Macao, o filme

Sternberg escolhe Macau para servir de cenário a uma trama de aventuras, o que dá bem a ver que esta cidade - o seu nome - despertava certo tipo de reminiscências no público americano

 

O segredo da América é o grande impulso, a imensa energia, que os emigrantes transportam consigo e aplicam aos espaços onde chegam e chamam seus. Essa energia aboliu fronteiras para, mais tarde, na rarefacção do “sonho americano”, as imperialmente expandir. Os americanos estão no mundo, dizia-nos o cinema dos anos 40 e 50. E era verdade: no caso americano, a narrativa mitológica tem uma rara sincronia com a História e talvez esse seja um dos sucessos mais radicais da cultura americana.

Em 1952, Josef von Sternberg apresenta o filme “Macao”, cuja acção decorre nesta cidade do Extremo-Oriente. Nada de surpreendente se atendermos a uma carreira pontuada por numerosas incursões em cenário exóticos, desde “Morroco”, com Gary Cooper e Marlene Dietrich, nomeadamente na China – “Shanghai Express”, igualmente protagonizado pela diva alemã. Desta vez, Sternberg escolhe Macau para servir de cenário a uma trama de aventuras, o que dá bem a ver que esta cidade – o seu nome – despertava certo tipo de reminiscências no público americano, afinal o primeiro destinatário destas produções que se impunham rentáveis. Não se compreende que os estúdios aceitassem um nome que não provocasse no público um frémito, um desejo de assistir ao que se passa num sítio desses. O nome Macao tem, portanto, o poder de evocar um imaginário, que só episodicamente terá algo a ver com a realidade, repleto das fantasias que bem entenderam lá colocar, mas que não deixa de se colar a esta cidade como imagem global.

Claro que as filmagens foram esmagadoramente feitas em estúdios de Hollywood, tendo sido recolhidas, sem os actores, uma série de hoje interessantes imagens da cidade que, depois, são projectadas, inseridas como cenários, dentro do próprio filme. É, por exemplo, o caso da chegada do ferry, vindo de Hong Kong, e a vista do singelo Porto Interior de antanho, cruzado por juncos e sampanas, com os seus cais a fervilhar de gentes, “mainly chinese”; como o é também um passeio de autocarro pela Avenida Almeida Ribeiro, com locução do motorista em brasileiro, perfeitamente fora de contexto.

 

Macao recriado

 

Vistas bem as coisas, a excentricidade do filme não reside no exotismo da cidade em si mesma, já que esta lhe é estrangeira, mas no Macao recriado por Sternberg e sobretudo na caracterização que passa dos americanos que deliram por estas paragens. O excêntrico – ou seja, os descentrados, o punctum do filme – são eles e não, propriamente, os costumes coloridos que compõem os afazeres da cidade. Estes passam como irrisões, momentos quase folclóricos, nos quais não se deixa, apesar de tudo, de ridicularizar o americano que crê estar entre selvagens (vide cena da barbearia entre o comerciante e a “barbeira”).

Há que dar o braço a torcer a Sternberg, que aliás deixou a conclusão da rodagem ao jovem Nicholas Ray: o bom gosto do casting é perturbante: Robert Mitchum, Brad Baxter e William Bendix, do lado masculino; Jane Russel e Gloria Grahame, do lado que interessa. Há quem diga que o mítico director nem perfilhou totalmente o filme. De facto, nota-se, nomeadamente a nível da iluminação, que não estamos perante um típico von Sternberg, como um “Der Blauer Engel”, “The Scarlet Empress” ou o já referido “Shanghai Express”. A luminosidade difusa que costuma envolver as suas personagens, com uma imensa capacidade mitológica – uma das suas mais famosas assinaturas -, desaparece; surge agora um contraste de pretos e brancos bem definidos, mais perto do estilo do filme noir que das suas efabulações luminotécnicas habituais.

Já o guião não faz jus à qualidade/glamour do naipe de actores. Mas se as suas falhas se situam nos nódulos narrativos, que apresentam soluções inverosímeis, já a caracterização dos personagens não deixa de ser relevante para localizar uma imagem de americanos, criada por americanos, de passagem por esta misteriosa cidade do Extremo-Oriente. Afinal, que tipo de gente é esta, tal qual a mitologia de Hollywood a descreve? Poderá isso ser importante ainda hoje para compreendermos os americanos que agora aqui habitam, como tribo ou como vírus?

Eles são – como não poderiam deixar de ser – o centro do argumento, da acção, dos torvelinhos do Bem e do Mal, do amor e dos ódios. A cidade e os seus habitantes limitam-se ao estatuto de cenário propício à emergência de determinadas características, princípios e valores que os personagens transportam do Ocidente.

 

“Cão come cão”

 

Os americanos deslizam por Macau imersos nas suas próprias histórias, ficando por exemplo bem claro que nenhuma ligação amorosa ou simplesmente erótica é susceptível de acontecer fora da sua “raça”. Pelo menos neste filme, neste contexto concreto.

Contudo, também nenhuma das personagens apresenta os tiques completos do herói clássico: belo, bom e justiceiro. Trata-se de gente batida e calejada por andanças orientais, entre outras, sobreviventes sem um horizonte definido e sem outro tempo que não o da luta pela sobrevivência. “Cão come cão”, com mais ou menos estilo.

A proximidade da II Guerra incensava este tipo de desajustado, de loser, que por motivos sombrios não tinha lugar no seu país natal, dando rebeldes a uma juventude tão insatisfeita que, ficando em casa, acabaria por não ter causa. Aqui perpassam os fantasmas de uma América em mutação rápida e impiedosa para os que são lentos no ajuste aos novos tempos. Estes encontram o seu lugar ailleurs.

