Jao Tsung-I morreu em Fevereiro aos 101 anos

Descrito como “um dos maiores intelectuais da actualidade da China”, foi também “um homem do mundo”, que aprendeu línguas e se interessou pela cultura do outro para melhor compreender a sua. Reconhecido internacionalmente como um dos maiores sinólogos, o professor Jao Tsung-I deixa um vasto legado cultural, desde a história à literatura até às artes.

 

Texto Diana do Mar

 

Nascido em 1917 na província de Guangdong no seio de uma família abastada nunca frequentou a universidade, mas o talento que mostrou ter em tenra idade, aliada à sede de conhecimento, abriu caminho para se tornar num mestre. Figura invulgar, Jao Tsung-I era considerado uma sumidade literária, artística e académica na China e um dos maiores sinólogos dentro e fora de portas.

“Jao Tsung-I era muito especial. Ele era um aprendiz muito activo. Aprendeu muito sozinho e com amigos, incluindo pessoas que conheceu lá fora. Para si eram todos professores ou mestres, porque apesar de lhe dizerem que era um génio, ele era muito humilde”, diz Paul Pang, director do Gabinete de Assuntos dos Estudantes da Universidade de Macau (UM). “Ele começou a estudar história, literatura, sobretudo linguística e ficou famoso desde jovem pelas obras e artigos que publicou. Era interdisciplinar e na comunidade académica chinesa poucos eram aqueles que sabiam tanto como ele”, observa o historiador Wu Zhiliang, para quem Jao Tsung-I “era um dos maiores intelectuais da actualidade da China”.

Jao Tsung-I não se limitou, porém, à China e galgou fronteiras, promovendo o intercâmbio cultural entre o Oriente e o Ocidente. “Ele viajou muito, sobretudo a partir dos anos 1960 e falava inglês, francês e japonês. Ele tinha amigos de todas as partes do mundo: de França, Inglaterra, Japão, Estados Unidos, também da Índia, Austrália, Tailândia, Indonésia ou Coreia do Sul”, sublinha Paul Pang, observando que “é fácil compreender porque Jao Tsung-I era tão bem-sucedido e um literato brilhante”. “A sua grande exposição ao mundo exterior era muito grande e ampla, porque ele sempre quis aprender com os melhores, algo que era muito raro entre os académicos chineses”, complementa. “Ele era um homem do mundo”, realça o também presidente da Associação de Escritores de Macau, citando as palavras de uma das duas filhas de Jao Tsung-I plasmadas em livro.

Excertos da correspondência trocada entre Jao Tsung-I e Paul Demiéville (1894-1979), um francês de origem suíça considerado um dos maiores sinólogos do Ocidente, de quem ficou amigo após ter começado a participar em conferências internacionais, atestam essa postura. Apesar da diferença de idades que os separava (mais de 20 anos) e se tratarem quase como irmãos, a deferência de uma admiração recíproca estava sempre presente. “Pergunta-me por que razão estou interessado nos seus trabalhos. A resposta é que é um grande sinólogo e eu penso que uma colecção das suas obras deveria estar em Paris. (…) Todos os seus artigos são originais e um importante contributo para o conhecimento da China antiga e deviam estar disponíveis para todos os sinólogos em todo o mundo”, escreveu Paul Demiéville, nos anos 1960, numa das muitas cartas que trocaram, manuscritas em francês, em inglês e em chinês. Além de Paul Demiéville, Jao Tsung-I também travou amizade com outras distintas figuras da sinologia do século XX como Ji Xianlin (China), Yoshikawa Kojiro (Japão) ou Joseph Needham (Inglaterra), mas apesar do prestígio que foi alcançando no mundo erudito nunca deixou de lado o estudo.

 

Vida académica e poesia

Jao Tsung-I começou a sua carreira como professor na Universidade do Sul da China, em Guangdong, em 1946, no Departamento de Literatura e História Chinesas, que também dirigiu. Entre 1952 e 1968 leccionou na Universidade de Hong Kong, partindo depois para Singapura onde esteve cinco anos, como docente e director do Departamento de Estudos Chineses, antes de regressar a Hong Kong, onde viveu grande parte da vida. Por Macau passa nos anos 1980 quando foi para a Universidade da Ásia Oriental (antecessora da UM), primeiro como professor e, mais tarde, como chefe do Departamento de Literatura e História Chinesas. Pelo meio, conduziu trabalhos de investigação e ensinou como professor visitante em latitudes tão distintas como França, Japão, Índia ou Estados Unidos.

