Cerâmicas na “colina de Buda”

Foshan, ligada à fundição de metais, merece uma visita, nomeadamente o Templo dos Antepassados, o Museu da Ópera de Guangdong e a Cerâmica de Shiwan, que pode ser também apreciada no Museu de Arte de Macau

 

A cerâmica de Shiwan, de pequenas estátuas onde o vidrado contrasta com o barro cozido e dá às personagens representadas uma vivacidade muito atractiva, pode ser apreciada no Museu de Arte de Macau.

Noutros tempos, Shiwan era uma pequena aldeia situada nos arredores de Foshan, mas agora está integrada na cidade.

O distrito de Foshan fica a três horas de autocarro de Gonbei. De automóvel, o percurso demora hora e meia, pois não é necessário utilizar a auto-estrada Pequim-Zhuhai, obrigatória para os autocarros. Situa-se a 25 quilómetros para sudoeste de Cantão (Guangzhou ), a meia hora da capital da província de Guangdong. As casas castanhas feitas com estrutura de bambu e envolvidas com cascas de árvores, espalhadas pela paisagem de bananais recortada por canais, outrora dominantes estão a ser substituídas por outras revestidas com cerâmica branca.

O nome Foshan, (que traduzido significa “colina de Buda”), apareceu na dinastia Tang (618-907) quando foram descobertas, na colina da povoação Ji Hua Xiang, três estátuas de Buda deixadas por um monge, que tinha vindo do Oeste na dinastia Jin do Leste (317-420). Foi considerada durante as dinastias Ming e Qing como uma das quatro povoações famosas da China e recentemente recebeu o título da ONU de “Habitat Exemplar da Humanidade”. O município de Foshan, com uma população de 3,4 milhões de habitantes, compreende, desde Janeiro de 2003, quatro concelhos (Nanhai, Shunde, Gaoming e Sanshui), mais a cidade de Foshan, com meio milhão de pessoas.

À semelhança do que sucede em outros pontos da China, é uma cidade a fervilhar. Enormes prédios tomam o lugar das velhas casas nos quarteirões entretanto arrasados, restando alguns bairros escondidos para espelhar a antiguidade de Foshan. Muitas das novas construções parecem procurar tocar o céu, talvez para poderem olhar por cima da constante e fina neblina que envolve o horizonte e demonstra o peso industrial da cidade.

Reconhecida desde a dinastia Ming como a capital da cerâmica do Sul, conta actualmente com sete das 12 grandes empresas de cerâmica para construção civil existentes na China. Mas não é esta cerâmica que nos traz até Foshan. A cidade regista uma longa história na produção de cerâmica, que pode ser revista nas ruínas de Hedangbeiqiu, com 4800 anos e no forno antigo Nanfeng que, apesar de existir há 500 anos, continua ainda a ser usado.

 

Shiwan

 

Para visitar a cerâmica de Shek Wan, como se denomina em cantonês Shiwan, (Baía de/da Pedra), percorri de táxi os poucos quilómetros de uma avenida que liga o centro da cidade de Foshan a esta antiga povoação.

Junto ao rio Dongping, o Museu da Cerâmica, onde se encontra desde os inícios do século XVI o forno imperial Nanfeng, o mais antigo deste tipo ainda a funcionar, e por isso, em Julho de 2001, proclamado como uma relíquia histórica e cultural e registado em 2002 no “Livro Guiness dos Recordes”.

Em Hangzhou tinha já visitado um destes fornos do tempo da dinastia Song do Sul, logo mais antigo, mas que agora apenas serve como museu. Este tipo de forno é originário da China e tem uma história com mais de mil anos. O forno tem vários níveis, patamares ligados por túneis que, obliquamente em rampa, encaminham o calor do fogo feito com lenha para as diferentes câmaras. Colocam-se as peças separadas dentro de cilindros de barro, para evitar as cinzas e se alguma peça estourar não partir as outras. O forno normalmente conta com três câmaras, cada uma com diferentes temperaturas de cozedura, o que permite os efeitos desejados nos vidrados dos objectos cerâmicos, como potes e esculturas. Feito com tijolo refractário, usa-se barro para tapar as frestas entre os tijolos, sendo a parte do tecto em abóbada. Não pode ter nada metálico, já que as temperaturas atingem os 1300 graus centígrados. A fornalha situada à entrada, na parte de baixo do forno, é alimentada com toros de madeira, tendo a chaminé na parte superior. O processo consiste em três etapas, sendo a primeira de uma cozedura a 800-900 graus , durante oito horas. Após esmaltadas as peças, voltam-se a colocar pelos vários andares para aí ficarem um dia e meio, a uma temperatura de 1300 graus.

