Equilíbrios de um sistema sui generis

Foram as eleições mais concorridas de sempre, com 18 listas candidatas ao sufrágio directo. Mais de 124 mil pessoas foram às urnas, no dia 25 de Setembro, para escolherem 12 deputados

 

 

Das 18 listas candidatas, foram oito as que garantiram lugares na Assembleia Legislativa (AL). À semelhança do que havia acontecido em 2001, ano em que a lista Novo Macau Democrático conseguiu o maior número de votos, em 2005 a candidatura liderada por Ng Kuok Cheong foi a escolhida por mais eleitores, que permitiram assim a continuidade de dois deputados no órgão legislativo de Macau. No sufrágio do passado dia 25 de Setembro houve ainda um outro grande vencedor: a lista de Chan Meng Kam, empresário do sector do jogo, candidato pela primeira vez às eleições legislativas da RAEM, foi a segunda mais votada, obtendo apoios suficientes do eleitorado para eleger dois deputados.

O sufrágio directo que resultou na escolha de 12 deputados é apenas uma parte do processo para a composição final da AL, constituída por 29 elementos. O sistema eleitoral da RAEM contempla ainda o sufrágio indirecto, com dez lugares reservados aos diferentes sectores da sociedade de Macau, sendo ainda destinados sete assentos para deputados nomeados pelo Chefe do Executivo. No que toca ao sufrágio indirecto, em Setembro passado, quatro listas concorreram por esta via, com um total de dez candidatos, tantos quantos os lugares disponíveis. O sistema eleitoral reserva quatro lugares para os interesses empresariais, dois para os interesses laborais, outros dois para garantir a representatividade dos interesses profissionais no órgão legislativo e igual número para os interesses assistenciais, culturais, educacionais e desportivos.

 

Herança do passado

 

O sufrágio misto em Macau tem origem na segunda metade da década de 70. A combinação entre um sufrágio inorgânico de base territorial (em que o direito de voto é exercido por todos os residentes permanentes enquanto pessoas singulares) e um sufrágio orgânico de base corporativa (em que os votantes exercem o seu direito de voto na qualidade de membros de uma pessoa colectiva representativa de interesses sociais) surgiu na sequência da Revolução portuguesa de 1974 e posterior aprovação do Estatuto Orgânico do território de Macau. “Nas primeiras eleições após o 25 de Abril, já ao abrigo da nova ordem constitucional, previu-se o sufrágio directo e o indirecto, onde assumiam preponderância as associações representativas de interesses empresariais”, recorda Leonel Alves, deputado à Assembleia Legislativa desde 1984, reeleito no sufrágio indirecto do passado dia 25 em representação dos interesses profissionais. “Há uma explicação política para a existência do sufrágio indirecto. Na altura, no período pós-revolucionário, contar com a comunidade chinesa num sufrágio directo era quase impossível. Para compor equilibradamente os interesses, adoptou-se o sufrágio indirecto, obtendo-se por essa via deputados chineses.” Durante as primeiras legislaturas, a grande maioria dos deputados eleitos pelo sufrágio indirecto representava os interesses empresariais, o que viria a alterar-se apenas  na quinta legislatura, com a alteração do Estatuto Orgânico de Macau, que contemplou a representatividade dos interesses laborais. O sistema misto manteve-se após 1984, altura em que se verificou “um ponto de viragem bastante significativo no que se refere ao sufrágio directo, pois a governação de então decidiu proporcionar uma série de incentivos fiscais para levar as pessoas a se recensearem.” Essas medidas, lembra Leonel Alves, “originaram grande número de eleitores e um efeito político muito significativo: o início do predomínio do eleitorado não português no sufrágio directo.”

Durante os anos que se seguiram, ainda durante a administração portuguesa, o sufrágio misto permaneceu, tendo sido mantido nas legislaturas que se sucederam à transferência de administração.

 

Diferentes campanhas

 

Em Macau, a campanha eleitoral no sufrágio directo assemelha-se a períodos do género noutros países e regiões: a captação do eleitorado passa pela divulgação do programa político, pelos contactos de rua e pela organização de comícios e espectáculos. Dadas as muitas listas na corrida eleitoral, as duas semanas que antecederam a ida às urnas foram verdadeiras maratonas para os candidatos que apostaram, sobretudo, na aproximação ao eleitorado nas ruas da cidade.