Com uma prolífica carreira, que incluiu notáveis contributos para a arqueologia, história, literatura ou filologia, é estimado autor de mais de 900 artigos académicos. Segundo um elogio académico de 2004, além dos “Cinco Clássicos”, Jao Tsung-I mergulhou em Zhuang Zi e Lao Zi, “reconstruindo a ‘Bíblia’ chinesa” e deu “contributos consideráveis” no domínio da filosofia. Escreveu também sobre Confucionismo, Budismo e Taoismo e completou o trabalho “Anotações para Lao Zi”. A sua grande obra, “Árvore de Han Zi”, “surpreendeu os círculos académicos”, ao expor “os factos da disseminação da cultura chinesa corrigindo os pontos de vista errados”, de acordo com o mesmo documento, datado de 2004, da autoria do professor Tang Kwok-kwong, da Universidade de Macau.

Em paralelo, “é um dos nomes mais conhecidos da literatura chinesa herdeira das grandes tradições, com igual excelência na poesia pré-Tang de quatro e oito versos”. Também “especialista em ci (uma forma poética), mestre de todos os géneros de prosa clássica, incluindo saoti (versos ao estilo sao), fu (prosa poética), pianwen (prosa paralela) e sanwen (prosa livre)”, lê-se numa nota de apresentação da Academia Jao Tsung-I. Em síntese, ocupava “um lugar ímpar no panorama literário chinês”.

“Ele foi pioneiro em muitos domínios”, sublinha Paul Pang, observando que, à parte do inglês, francês ou japonês, o professor (como era chamado) também sabia sânscrito e outras línguas antigas que utilizou como meio de investigação para decifrar inscrições em ossos, bronze ou pedra. “Ele foi o primeiro a realizar estudos comparativos das inscrições de oráculos em ossos”, a mais antiga forma de escrita chinesa, sendo, aliás, autor de uma obra sobre as da Dinastia Yin, publicada em 1959, distinguida com o prémio Stanislas Julien (França) e “também foi o primeiro a traduzir o mito de criação babilónico ‘Enûma Eliš’ para chinês”. Neste âmbito, são também célebres, por exemplo, como sinaliza Wu Zhiliang, os seus estudos sobre as Grutas de Dunhuang, o maior conjunto de arte budista do mundo, classificado como Património Mundial da Humanidade pela UNESCO.

As referências de Jao Tsung-I chegaram da China, naturalmente, mas também de outros pontos, como da Índia. “Ele fala de um indiano que teve muita influência nele. Chamava-se Kant e era advogado de profissão, mas visto como um académico de topo na Índia. Era conhecido como ‘maha maha’ que significa ‘grande mestre’ em hindi, que escreveu dois livros (um de poesia e outro sobre a história dos códigos legais)”, diz Paul Pang, recorrendo a uma obra de Jao Tsung-I, ressalvando não ter a certeza se os dois chegaram a interagir.

Pintura e música

Além das letras, Jao Tsung-I revelou também talentos como artista, cultivando o seu próprio estilo de caligrafia e pintura, apesar de ter ido beber a outros, como um pintor de Nanjing com quem estudou e que considerava um mestre. “Ele estudou diferentes pinturas e feitas em diferentes períodos, digeriu-os e desenvolveu o seu próprio estilo”, sublinha Paul Pang, indicando que Jao Tsung-I também “percebeu a beleza da pintura ocidental” quando esteve em Paris. De olhar a “extraordinária” obra de Pablo Picasso, por exemplo, compreendeu que “a jornada pela pintura não tem fim e que cada um tem de encontrar a sua própria forma de inovar, por ser um mito a ideia de que os mestres produzem sempre peças maravilhosas”. Também era claro para Jao Tsung-I que “ninguém pode produzir do nada”, ou seja, sem se expor: “Esta era abordagem dele, por isso, ele combina e mistura diferentes cores, estilos e padrões, sem seguir uma escola”. O interesse de Jao Tsung-I estendeu-se ainda à música, em particular à lírica, tendo aprendido a tocar com um músico famoso um instrumento antigo semelhante à cítara chinesa, acrescenta Paul Pang.