Por fim, espera-se que o forno arrefeça durante dias para ser aberto, altura em que se faz uma grande festa. Este forno em Shiwan é conhecido como forno Dragão e tem aproximadamente 80 metros, sendo manuseado pelos mestres do forno que, durante os dois dias em que está a funcionar, se mantêm vigilantes para o alimentar de lenha quando necessário. Em visita guiada, percorremos o resto do museu onde nos é explicada a técnica tradicional de cozedura e a História da Cerâmica da região. Falam-nos de um outro forno, a gasóleo, conhecido por forno túnel, que é mais fácil de manusear e actualmente é controlado por computador.

O início da cerâmica de Shiwan começa no Neolítico com a produção de utensílios quotidianos comuns, como os que ainda se podem ver nas cozinhas de muitas casas e eram feitos de uma argila preta comum na zona, nos fornos rústicos cavados na terra. No período Tang e Song (entre os séculos VII e XIII) registou-se um grande desenvolvimento devido ao aperfeiçoamento dos fornos, que conseguiram atingir maiores e diferentes temperaturas. Após muitas experiências, como o acrescentar às argilas pretas, as argilas vermelhas provenientes das montanhas das redondezas e o misturar com areia permitiu uma evolução nos vidrados e assim começaram a aparecer os brancos e uma gama de cores que evoluíram ao juntar no vidrado branco, óxidos metálicos e passaram a usar um barro cerâmico, parecido com a porcelana. Usando uma técnica tradicional, os mestres do forno com a sua vasta experiência, conseguem resultados admiráveis. Numa mesma fornada, o barro coze de maneiras diferentes nos vários patamares, criando brilhantes vidrados com cores resplandecentes e assim as obras que ali são produzidas não encontram paralelo, sendo impossível realizá-las nos fornos modernos. Se até então, a produção era para utensílios diários usados apenas na região, nos finais da dinastia Ming e princípios da Qing começa a ser exportada. No início do século XVIII, já havia tantos oleiros que cada um começou a especializar-se e depois organizaram-se em cooperativas. No reinado do imperador Qianlong (1735-1796) foram criadas a “cooperativa dos produtores de potes de flores” cuja especialidade é o fabrico de vasos, jarras de grandes dimensões e telhas ornamentais, a “cooperativa dos oleiros de objectos vidrados a vermelho”, que se dedica aos utensílios de culto e a “cooperativa de criadores de peças artísticas e de recriação das antigas”, que produz estátuas e frontarias.

Como já referimos, uma das grandes colecções de esculturas figurativas de Shiwan encontra-se no Museu de Arte de Macau, que conta no seu acervo com mais de 300 peças. Obras de arte de famosos escultores, que desde o princípio do século XX são extremamente admirados no exterior pelo seu realismo e perfeição. Todos descendentes de artesãos locais como é o caso de Liu Chuan, o mais eminente artista do século XX e especialista em vidrados, que foi mestre de uma geração, como Liao Hongbiao, seu sobrinho, que aprendeu os rudimentos da técnica com o pai, Liu Zuomin; Liu Zemian que foi iniciado na cerâmica também pelo pai, Liu Yuan, e aos treze anos era já um artista consagrado; Liu Zuochao e Lio Gui Bing. Também Huang Ping, Pan Yushu, Chen Weiyan, Lao Chin e o seu filho Lao Kwai Peng se encontram referenciados como importantes mestres da olaria de Shiwan.

