da plataforma BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que está a desenhar um sistema espelhado, tendo por base estruturas diferentes das que foram herdadas de Bretton Wood – o Banco Mundial e o FMI – e que são o Banco Asiático de Investimento em Infra-estruturas e o Acordo Contingente de Reserva”, recorda o director do IBECAP. “As relações sino-brasileiras devem-se aprofundar e ampliar na medida em que os dois países buscam ultrapassar a condição actual de países de renda média, devendo enfrentar juntos a difícil conjuntura económica mundial. A superação das condições que limitam o desenvolvimento em geral desafia ambos os países e condiciona o seu futuro.”  

Enquanto os novos parâmetros da parceria não ganham contornos, a preponderância das exportações brasileiras de baixo valor agregado deverá manter-se, com a soja a dominar, destacada, o panorama das relações comerciais entre o Brasil e a China. As vendas da oleaginosa cresceram em 2017 tanto em termos quantitativos, como no volume de receita gerada: o Brasil vendeu soja no valor de 20,3 mil milhões de dólares norte-americanos, o equivalente a 43 por cento do valor total dos bens exportados pelo Brasil e que tiveram como destino o Interior da China. 

No ano passado, o segundo posto na tabela de exportações que maior rentabilidade trouxe à economia brasileira pertence ao minério de ferro, com o Brasil a enviar para a China matéria-prima no valor de 10,39 mil milhões norte-americanos. O minério de ferro foi responsável por uma fatia de 22 por cento do total das receitas geradas pelo Brasil com as vendas para a China, sete por cento mais que o valor gerado com a venda de petróleo. 

Do lado chinês, as exportações voltaram a ser dominadas por máquinas industriais e aparelhos electrónicos. Os bens industrializados foram responsáveis por uma fatia de 97,3 por cento do total de mercadorias adquiridas pelos brasileiros, tendo gerado proveitos para a economia chinesa na ordem dos 26,59 mil milhões de dólares. 

 

O futuro está na Rota  

Marcado por uma vincada recuperação das trocas comerciais entre a China e a lusofonia, o ano que agora findou foi também favorável ao desígnio de afirmar a RAEM como plataforma de eleição para o diálogo sino-lusófono, mercê da criação de novos instrumentos e de novas referências na aproximação entre Pequim e o mundo que fala português. 

A instalação em Macau da sede do Fundo de Cooperação para o Desenvolvimento entre a China e os Países de Língua Portuguesa (Fundo da Cooperação para o Desenvolvimento), em Junho último, reavivou o interesse dos agentes económicos privados no estatuto de plataforma de Macau, como ficou, de resto, bem patente no encontro de Empresários para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa, uma iniciativa que juntou, em Cabo Verde, meio milhar de participantes, menos de duas semanas depois da instituição financeira se mudar de armas e bagagens para Macau. 

Em meados do ano passado, aquando da transferência do Fundo da Cooperação para o Desenvolvimento, o organismo encontrava-se a analisar mais de duas dezenas de projectos, entre os quais pontificavam iniciativas em Portugal, em Cabo Verde e em Timor-Leste. 

O arquipélago africano, que já tem projectada a futura Zona Económica Especial de São Vicente, a primeira estrutura da índole criada por Pequim no mundo lusófono, recebeu em Maio a visita do Ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yim. Na altura, o chefe de Estado cabo-verdiano, Jorge Carlos Fonseca, reiterou o interesse de Cabo Verde em atrair projectos ligados à iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”. 

A meio caminho entre três continentes, o arquipélago deve afirmar-se, a médio e longo prazo, como um importante entreposto no âmbito da estratégia de afirmação global da economia chinesa, antevê Paulo Duarte. “As tendências de futuro são extremamente positivas. Veja-se o caso, por exemplo, da prospecção e exploração de gás em Moçambique ou do posicionamento geoestratégico de Cabo Verde. Cabo Verde é um exemplo muito interessante num futuro a médio e longo prazo: na convergência das plataformas africana, latino-americana e europeia”, assinala o académico. 

Cabo Verde não é, ainda assim, o único lugar do Atlântico que ambiciona pontificar no mapa de “Uma Faixa, Uma Rota”. Com o investimento chinês em Portugal a superar a marca dos 11 mil milhões de dólares – e depois de garantido o estabelecimento de ligações aéreas directas entre Lisboa e a China –, as autoridades portuguesas ambicionam agora atrair situações ligadas à iniciativa “Uma Faixa, Uma Rota”, num plano centrado no Porto de Sines. “Sines pode e deve proporcionar uma plataforma logística multimodal, ou seja, uma plataforma para onde convergirão rodovias e ferrovias”, defende Paulo Duarte. A ideia é prolongar a linha férrea que actualmente é a mais comprida do mundo e que liga Yiwu a Madrid, fazendo com que no futuro termine em Sines em vez de terminar na capital espanhola. A partir daí, os contentores de mercadorias provenientes da China podem seguir viagem por navio até às Américas. Ou, o inverso. A Sines pode igualmente chegar por navio mercadorias que depois serão expedidas por comboio utilizando a dita linha ferroviária”, ilustra o especialista. 

O investigador defende ainda que, com um pouco mais de ambição, o projecto delineado pelo governo português para o Porto de Sines pode ser mais abrangente. “O Aeroporto de Beja pode reforçar as redes marítimas e ferroviárias, permitindo o transporte aéreo para mercadorias perecíveis ou sensíveis à humidade, que não podem esperar, por conseguinte, muito tempo nos portos, nem aguentar o longo caminho marítimo. Sines é, por todas estas razões, não só importante ao nível logístico, como também geopolítico, ao colocar Portugal na vanguarda das iniciativas chinesas.” 

A missão de transformar Sines no mais ocidental dos entrepostos da “Nova Rota Marítima da Seda” trouxe à China, já na recta final de 2017, a ministra portuguesa do Mar, Ana Paula Vitorino. A governante portuguesa esteve em Pequim com o propósito de convencer as autoridades chinesas das vantagens do projecto. 

 

 

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China marca pontos em Angola 

O ano passado foi também aquele em que a China reforçou o estatuto de principal parceiro comercial de Angola, ao superar Portugal como o país que mais vende para Angola. No sentido inverso, mais de metade do petróleo produzido por Angola no segundo semestre de 2017 foi adquirido pelos chineses, de acordo com os dados relativos às contas do comércio externo angolano para o período compreendido entre Junho e Setembro do ano passado. Durante esse período, Portugal viu cair a sua quota, no que às importações angolanas diz respeito, dos 17,3 para os 16,1 por cento, sendo superado pela China. A segunda maior economia mundial vendeu bens e mercadorias no valor de 552,4 milhões de dólares no terceiro trimestre de 2017, um montante superior em 11,2 por cento ao registado no segundo trimestre do ano imediatamente anterior. 

Com o reforço do estatuto de principal parceiro comercial de Angola, a China passou a deter, entre Julho e Setembro, uma fatia de 17,7 por cento do total das aquisições que Angola conduziu, numa dinâmica que registou um aumento de 46 por cento face aos dados do período homólogo de 2016. 

No capítulo da aquisição de produtos angolanos, a China continua a liderar destacada. Em Junho e Setembro do ano passado, o país asiático adquiriu 52,9 por cento do total das mercadorias e commodities exportadas por Angola, injectando na economia angola 4,5 mil milhões de dólares norte-americanos. 

O montante – suportado essencialmente pela venda de petróleo – esconde um aumento de 29,7 por cento face às aquisições que a China fez a Angola no período homólogo de 2016.