Macau, terra de todas as cores e sotaques

A saudade faz-se de memórias e de sabores. Macau é hoje a casa de muitos residentes vindos do mapa da lusofonia. Um viver por cá sem esquecer as origens e buscando fazer do longe um pouco mais perto. A MACAU foi conhecer como é que as comunidades lusófonas residentes na cidade mantêm vivas as suas tradições.

 

Texto Lucas Calixto

 

Ano após ano, Macau vem sendo o destino de muitos estrangeiros e, em boa parte, pessoas do universo dos países de língua portuguesa – sobretudo de Portugal, mas nenhum país de expressão portuguesa fica de fora. Apesar de fazerem de tudo para manter as suas tradições vivas, muitos vão-se adaptando à cultura própria de Macau. Ainda assim, saudades de casa, dos amigos e da família, ou até mesmo dos sabores, do clima e do modo de vida são difíceis de esquecer, mas vão sendo apaziguadas graças a uma comunidade lusófona cada vez melhor estabelecida em Macau.

Ricardo Brito é cabo-verdiano, tem 25 anos e foi agraciado com uma bolsa de estudos para uma pós-graduação em ciências da computação na Universidade de Macau. Chegou à cidade em 2011 e relembra que os primeiros tempos não foram fáceis, já que esta foi a sua primeira experiência fora do arquipélago africano. “Quando tive a proposta desta bolsa de estudos, não pensei duas vezes. Queria muito ter contacto com uma cultura distinta, que não fosse nem a portuguesa nem a cabo-verdiana”, conta. “Mas o início da vida em Macau não foi muito fácil.” O pior foi adaptar-se à comida chinesa e deixar de lado os sabores da terra natal. Com o tempo, no entanto, Ricardo foi adquirindo alguns dotes culinários e hoje já sabe preparar a sua própria cachupa, o prato-rei de Cabo Verde. Quando não cozinha em casa, junta-se a amigos cabo-verdianos para convívios onde a comida do seu país têm local de destaque.

Os cheiros e os sabores da Guiné-Bissau também foram o principal obstáculo para a adaptação de Filomena Barros. Quando chegou a Macau, já lá vão 22 anos, não havia tantos restaurantes de comida portuguesa como hoje para ‘disfarçar’ as saudades da sua Guiné. A solução foi, com o passar os anos, deixar-se seduzir pela gastronomia chinesa, da qual hoje não consegue passar sem. Mas quando as saudades do seu país apertam, Filomena lança mãos à cozinha. “Faço um prato da Guiné, a pensar na Guiné, e assim a saudade diminui.”

Carlos Figueiredo não consegue passar sem os sabores da sua Angola, por isso encarregou a sua empregada doméstica de aprender pratos típicos e prepará-los com frequência. “Sabe bem sentir os sabores do meu país todos os dias.” Já para Elias Colaço, natural de Damão, na Índia, a adaptação aos sabores de Macau foi “muito fácil”. “O mais complicado mesmo foi comunicar com as pessoas sem dominar a língua chinesa.” Com o passar dos anos, foi aprendendo cantonês e hoje já consegue comunicar com o ‘outro lado’, nem que tenha de recorrer à ajuda de novas tecnologias, como tradutores no telemóvel.

José Lima, de 57 anos, dos quais 29 passados em Macau, deixou Moçambique para trabalhar como engenheiro em Macau. Quando chegou, encontrou uma grande comunidade portuguesa, o que lhe fez sentir mais perto de casa. “Passados todos estes anos, sinto-me um pouco macaense, mas não me esqueço das minhas origens. A minha terra é mesmo Moçambique.”

A portuguesa Diana Soeiro cresceu em Macau e vive entre os mundos chinês e português. Do fogão da casa da coordenadora da Casa de Portugal em Macau só saem pratos portugueses, mas a família toda adora experimentar restaurantes chineses. “Comemos muito yum cha. Costumamos frequentar restaurantes chineses e temos o hábito de ir à Rua da Felicidade degustar as sobremesas chinesas.”

Já o delegado de Timor-Leste do Fórum Macau, Danilo Lemos Henriques, reconhece que o processo de adaptação foi lento, porém estável, e contou com a ajuda de uma colega de trabalho. “Tive a sorte de ter uma colega de trabalho que me ajudou imensamente a me orientar e conhecer a cidade”. Ainda assim, sublinha a dificuldade em adaptar-se a uma cidade pequena, já que chegou à RAEM depois de uma temporada em Pequim. “Talvez a maior adaptação foi a mudança de estar numa grande cidade, já que vivia em Pequim, de modo que o movimento de um contexto amplo para uma cidade menor e mais compacta levou a algum ajuste”.

