Literatura e gastronomia à mesa em Pernambuco

Conhecer as novidades do mercado literário e ao mesmo tempo degustar pratos citados nas obras de grandes escritores brasileiros e estrangeiros. Foi esta a receita inédita da sexta edição da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco (Brasil)

 

A sexta edição da Bienal Internacional do Livro de Pernambuco, na região Nordeste do Brasil, atraiu um número recorde de público, entre os dias 5 a 14 de Outubro. Foram mais de 530.000 visitantes que consolidaram o evento como o terceiro maior do Brasil, atrás apenas das bienais do livro de São Paulo e do Rio de Janeiro.

“Realizámos uma homenagem a diversos escritores lusófonos, por meio de um diálogo entre a literatura brasileira e a de outros países de língua portuguesa”, afirmou o organizador da mostra, Eduardo Holanda, à Revista Macau. “Destaque também para uma coisa inédita num evento literário, onde o público apreciou pratos e receitas citados em obras de grandes escritores”, recordou.

 

Cozinha com 100 metros

 

Com o tema “Literatura: Diálogos e Interfaces”, o evento decorreu em Olinda, cidade considerada Património Histórico da Humanidade pela Unesco, na região metropolitana da capital Recife, com a participação de dezenas de escritores do Brasil, Portugal, Moçambique, Venezuela, França e Alemanha.

Durante os dez dias do evento, os visitantes acompanharam em tempo real a preparação de pratos eternizados em grandes obras literárias, numa cozinha de 100 metros quadrados especialmente montada para o evento. Diversos especialistas em culinárias revezaram-se no espaço para apresentar as receitas citadas em livros, como “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, “Don Quixote”, de Miguel de Cervantes, e “Ana Karenina”, de Leon Tolstoi.

As chamadas “oficinas gastro-literárias” mostraram que, em geral, o afecto é o ponto de partida com que a gastronomia é tratada na literatura. Um dos destaques foi a sessão “À mesa com Eça de Queiroz”, comandada pelo chefe Dagoberto Carvalho, com receitas dos jantares citados nas obras de um dos maiores escritores da literatura portuguesa, com mesas fartas e bons vinhos.

A jornalista brasileira Renata do Amaral, especialista na relação entre culinária e literatura, sublinhou que uma refeição, em geral, significa mais do que mero alimento e ganha especial importância nas obras literárias. Um exemplo clássico dessa relação é a de Madeleine, do escritor francês Marcel Proust, onde o sabor do bolinho aromatizado, leve, em formato de concha, é o responsável por mostrar o caminho na busca do tempo perdido e das memórias da infância.

Os pratos citados na obra do escritor Jorge Amado foram parar no livro “A comida baiana de Jorge Amado”, de autoria da filha do escritor brasileiro, Paloma Amado. Outros exemplos são “Afrodite”, de Isabel Allende, “Não me deixes”, de Rachel de Queiroz ou “Memórias gastronómicas”, de Alexandre Dumas.

 

Reforma ortográfica em discussão

 

Longe dos sabores da boa mesa citados na literatura, a proposta de reforma ortográfica da língua portuguesa, única no mundo com duas diferentes normas oficiais, uma portuguesa e outra brasileira, dominou a maior parte dos debates entre os escritores. O primeiro acordo para a harmonização das duas diferentes ortografias foi assinado em 1990, com início da vigência marcado para 1994, mas nenhum dos sete países de língua oficial portuguesa (Timor-Leste ainda não era independente) ratificou o tratado.

Em 2004, houve uma nova tentativa. Os países assinaram um protocolo que determinava que o acordo entraria em vigor com a ratificação de três países, o que já foi feito por Brasil, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Portugal, entretanto, defende mais tempo para a implantação da reforma, conforme recente artigo assinado pela ministra portuguesa da Cultura, Isabel Pires de Lima.

O escritor português Jorge Reis-Sá considerou um “absurdo” a proposta de homogeneizar a ortografia da língua portuguesa, uma vez que acredita ser “bonita” a existência da diversidade de escritas. Parte da beleza de um texto literário está justamente na dificuldade de compreendê-lo. Autor de cinco livros de poemas, como “Biologia do Homem”, e de três obras narrativas, com destaque para o romance “Todos os Dias”, Reis-Sá utilizou expressões do seleccionador de Portugal, o brasileiro Luís Felipe Scolari, para salientar as semelhanças e diferenças entre o português do Brasil e de Portugal. Acredita que a língua é como um ecossistema e, portanto, depende da diversidade para sobreviver. Reis-Sá considera “castrador” qualquer acto que venha a tolher essa diversidade.

Jorge Reis-Sá salientou ainda que, no seu próximo livro, usará as actuais normas da língua, mesmo que não sejam mais adoptadas em Portugal, apenas por resistência. “Em Portugal não estamos nem discutindo esse acordo ortográfico. Só soube dele porque vim ao Brasil”, comentou. Pela aplicação das novas normas ortográficas, 1,6 por cento do total do vocabulário usado em Portugal (e nos restantes países que seguem a norma portuguesa) deverá sofrer adaptações. No Brasil, essas mudanças abrangem apenas 0,5 por cento do total das palavras.

