Tripla identidade

“Como os Évora chegaram a Macau? De avião.” A primeira resposta de Mário Évora e os risos subsequentes deram o tom que iria dominar a entrevista. A conversa viajou pela chegada da família a Macau; pela infância dos dois irmãos; pela “emancipação” universitária; pelos amores da Medicina, música e desporto... pelas ligações a Cabo Verde, Portugal, Macau. A acompanhar as palavras e as memórias, um bife de atum e uma caldeirada de marisco, sabores da semana gastronómica de Cabo Verde

 

Humberto Évora quase que aposta ser o cabo-verdiano que reside há mais anos em Macau. O recorde era detido por um tio que aqui frequentou o liceu, fez o serviço militar, casou com uma macaense e nunca mais visitou a terra natal. Chamava-se Euricles Brito Lima e faleceu o ano passado.

 

A família Évora foi das primeiras a deixar Cabo Verde para se fixar a longo prazo em Macau. Estava-se no final da década de 40 quando os avós maternos de Humberto e Mário chegaram ao Oriente. António Magalhães Coutinho era um homem habituado a diferentes fusos horários. Anos antes, este português tinha estado na Guiné, viveu depois em Cabo Verde, onde conheceu Crispina Brito Lima. Um casamento, alguns filhos e, anos depois, a família partiu para Macau. António Magalhães Coutinho veio para ser director dos Correios. Para trás ficava Cabo Verde e uma filha, recém casada. Mas também ela queria seguir a aventura dos pais pelo Oriente. Só era preciso convencer o jovem marido que repetia: “Sair de São Vicente? Nem pensar!”. Não valeu de muito. Partiram para Macau com o objectivo de permanecerem dois anos. Ficaram 30! Ao colo já traziam um bebé, deram-lhe o nome de Humberto. O calendário marcava o ano de 1953.

 

É com orgulho que os dois irmãos recordam o avô e a obra feita em Macau. Os registos confirmam que António Magalhães Coutinho foi responsável pela construção do bairro social dos Correios, junto ao Mercado Vermelho. “Privilegiou os aspectos e as regalias sociais e tomou medidas que estiveram na génese da modernização dos Correios”, frisam orgulhosos. O pai de Mário e Humberto teve um percurso profissional diferente: começou nos Serviços de Meteorologia de Macau, onde acabou como director. Curiosamente, antes da transferência para a Fortaleza do Monte, os Serviços de Meteorologia funcionavam no topo de uma colina, precisamente onde agora está construída a segunda fase do Hospital Conde de São Januário. “Por ironia do destino, acabei por vir a trabalhar num espaço onde eu tinha circulado de calções e meias altas, onde meu pai trabalhava”, recorda Mário Évora. Em matéria de curiosidades, Mário bate recordes. Antes de ser governador de Macau, o conde São Januário, que dá nome ao hospital público onde os Évora trabalham, passou também por Cabo Verde. “Aí começa a nossa saga Cabo Verde-Macau.” Mas a história não acaba aqui. O conde tinha uns terrenos em Paço d’Arcos, onde Mário comprou uma casa. “Só depois vi lá uma tabuleta a dizer Rua Visconde São Januário. Bom, isto já é destino mesmo!”. Humberto acrescenta que o irmão nasceu no Hospital de São Rafael, onde actualmente funciona o consulado de Portugal em Macau. Mário não perde a deixa: “Foi considerado património precisamente porque verificaram nos registos que eu tinha nascido lá. Imediatamente  impediram que aquilo fosse alguma vez demolido”, ironiza.

 

 

 

Cachupa aos domingos

 

 

 

São macaenses, portugueses e cabo-verdianos. Humberto e Mário não aceitam menos do que isso. Um identidade tripartida que foi alimentada desde sempre. “Nasci macaense, convivi com macaenses, comi com fai chi, ia comer chau min ao célebre Va I, ao lado do antigo Cinema Império, e brincava aos jogos tradicionais chineses”, recorda Mário. Por outro lado, a realidade cabo-verdiana estava nos seus pais, na sua própria casa, onde aos domingos havia sempre cachupa. “Eu observava a forma como os meus pais reagiam quando recebiam um disco do Bana (cantor cabo-verdiano). Era sempre com a emoção que se ouvia a música de Cabo Verde.”  Mário lembra-se também da mãe lhes pedir para irem de bicicleta ver em que quartel estaria o novo militar que vira a passar. “De certeza que o rapaz é de Cabo Vede. Descubram onde ele está e digam-lhe que no domingo há cachupa.”

 

Um ano e meio separa os dois irmãos. “Mas o Humberto não podia viver sem mim, por isso chumbou para podermos ficar no mesmo ano”, brinca Mário. Na verdade, Humberto não podia viver sem o desporto. Foi campeão de Macau nos 100 e nos 110 metros barreiras. Neste último caso, o seu recorde não foi batido durante mais de dez anos. “Ganhei medalhas mas chumbei”, confessa Humberto.