 

Semelhanças ajudam

Ao tentar reviver um pouco a cultura dos seus países de origem, os residentes lusófonos de Macau acabam por sempre encontrar parecenças que lhes ajudam a ultrapassar, em certa medida, a distância física da sua terra natal. Para o timorense Danilo, há semelhanças entre Macau e Timor-Leste nos aspectos climáticos, bem como na gastronomia, já que a comida tradicional de Timor-Leste também teve muitas influências da gastronomia chinesa, indiana e portuguesa. A religião é outro ponto em comum. “A procissão de 13 de Maio dedicada a Nossa Senhora de Fátima é um exemplo muito concreto disso. Temos a mesma celebração.”

Ricardo Brito confessa sentir muita falta do clima, das praias e do mar do seu Cabo Verde. O mesmo diz Siegy Nascimento, brasileira de 47 anos que vive na região há mais de 25 anos. “Sinto falta de tudo. Do povo, da comida, da brincadeira, do samba, das praias. Enfim, de tudo.” Mas quando tem mesmo muitas saudades de ver o mar, corre para a praia de Hac-Sá.

Mas há espaços na memória difíceis de substituir, como a casa do avô de Elias Colaço em Damão. “Gosto muito de ir à casa do meu avô, sentar-me no balcão e sentir a brisa fresca. Foi esse o local onde dei os meus primeiros toques no piano. Essa é uma memória que está presa àquele sítio específico.”

Carlos Figueiredo sente falta de “um ambiente mais comunicativo, onde as pessoas interagem umas com as outras”. O professor angolano compara as culturas africana e asiática, e diz que tem “um imaginário todo africano”, sublinhando a falta que sente “das tradições, da cultura e da alimentação”.

A falta do convívio regular entre pessoas de um mesmo país é algo que ainda causa estranheza à guineense Filomena Barros, que veio para Macau acompanhar o marido que ia trabalhar para o aeroporto, na altura ainda a ser construído. “Sinto falta das pessoas, do país em si, do ambiente, e da família que deixei lá. Acaba por ser mais essa parte do calor humano, porque em Macau acabamos por não ter um convívio frequente com as pessoas do nosso país.”

Ainda assim, e passadas mais de duas décadas em Macau, Filomena sorri sempre ao falar da cidade que a tem acolhido durante todo este tempo. “Macau é, sem dúvida, a minha casa. Sinto primeiro Macau, apesar da Guiné ser a minha terra. Sinto-me mais à-vontade aqui.” Filomena receia, nenhum futuro próximo, sentir as mesmas saudades de Macau, já que com o marido prestes a reformar-se, a ideia é regressar à Guiné-Bissau. “Acho que vai ser uma readaptação muito difícil depois de ter estado tanto tempo fora. No dia em que sair mesmo de Macau, vou passar a sentir as mesmas saudades que tinha de quando cheguei da Guiné.”

 

Quando bate a saudade…

Para matar a saudade, há várias formas de, aqui tão longe, poder sentir o país de origem mais perto. Ricardo gosta de se reunir com conterrâneos para um encontro musical. Cada um leva o seu instrumento e a vontade de relembrar músicas de Cabo Verde que fizeram sucesso no país ou marcaram a infância dos cabo-verdianos. “Costumo encontrar-me com dois ou três amigos e passar algumas horas a cantar músicas de Cabo Verde e, assim, matar um pouco a saudade do meu país.”

Já a brasileira Siegy Nascimento diz que quando sente falta do seu país tropical também se reúne com os amigos para ouvir uma boa música, lembrando o passado de quando era moradora de um bairro humilde, no Rio de Janeiro. “Procuro estar com os amigos mais chegados, comer boa comida, beber uma boa cerveja, ouvindo sempre boa música.”

Ao lembrar o seu país, o moçambicano José Lima não hesita em mencionar a natureza, sendo esse o motivo primordial de saudade. “Sinto falta da natureza de Moçambique, da natureza de África. A natureza onde nasci e cresci.”

Já Danilo costuma reunir-se com a comunidade timorense em Macau para reviver um pouco a cultura. “Na maioria das vezes cozinhamos e comemos juntos, às vezes o alimento da nossa terra natal, o batar daan – um feijão tradicional e um grão de milho –, e falamos sobre a situação política, e ainda ouvimos e cantamos música de Timor-Leste.”

O angolano Carlos Figueiredo, em Macau há mais de 15 anos, conta que o trabalho o ajuda quando sente falta do seu país. “Tenho as minhas pesquisas centradas numa área específica de Angola, o município do Libolo, portanto, envolvo-me muito nessa pesquisa, pois é um jeito de matar as saudades de África.” Libolo é um município no qual o professor nasceu e viveu até se mudar para Portugal, com 18 anos.