A professora de Literatura da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Nelly Carvalho, disse, por seu turno, considerar importante a unificação ortográfica, uma vez que é “estranho”, Brasil e Portugal falarem idiomas diferentes. Sublinhou ainda que a percentagem de palavras que passará por mudanças é muito pequeno. “A questão da língua é muito importante, porque não podemos esquecer que língua é poder. Quando os colonizadores chegaram ao Brasil, a primeira coisa que eles fizeram foi ensinar o português aos nativos. Os Estados Unidos são uma potência, porque o mundo inteiro fala inglês”, defendeu.

O escritor brasileiro Marcelino Freire sublinhou que a reforma ortográfica “esconde interesses financeiros” de editores dos dois lados do Atlântico. “Não acredito que (a reforma) seja para melhorar. Eu quero desunificar a língua. Como escritor, deixem que eu mesmo mexa nela. Requebre e rebole. Bote ou não bote trema. Deixem que eu trema. Que eu junte ou não junte. Minha pátria é minha língua. Logo, única. Viciada”, disse, referindo-se ao trema, actualmente utilizado apenas no Brasil.

Distante da polémica reforma ortográfica, a escritora portuguesa Maria João Cantinho aproveitou a sua passagem pela Bienal de Pernambuco para relembrar a sua infância em Angola, onde viveu até à independência, regressando em seguida a Portugal. “Aqui também sentimos o inconfundível cheiro de África, que me remete à infância, ao afecto”, afirmou a escritora, que participou do debate “Portugal e Brasil: parentes afastados ou irmãos próximos?”

“Diferentemente dos portugueses, mais reservados na questão afectiva, os brasileiros têm uma relação mais solta com a língua, mais descontraídos. É uma experiência mais próxima com as minhas raízes africanas”, observou a escritora, cujo mais recente livro “Caligrafia da Solidão” foi lançado no Brasil, pela Editora Escritura.

 

O Brasil é um continente

 

Maria João Cantinho salientou que eventos como a Bienal de Pernambuco oferece oportunidades únicas para dar a conhecer ao mundo diferentes autores brasileiros, actualmente distantes dos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro. “O Brasil não é um país, é um continente. Costumo dizer que são muitos brasis. Há uma literatura muito rica e diversa que precisa ser mais conhecida”, disse. “Fiquei muito contente e homenageada por estar aqui”, comemorou a escritora.

A edição deste ano da Bienal de Pernambuco realizou homenagens especiais aos 90 anos do escritor, dramaturgo e teatrólogo brasileiro Hermilo Borba Filho (1917-1976), e aos 30 anos da morte da escritora Clarice Lispector, nascida na Ucrânia e radicada no Brasil.

Outro homenageado foi o escritor Ariano Suassuna, que assinala 80 anos de vida, em 2007. Natural do Estado da Paraíba, Suassuna mudou-se para Recife, em 1942, quando então inicia a sua carreira literária. Autor de grandes obras, como os romances “Fernando e Isaura”, “A Pedra do Reino” e as comédias teatrais “O Santo e a Porca” e “A Pena e a Lei”, participou do mais concorrido espectáculo da bienal. O público esgotou o local do espectáculo, o que obrigou os organizadores a transferirem a apresentação para o lado externo da Bienal. O “Recital para Ariano” teve a participação do Grupo em Canto e Poesia, de Pernambuco.

O escritor e médico brasileiro Moacyr Scliar, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), aproveitou o evento para lançar o seu 75º livro: “O Texto, ou a Vida”, espécie de autobiografia e antologia. Alguns de seus livros já foram publicados na Inglaterra, Rússia, República Checa, Eslováquia, Suécia, Noruega, França, Alemanha, Israel, Estados Unidos, Holanda e Espanha e em Portugal. Uma característica marcante na obra do autor é o flerte com o imaginário fantástico e a investigação da tradição judaico-cristã.

O escritor moçambicano Luís Carlos Patraquim fez um panorama sobre a poesia de Moçambique. Um dos fundadores da Agência de Informação de Moçambique (AIM) e do Instituto Nacional de Cinema (INC), trabalhou no jornal cinematográfico “Kuxa

Kanema”. Desde 1986, Patraquim mora em Portugal, onde trabalha em cinema, teatro e escreve artigos para a imprensa. Em 1995, ganhou o Prémio Nacional de Poesia, de Moçambique.

 

Mais de 600 mil livros vendidos

 

Durante os dez dias da Bienal de Pernambuco, um ecrã gigante exibiu filmes relacionados com a literatura, nomeadamente um conjunto de documentários de Nelson Pereira dos Santos sobre “Casa-Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre, e o documentário “Língua – Vidas em Português”, de Victor Lopes. O premiado filme do director moçambicano, radicado há mais de 25 anos no Brasil, exibe imagens de uma viagem por vários países de língua portuguesa, com depoimentos, entre outros, de José Saramago, Martinho da Vila, João Ubaldo Ribeiro e Mia Couto.

A Bienal de Pernambuco registou um recorde também na comercialização de livros. Mais de 600.000 títulos foram vendidos, ao longo do evento, o que gerou um volume de vendas de 6,7 milhões de dólares norte-americanos, valor quase duas vezes maior do que o registado na edição de 2005. “Acho que chegamos a um modelo perfeito. Temos a intenção de sempre melhorar e evoluir a cada edição, mas o sucesso foi total, tanto de público, quanto de bons palestrantes”, conclui Eduardo Holanda.

 

* Jornalista da Lusa, no Brasil