“Ele era amador e mestre em tudo”, realça Wu Zhiliang. Os feitos de Jao Tsung-I no domínio académico e cultural valeram-lhe inúmeros prémios e distinções tanto na China como no estrangeiro, nomeadamente em França, Rússia, Austrália ou Japão. Aliás, “em homenagem ao mérito e dedicação à causa da cultura chinesa e dos valores humanistas”, o Observatório Astronómico da Montanha Púrpura, em Nanjing, atribuiu ao planeta secundário 10017, o nome de “Jaotsungi” em 2011.

Relação com Macau

A relação de Jao Tsung-I com Macau dá-se em 1981 quando foi convidado para professor catedrático da Universidade da Ásia Oriental, onde, três anos mais tarde, deixa uma marca indelével ao criar o Departamento de História e Literatura Chinesa (nível de mestrado e doutoramento). “Naquela altura, não existia uma instituição para divulgar a cultura chinesa em Macau [então sob administração portuguesa] e ele foi um dos pioneiros. Devemos muito a ele sobretudo pela criação desse Departamento”, sublinha Wu Zhiliang, que conheceu Jao Tsung-I num congresso internacional em Hong Kong. Em 2004, a UM conferiu-lhe o grau de Doutor em Humanidades Honoris Causa e o título de professor honorário em reconhecimento pelos seus originais contributos académicos. Entre outros domínios, também se debruçou sobre os estudos arqueológicos, dando conselhos e orientando as escavações do sítio arqueológico da baía de Hac-Sá, Coloane, em 2006.

Em Macau expôs pela primeira vez em Novembro de 1999, a convite da Fundação Macau. “Antes da transferência convidei-o para fazer uma exposição no então recém-criado Centro UNESCO”, recorda Wu Zhiliang. Essa mostra, de pintura e caligrafia, intitulada “Terra Pura”, antecedeu uma série de outras. Em 2001, o Museu de Arte (MAM) acolheu a “Exposição de Caligrafia e Pintura de Rao Zongyi”, onde, a par de 103 obras de arte de autoria do professor Jao Tsung-I, foram apresentados outros trabalhos de artistas chineses, bem como objectos ornamentais e estudos; e, em 2006, “Lótus Imortal”, por ocasião do seu 90.º aniversário. Já em 2011 teve lugar a mostra “Aspirações Convergentes”, reunindo 30 pinturas e caligrafias doadas ao MAM por Jao Tsung-I que, em 2013, oferece 159 peças de arte e trabalhos académicos a Macau.

Dois anos mais tarde, em 2015, por ocasião do 10.º aniversário da inscrição do Centro Histórico de Macau na Lista do Património Mundial, o Governo funda a Academia Jao Tsung-I com o objectivo de dar a conhecer ao público os feitos académicos e artísticos do reputado professor e “promover a cultura e artes tradicionais chinesas”.

A notícia da morte do “grande mestre”, no passado dia 6 de Fevereiro, foi recebida com “grande consternação e surpresa”, como referiu o Chefe do Executivo, numa mensagem de condolências. “Jao Tsung-I foi um famoso historiador, paleógrafo, literato, calígrafo e educador, cuja fama cruzou mares. Durante toda a sua vida, divulgou a cultura chinesa, contribuindo de forma importante para o ensino superior e a investigação académica em Macau”, escreveu Chui Sai On.

“Ele dedicou toda a vida a promover a sinologia, com conquistas notáveis na arte e na literatura. A determinação do professor Jao na sua busca académica é um excelente exemplo para todos nós”, sublinhou, por seu turno, a Universidade de Macau, destacando ainda o seu “inovador contributo” para a UM no estabelecimento e desenvolvimento da disciplina de Macaulogia.

“Ele amava muito o seu país e tinha uma grande paixão pelos estudos chineses. Ele foi muito activo na aprendizagem e rigoroso na pesquisa, estudou persistentemente ao longo de muitos anos, mantendo um forte espírito de busca pelo conhecimento e visão global”, sublinha Paul Pang, para quem Jao Tsung-I, um homem à frente do seu tempo, deve ser um modelo para as futuras gerações: “Ele foi um homem do mundo não apenas no âmbito dos estudos académicos. O intercâmbio com outras culturas permite-nos conhecer e compreender o outro, o que também torna o mundo num lugar melhor” e esse é um dos ensinamentos que Jao Tsung-I deixa.