Essa falta do país de origem não é partilhada pela portuguesa Diana Soeiro, que chegou a Macau em 1987. Trinta anos volvidos em Macau, nunca sentiu que Macau não fosse a sua casa. O facto de conviver diariamente com portugueses e estar envolvida directamente em assuntos culturais da sua comunidade ajudam-na a definir a sua identidade. “Sou de Macau, mas sou uma portuguesa de Macau. Este detalhe faz toda a diferença.” orgulho não lhe falta quando fala de toda a herança e presença portuguesa que vai encontrando pela cidade ou mesmo pela Ásia.

 

À procura de sabores

Sendo a culinária um dos aspectos culturais importantes, a dificuldade para encontrar os ingredientes necessários para preparar as receitas originais dos países lusófonos é bastante apontada. Para fazer os pratos típicos brasileiros, Siegy tem de andar de mercado em mercado à procura dos produtos que possam ser utilizados. “Cozinho muito feijão, jiló, chuchu, quiabo, frango com arroz, batata e carne. Então, vou num mercado que vende o feijão, vou noutro que vende o jiló, o chuchu, o quiabo, outro que vende a farinha, enfim. Temos que procurar em todos os lados.”

Filomena Barros diz que para cozinhar pratos típicos costuma trazer da Guiné-Bissau um carregamento dos principais ingredientes quando lá vai de férias. No entanto, alguns pratos do seu país, como por exemplo, o caldo de mancarra (à base de frango e manteiga de amendoim), também pode ser feito com ingredientes encontrados localmente.

Quem também costuma trazer a mala cheia quando regressa a Macau é a professora santomense Inocência Mata. Ao tentar cozinhar comidas típicas do seu país, a professora faz a combinação de ingredientes locais com aqueles que traz directamente de São Tomé e Príncipe ou de Portugal. “Faço calulu e feijão de óleo de palma, sempre a combinar os ingredientes que trago na mala com produtos que encontro em Macau.”

Já Diana Soeiro conta que ao longo dos anos Macau teve uma mudança significativa quando se trata de serviços portugueses, no caso, restaurantes, lojas, ingredientes culinários e produtos em geral. Antigamente os portugueses costumavam trazer muitas coisas de Portugal, algo que já não é necessário. “Hoje já não vale a pena trazer coisas de Portugal, o mundo está cada vez está mais global, estamos mais próximos, e não existe essa necessidade de trazer coisas de lá. O que é bom de Portugal não se pode trazer, que é a família, a praia, o céu azul. É isso que as pessoas aqui sentem falta, não da comida.”

Também para Elias Colaço os ingredientes presentes na comida de Damão não são tão difíceis de encontrar. “Nas lojas indianas encontra-se bastante coisa.” Além disso, existem lojas que vendem ingredientes vietnamitas, onde também se encontram especiarias, como açafrão e gengibre. Ainda assim, traz sempre das viagens a casa as especiarias de Goa, que “nunca faltam em casa”.

 

Tradições e festividades

As festividades e datas comemorativas também são culturalmente importantes, pois fazem parte da história de cada país. Como por exemplo, o Natal, o dia da independência, a passagem de ano ou celebrações religiosas.

As datas, ainda assim, são assinaladas em Macau na maioria das vezes pelas associações de cada país, e acabam por juntar representantes de todas as comunidades lusófonas de Macau. Siegy sente especialmente falta do Carnaval do Rio de Janeiro, um evento que é lembrado e organizado anualmente pela Casa do Brasil.

O Dia da Independência de Cabo Verde também é assinalado em Macau. A reunião costuma acontecer à mesa, para um jantar, e “é sempre uma grande festa”, revela Ricardo Brito. Também, o Dia da Independência da Guiné-Bissau é celebrado com um jantar, oferecido pela associação local. Além disso, a colectividade costuma fazer piqueniques para a comemoração de outras actividades.

O Natal, por exemplo, é transversal, uma tradição celebrada por todos. Muitas vezes, pessoas de diferentes países juntam-se no dia 25 de Dezembro. Siegy, por exemplo, costuma cozinhar e convidar os amigos para ir a sua casa, sejam brasileiros, portugueses ou da África lusófona, para assim celebrarem juntos a data, como em família.

Já a portuguesa Diana Soeiro, mãe de três crianças, diz que apesar de viver em Macau há muito tempo não esconde a vontade de que os filhos tenham contacto com a cultura portuguesa. Por isso, costuma celebrar todas as datas especiais para que eles possam aprender a cultura. “Por exemplo, celebramos o Santo António, a Páscoa e o Natal em casa. Decoramos a casa, envolvemos as crianças na organização dessas festas e preparamos as comidas típicas de cada festividade”, conta.

 

Festival da Lusofonia: momento alto do ano

O Festival da Lusofonia, que em 2017 completou 20 anos de existência, e é geralmente organizado em Outubro, é já há muito a principal celebração para todas as comunidades lusófonas de Macau, porque além de incentivar o convívio entre todos aqueles que falam português, também é uma verdadeira mostra da cultura de cada um dos países e regiões.