Já no que se refere ao sufrágio indirecto, a sensibilização das associações que pertencem a determinado colégio eleitoral não se faz em dez dias, tempo destinado à campanha eleitoral em Macau. “Tudo depende do trabalho prévio. No sufrágio directo, enquadra-se melhor um período eleitoral durante o qual as diversas candidaturas apresentam o seu programa político. No sufrágio indirecto, desde a década de 70 mantém-se uma interacção íntima com as bases eleitorais, pelo que não se vêem grandes acções de campanha,” explica Leonel Alves.

Eleitos os deputados pelos dois tipos de sufrágio e publicados os resultados das eleições legislativas em Boletim Oficial, compete ao Chefe do Executivo concluir o processo de composição da legislatura. Comparativamente às escolhas feitas em 2001, Edmund Ho introduziu nesta III Legislatura da RAEM profundas alterações ao grupo de nomeados, tendo indicado cinco novos deputados, todos eles oriundos da área académica e com trabalhos de investigação publicados e reconhecidos entre os seus pares.

 

As contas únicas de Macau

 

É um método único de conversão de votos em mandatos aquele que se emprega na RAEM. Quando as urnas fecham e chega a altura de contar os votos, não se utiliza o tradicional método de Hont. O sistema que vigora em Macau, desde as eleições legislativas de 1992, cria um verdadeiro desafio a qualquer lista que ambicione a eleição de mais do que dois deputados pelo sufrágio directo. Por outro lado, garante uma maior diversidade de forças políticas no seio do órgão legislativo da RAEM.

“Pelo método de Hont, usam-se os divisores um, dois, três, quatro e os restantes múltiplos de um. Em Macau “utilizam-se os divisores um e dois, tal como no método de Hont, mas depois emprega-se o divisor quatro, seguindo-se o oito e demais potências de dois,” explica o sociólogo Paulo Godinho. “Eleger mais do que dois deputados, em princípio, é mais difícil do que num sistema em que o método de conversão dos votos em mandatos seja o método de Hont.”

 

Maior representatividade social

 

Aplicando a teoria às eleições legislativas de Setembro passado está assim explicada a razão pela qual a lista com maior número de votos, a Novo Macau Democrático, só conseguiu eleger dois deputados, mesmo com o apoio de 23.472 eleitores, num sufrágio em que a quarta lista mais votada, a União Promotora para o Progresso, alcançou o mesmo número de assentos, com menos de metade dos votos. “Nestas eleições, o último deputado foi eleito com uma percentagem abaixo dos cinco por cento, porque muitos votos foram dispersos por outras listas, nomeadamente pelas duas que receberam mais apoios. Estiveram perto de eleger o terceiro deputado mas não conseguiram lá chegar”, constata Paulo Godinho. “Pelo método de Hont, ambas teriam eleito três deputados.”

Até às eleições de 1992, o método de conversão de votos em mandatos era o mesmo empregue em Portugal – o método de Hont. A alteração à lei, feita em 1991, surgiu na sequência do sufrágio de 1988, segundo a análise do sociólogo. “Na altura, estavam reservados seis assentos ao sufrágio directo, metade dos actuais. Foram eleitos três deputados pela lista União Eleitoral, e outros tantos pela lista deAlexandre Ho, actual presidente do Conselho de Consumidores,” recorda. “Nas eleições de 1992, pela primeira vez, seriam eleitos oito deputados pelo sufrágio directo. Mas corria-se o risco de continuarem a ser apenas duas as forças políticas representadas na Assembleia.”

A mudança à lei trouxe várias consequências, desde logo na organização de candidaturas. Dando o exemplo da União Eleitoral, Paulo Godinho refere que “juntava numa mesma lista as associações dos moradores, a Associação Geral dos Operários de Macau (AGOM) e alguns sectores tradicionais da sociedade.” Quando o novo sistema foi introduzido, “as associações de moradores e a AGOM passaram a ter listas distintas, repartindo o eleitorado, de forma quase equitativa, pelas duas candidaturas.” À excepção do sufrágio de 1996, as duas listas que integravam a União Eleitoral têm conseguido eleger dois deputados cada, tendo-se verificado o mesmo resultado em Setembro passado. Ainda assim, realça o sociólogo, o principal efeito “foi a garantia de uma maior diversidade de opiniões e de sectores da sociedade na Assembleia.”

O método único que Macau adoptou só é possível “porque não há um problema típico na maior do mundo, onde o método de conversão dos votos em mandatos poder ajudar a formar maiorias, que são decisivas para a existência de governos estáveis.” Tanto na altura em que foi criado como agora, “essa questão não se coloca, porque o Governo não está dependente da maioria da Assembleia Legislativa,” conclui Paulo Godinho.

 

I.C.