Ao olhar para algumas das peças figurativas destes mestres chego à conclusão de que conheço aquela arte. É já em Macau, num artigo de António Pedro Pires, publicado na “Revista de Cultura”, no 4 (1988), Instituto Cultural de Macau, da edição em língua portuguesa, que, ao olhar para uma ilustração do Zé Povinho, de Rafael Bordalo Pinheiro, tomo conta do paralelismo, ajudado pelo que li. “Semelhança verdadeiramente assombrosa entre as linguagens naturalistas da cerâmica das Caldas da Rainha e da cerâmica de Shek Wan, semelhança até no próprio processo de fabrico”. E é o padre Manuel Teixeira que desfaz as dúvidas ao referir, também em artigo publicado na Revista de Cultura (edição nº 7 e 8, de Outubro de 1988 a Março de 1989, em língua portuguesa), que “Feliciano Bordalo Pinheiro, irmão de Rafael, tinha desde 1875 e durante alguns anos vivido em Macau. No regresso a Portugal funda a fábrica de Faiança das Caldas da Rainha em 1884, onde Rafael trabalhou.”

Após sair do recinto do Museu da Cerâmica, passo por uma área onde o recriar das casas antigas me leva a percorrer um conjunto de lojas com esculturas de figuração popular chinesa, como as da revolução maoísta, grandes jarrões e outras peças, que complementam os artigos em exposição. Por fim, chego ao parque onde um lago nos separa do templo taoista de construção muito recente. Local que começa a ser de peregrinação para muitas famílias aos fins-de-semana e onde, um passeio de gaivota pelas águas faz as delícias das crianças e namorados.

 

O centro de Foshan

 

No regresso ao centro vejo grandes painéis de publicidade onde os diferentes materiais cerâmicos, com funções específicas, estão expostos e são produzidos pelas diversas fábricas que se encontram ao longo do trajecto.

A avenida junto ao terminal de camionetas tem um trânsito caótico, sendo um perigo atravessá-la, mesmo nas passadeiras com sinais luminosos para os peões. O número de motorizadas é imenso e fazem acérrima concorrência aos táxis. Sem o mínimo respeito pelos peões, andam por todo o lado e os passeios parecem ser o seu local preferido também para estacionar.

Na rua Song Feng, paralela à anterior avenida, num dos quarteirões antigos da cidade, encontro o “jardim residência” da Família Liang, que foi construído entre 1796 e 1850. Quatro tios e sobrinhos, os mais famosos mestres de caligrafia, poetas e pintores da localidade, reuniram-se e resolveram construir uma típica escola-jardim ao estilo do Sul, da região Lingnan (Cinco Cumes). Não se adivinha por fora o espaço que ocupa o recinto, que está dividido em três partes distintas. Entrando para um pátio, onde a pedra e os tijolos cinzentos são os elementos principais, três edifícios estão separados por corredores a céu aberto. Passando depois por uma porta em círculo chego a um denso espaço mais intimista. Os pavilhões com vitrais nas janelas e pouco mobilados estão envolvidos numa frondosa vegetação, onde não falta um pequeno lago e pontes em miniatura. Por fim chega-se à terceira secção do jardim com um imenso espelho de água a ocupar a maior parte da área e uma enorme pedra de formas abstractas do lago Tai no centro. Nas margens, uma ponte coberta, um barco de pedra e outros locais que permitem um sereno estar, transporta-me para fora do stress da cidade. É considerado um dos quatro mais famosos jardins da província de Guangdong.

Com uma população de 500 mil habitantes, Foshan cresce rapidamente, tanto em altura como em tamanho, já que a sua grande dinâmica empresarial cria novos empregos. Com os campos a ser integrados na cidade, devido à sua grande expansão, muitos agricultores requalificam-se e abandonam as terras, encontrando emprego nas fábricas. Essa dinâmica trouxe também para a cidade as grandes cadeias de lojas de comida rápida, assim como de produtos de marca e é pelos letreiros destas que reconheço o novo centro da cidade. Para conhecer o que resta da parte antiga é obrigatório uma visita à rua Donghuali, com as típicas casas estilo Lingnan, datadas da dinastia Qing. Apesar da rua pavimentada com pedra ter 112 metros, à sua volta estende-se um quarteirão que começa a ser demolido, sobretudo as casas que dão para Fu Chiang lu.