O Festival é tão acarinhado que há até quem defenda a sua realização mais vezes ao longo do ano.  “Na altura em que fui presidente da associação, propus que tivéssemos duas ou três vezes o festival durante o ano, pois é um evento aceite por todos, promovendo positivamente a convivência muito saudável tanto para os turistas como para as pessoas que aqui estão”, diz a guineense Filomena Barros.

O estudante cabo-verdiano Ricardo Brito tem a mesma opinião e aponta o Festival da Lusofonia como o principal evento em Macau, tendo ainda em mente lembranças da sua primeira participação na festa. “Em 2011 trouxeram um grupo brasileiro que tocou todas aquelas músicas que passei a minha vida inteira a ouvir e isso foi muito marcante para mim.”

Na opinião de Danilo Lemos Henriques, “o Festival da Lusofonia oferece uma oportunidade maravilhosa para o público ser capaz de apreciar e aprender mais sobre as culturas dos países do mundo lusófono, que talvez não conheçam. Penso que a variedade de formatos de experiência da cultura é louvável e única”.

No caso da comunidade de Goa, Damão e Diu, Elias Colaço aponta que o evento anual se tornou um projecto essencial para a exibição da cultura própria destas regiões indianas. “A Lusofonia é uma forma de mantermos o espírito e mostrar uma cultura diferente. Uma comunidade que tem uma raiz indiana, mas que tem uma cultura própria a nível de gastronomia, música e costumes.”

Inocência Mata alinha neste pensamento: “É o único momento do ano em que existe um diálogo intercultural”. A professora do Departamento de Portugues da Universidade de Macau aprecia a festa e o convívio. “Gosto de encontrar as pessoas, passar de barraca em barraca, recordar produtos”, aponta, desejando que pudesse acontecer, pelo menos, duas vezes por ano.

Vida associativa

O associativismo possui um papel muito importante para as comunidades lusófonas residentes em Macau, já que as associações se focam sobretudo na promoção cultural e no apoio aos recém-chegados. Foram essas as razões, por exemplo, que levaram Filomena Barros a criar uma associação ligada à Guiné-Bissau. Além da promoção cultural, Filomena também queria prestar apoio a estudantes guineenses que chegavam com bolsas de estudo a Macau mas que não tinham assistência médica. Actualmente, a guineense não possui um cargo na associação, mas continua envolvida, estando sempre presente em todos os eventos e reuniões, e acredita que, hoje, a associação tem como objectivo afirmar-se mais como comunidade na região.

A associação de São Tomé e Príncipe também é de grande importância para os estudantes e para a promoção de encontros da comunidade, na opinião de Inocência Mata. Mas a professora lamenta que os encontros muitas vezes não tenham uma participação massiva. “Os membros da associação vão, mas os familiares não aparecem. Não aparece a comunidade inteira.” Contudo, adora a convivência com os conterrâneos e gosta de ter esses momentos onde se pode falar crioulo.

A vida associativa também tem assumido outros papéis mais recentemente Exemplo disso é a Câmara do Comércio de Angola em Macau, que foi criada por um grupo de angolanos residentes na região –Carlos Figueiredo, ao lado do advogado Carlos Lobo, do professor Pedro Paulo e do funcionário público Rui Brás. A associação, sem fins lucrativos, pretende expandir as relações comerciais entre os países e desenvolver actividades vocacionadas para a promoção e divulgação de quaisquer vertentes relacionadas com a identidade cultural de Angola.

O professor acredita ser um projecto de grande impacto, pois a economia e a cultura caminham de mãos dadas. “Os governos têm bastante interesse no reforço dos laços económicos, e a cultura vai sempre de braços dados com a economia. O governo de Angola tem todo interesse em divulgar também a cultura angolana aqui em Macau.”

Além de ser a principal promotora da cultura portuguesa na RAEM, a Casa de Portugal em Macau também faz trabalhos voltados para a comunidade em geral, como cursos nas mais variadas áreas, desde o desporto, à arte, saúde, bem-estar e educação. A associação tem ainda criado iniciativas para as crianças de origem portuguesa que nasceram em Macau de forma a criarem uma ligação mais forte com o país da família. Para incentivar o interesse pela língua portuguesa, por exemplo, a Casa de Portugal oferece discos de poemas infantis de autores portugueses musicados pela banda da Casa de Portugal, poemas traduzidos para chinês, jogos tradicionais, espectáculos de marionetas portuguesas, além de visitas regulares às escolas locais para transmitir músicas portuguesas.

Elias Colaço, secretário da mesa da assembleia geral da Associação de Goa, Damão e Diu, expõe que a principal dificuldade da colectividade é não ter uma sede própria, o que facilitaria o desenvolvimento de projectos, promoção de eventos e a adesão de patrocinadores.