 

Partem assim juntos, em 1971, para estudarem Medicina na capital portuguesa. A comunidade cabo-verdiana de Lisboa teve um papel importante na integração dos irmãos que, pela primeira vez, haviam saído de casa. Humberto passou a dividir o tempo (em partes desiguais) entre os estudos e a música. Integrado num grupo cabo-verdiano de música de  intervenção, deslocou-se inclusivamente ao arquipélago para tocar. Ainda gravou um vinil com o cantor Dani Silva. Mas o final do curso ditou também o fim da viola e da composição. “Chorei muito, não sei se é preciso escrever aqui a quantidade de lágrimas, mas tive que reduzir muito a parte musical.”

 

Durante o curso, conheceram os movimentos políticos de resistência ao salazarismo e Mário Évora aproveitou para conhecer a Europa, à boleia e de mochila às costas. Concluídos os estudos, regressaram à terra do Oriente, onde ainda hoje residem. E, tal como na infância, continuaram a alimentar a tal identidade tripartida. “Isso reflectiu-se em várias opções: sou fundador da Associação dos Macaenses, criada com o aproximar da transição e com o intuito de preservar a nossa identidade cultural”. O mesmo Mário Évora é também fundador e actual presidente da Associação de Amizade Macau-Cabo Verde, que participa em actividades ligadas à lusofonia e à presença portuguesa em Macau. “Não seria de admirar, obedecendo à sugestão de Scolari, se pusesse uma bandeirinha portuguesa à janela quando Portugal joga. Ao  mesmo tempo ouço o relato para saber se Cabo Verde se classifica para as finais da Taça de África e vibro com jogadores estrangeiros que jogam em Portugal ou na diáspora, como Patrick Vieira, jogador da selecção francesa. Só não vibro com nenhum jogador macaense porque acho que actualmente não há nenhum a jogar na primeira divisão, embora sinta orgulho das participações passadas .”

 

Todos os anos, Humberto Évora visita Cabo Verde e une as férias à profissão. A Medicina Desportiva está a dar os primeiros passos no país e Humberto, médico desta especialidade (tirada em Itália, num período de muitas recordações), tem ajudado nessa caminhada, através de reuniões, colóquios e conferências. Juntamente com o médico do F.C.Porto, fez as primeiras intervenções cirúrgicas relacionadas com a Medicina Desportiva.

 

“Sinto-me 200% cabo-verdiano quando lá estou. Aliás, Cabo Verde é um país de emigração. Nunca lá vivi, mas tenho referências culturais comuns e muitos amigos da universidade estão lá.” Como o próprio Ministro da Saúde e o director do Hospital da Praia. Durante as férias, chegam ao país emigrantes cabo-verdianos de todas as partes do mundo. “Nós contribuímos com a parte de Macau, a que faltava”. Existem mais cabo-verdianos emigrados do que os que residem no seu país natal. “Cabo Verde é um arquipélago que tem dez ilhas mas é uma Nação de onze ilhas. A 11ª é a diáspora cabo-verdiana”, comentam os Évora.

 

 

 

Carreira Macau-Cabo Verde

 

 

 

Ao abrigo de um protocolo de cooperação na área da saúde, Mário Évora chegou a deslocar-se a Cabo Verde duas a três vezes por ano. “Os meus amigos diziam que eu já tinha descoberto o autocarro que passava por lá”. Esse protocolo terminou e as visitas tornaram-se menos assíduas, também por culpa das dificuldades de acesso ao país. Mas, entretanto, outro acordo está a ser discutido. Mário conta em breve voltar a descobrir a carreira Macau – Cabo Verde.

 

 

 

Proximidade cultural

 

 

Nunca as raízes africanas estiveram tão preservadas em Macau. Para isso contribui a chegada nos últimos anos ao território de muitos cabo-verdianos e outros africanos de língua portuguesa, sobretudo estudantes. As novas tecnologias da informação também diminuíram as distâncias e o anterior isolamento cultural. Actualmente, os Évora estão a par das novidades cabo-verdianas, nomeadamente musicais. Quanto à culinária, “posso dizer que a minha empregada chinesa faz cachupa. Penso que com isto digo tudo”, sintetiza Mário.

 

Não têm rumos definidos para o futuro. Mário espera andar cá e lá e, um dia, quem sabe, passar parte do ano em Macau, a restante em Cabo Verde, onde gostaria de instalar uma estrutura de saúde. A criação de um centro de medicina desportiva é um dos sonhos de Humberto.

 

O percurso e a vida de Humberto e Mário chegam a confundir-se. Os Évora admitem que cresceram e viveram como dois irmãos (no sentido fiel da palavra), com interesses comuns e “feitios diferentes mas compatíveis. Isso tem muito a ver com a forma como fomos educados, com a tradição cabo-verdiana de transmissão de princípios e regras. Agora reflectimos isso nos nossos filhos.”

 

A Família Évora continua a criar raízes nos três continentes. Primos direitos do cantor Olavo Bilac, do grupo português Santos e Pecadores, Mário e Humberto são ainda familiares da “diva” cabo-verdiana Cesária Évora. “Somos primos de gente ilustre”, brincam mais uma vez, para não destoar do resto da entrevista, adocicada com doce de papaia e queijo de cabra.