 

Descida aos infernos

 

Neste filme, os três personagens principais são claramente uns desajustados, cuja presença em Macau não é uma escolha, mas uma espécie de etapa final de uma descida aos infernos (não será por acaso que um filme francês que também elege Macau como pano de fundo se intitule “L’enfer du jeu”).

Jane Russel, a cantora de óbvios predicados, confessa existir um motivo que a obriga a sair de Hong Kong e a aportar em Macau, “a place healthy for plants, unhealthy for humans”, segundo o barómetro do ferry que no filme efectua a travessia. Por ela não deixaria a colónia britânica para se refugiar, como não hesita em classificar, nesta “lixeira”.

O vilão, um americano de nome Vincent Halloran (Brad Dexter), é por coincidência com os tempos actuais apresentado como sendo o proprietário do mais rentável casino de Macau. Tendo a seu lado a imperscrutável Gloria Grahame, Vincent anda fugido ao FBI e à Interpol, por crimes não revelados, refugiando-se nas três milhas dos limites marítimos de Macau.

Robert Mitchum encarna um ex-soldado com problemas legais nos Estados Unidos, vagabundo sem poiso certo, carteira vazia e alguma habilidade para o jogo. O acaso, os seus desatinos, trouxe-o até Macau, onde pensa arranjar um emprego no casino de Vincent. Atrás destes personagens vem William Bendix, um inocente comerciante que acaba por se revelar ser um paisana do FBI, no encalço do bandido.

A pobreza do argumento acabou por se transformar, com o decorrer do tempo, como certos vinhos, num tecido podre, cujo interesse reside exactamente nos avatares da podridão, na tradição de “Os Jardins dos Suplícios”, de Octave Mirbeau, que, não por acaso, tinha como pano de fundo as concessões europeias de Cantão. Ele, ela, eles, não passam de personagens mal construídos, mas nisso reside hoje o seu encanto, na medida em que é muito por aí que Macao permite a erupção de personagens de outro modo relegados a papéis secundários nas várias histórias que Hollywood contava. A mulher de vida duvidosa, o homem sem horizonte, o vilão, o sargento, todos giram num torvelinho de ambição e ausência de valores que, por si mesmo, acaba por desembocar na regeneração.

 

Prisão ou inferno

 

Toda a acção se desenrola num Macau infernal de fantasia americana, de sampanas e riquexós, residenciais de toque latino e mesmo um corrupto sargento de polícia macaense, interpretado por um actor mexicano. O objectivo é atrair Vincent para lá das três milhas marítimas, onde um barco da Interpol, sediada em Hong Kong, espera para o capturar.

É, pois, criado uma espécie de horizonte de legalidade, para cá do qual existe um espaço de impunidade seja para quem for. É uma espécie de confortável prisão ou inferno onde alguns têm forçosamente de permanecer, sob pena de serem apanhados pelas forças do Bem e castigados. Vincent Halloran vive nesse halo que Macau proporciona, uma frágil bolha de segurança que o estranho estatuto da cidade permite. A lei é vaga e o braço da polícia internacional não chega aqui. Estamos num paraíso de refugiados, ladrões, contrabandistas, aventureiros de ambos os sexos e de todos os países. Um mendigo cego, chinês, amigo dos bons, completa o ramalhete e ajuda a resolver o imbróglio, absolvendo toda uma civilização. É este o Macau dos anos 50 que Sternberg apresenta.

Finalmente, o vilão é castigado e o casal parte para uma nova vida. A frase de Mitchum para Russel, que remata o filme quando ele sobe ao barco, a pingar de uma luta marítima, é um belo epitáfio para o filme: “You’d better get use to see me when I get out of the shower”. A moral da história é, então, um vago recomeço do novo casal, numa espécie de casa da pradaria, que se pode situar em qualquer lado e onde se reproduzirá a família americana. O happy ending do costume.

 

Regeneração de uma vida

 

Espécie de excessos, restos desorientados de uma era, o espaço possível, físico e emocional, destes personagens foi encolhendo; por exclusão sucessiva deste e daquele obscuro negócio, desta e daquela cidade, deste ou daquele país, desta ou daquela paixão; até não ter que um lugar situado num extremo do mundo, onde se esbatem as regras e se forjam novas identidades: Macao.

Não o Macau real mas todos os fiapos de imaginação que a palavra Macao poderia despertar na mente de um americano dos anos 50. Um espaço onde se acredita ser possível a regeneração de uma vida, num lance de dados ou numa paixão. Esse espaço sem regras que constituiu desde o início o ideal do sonho americano, mas que o tempo se encarregou de transportar para outros lugares, como se actualmente só pudesse existir em sítios de filiação real mas cinematograficamente (miticamente) engendrados.

Da limpidez da planície, dos grandes espaços por domar, à degradação da última cidade, à sujidade dos becos e das relações humanas, eis os avatares de um espaço proposto como lugar para o sonho que, propagado pela mais poderosa máquina cultural de sempre, ainda hoje domina o mundo: “Eu, carregando uma culpa, correrei as sete partidas do mundo e nos seus mais profundos baixios encontrarei a regeneração. Poderei viver de novo, livre da própria Memória; que é – como o cinema exaustivamente nos mostra – a nossa última prisão”.

Venham, pois, até Macao. Assim, já não há em lugar nenhum do mundo. Aqui, se calhar, também não.