 

Templo dos Antepassados

 

Na rua Zumiao, que significa Templo dos Antepassados, antes de chegar ao antigo templo budista da dinastia Ming, Renshou Si, onde um pagode se situa, visitei o “Instituto de Pesquisa da Arte Folclórica de Foshan”. É um local de exposição e de venda. A sala da entrada mostra enormes lanternas coloridas feitas com inúmeros materiais, que servem para decoração de interiores e exteriores, estando já registadas desde a dinastia Ming. Durante o festival de Outono são expostas num cortejo pelas ruas da cidade. Noutra das salas encontrei papéis com “Guardiões da Porta” feitos a partir da impressão com moldes de madeira, onde se encontram gravados os desenhos que depois são pintados, sendo considerados os de Foshan um dos quatro mais famosos de toda a China. Também as esculturas de Shiwan aqui tem uma sala onde estão expostas algumas das peças de Zhuang Jia, artista que nasceu em 1931 e morreu em 2006. Por fim, os afamados papéis cortados de Foshan, com uma história de mais de 800 anos. Numa sala pode ver-se a forma como são feitos pelos artistas, que, com uma lâmina afiada, abrem os espaços a uma resma de folhas sobrepostas, tendo por cima a folha-modelo.

Continuando pela rua Zumiao, chego ao templo taoista dos antepassados, que dá o nome à rua. Com uma arquitectura original, o templo foi construído entre 1078 e 1085, cem anos após a conquista pelos Song do Norte das províncias de Guangdong e Guangxi aos Han do Sul (907-971). No palácio principal, a estrutura do telhado é feita através do encaixe de traves de madeira nobre, onde não foi usado um único prego. Frisos com esculturas em cerâmica local e nas paredes outras figuras recheiam o palácio, demonstrando o alto nível que a arte decorativa em cerâmica atingiu. Também a talha das mesas das oferendas é digna de registo. No altar central, uma estátua de bronze feita em 1452 e com 2500 quilos representa o deus Beidi, conhecido pelo Imperador do Norte. Outra peça que demonstra o alto nível técnico alcançado na arte de fundição em Foshan é o incensório, onde foram usadas duas toneladas de ferro e data dos inícios do século XIX. Região rica em jazigos de ferro, conta desde o século XIV com fundições para ferro e bronze. A história das fundições teve três períodos distintos, sendo 1368 a data do início dessas fundições, que vai até 1521. O período de ouro situa-se entre 1522 e 1795 e o fim das fundições aconteceu no final da dinastia Qing.

 

Altar das Dez Mil Felicidades

 

Num dos lados do recinto do templo, o terraço Wanfu, ou “Altar das Dez Mil Felicidades”, foi edificado em 1658 e é o teatro mais antigo da Província de Guangdong. No terceiro dia do terceiro mês lunar, quando se comemora o nascimento do imperador Beidi, os mais célebres actores de ópera de Guangdong, numa forma de reconhecimento, actuam nesta plataforma que tem dois metros de altura e vinte metros de comprimento e outros tantos de largura.

Em 2003 no terraço de Wanfu, o governo de Foshan organizou um seminário sobre a ópera de Guangdong, onde se debateu a preservação do novo reportório e de representações especiais de célebres actores desta arte, assim como foram escolhidos os dez melhores cantores de Guangdong.

No exterior e por detrás do recinto do Templo dos Antepassados encontramos o “Museu da Ópera de Guangdong”, também conhecida por Yue, que é originária de Foshan. Museu que abriu as suas portas em 2003, conta no seu espólio com mais de 20 mil objectos que pretendem narrar a História, a arte e as personagens nela intervenientes. Assim dividido em três partes, o museu mostra antigos cartazes, recortes de jornal, as vestimentas que os artistas usavam, discos, filmes e fotografias de actuações.

Continuando para o outro lado do recinto do Templo dos Antepassados, chagamos a um pavilhão onde, no amplo salão, uma classe com jovens alunos vestidos com fatos pretos aprendem uma série de exercícios com espadas e lanças. Estamos perante uma aula de kungfu, na variante de wushu, que é uma arte marcial, sendo Foshan o centro da escola do Sul.