O primeiro português do futebol italiano

O primeiro futebolista português a transferir-se para Itália reside em Macau há mais de duas décadas e meia. O médico Jorge Humberto jogou no Inter de Milão, onde agora brilha Luís Figo

 

Antes de Luís Figo espalhar o perfume do seu futebol pelos campos italianos foi Jorge Humberto o primeiro português a vestir as cores do Inter de Milão. Há mais de 40 anos, o futebolista da Académica surpreendeu o futebol internacional ao transferir-se para o Calcio. Na temporada de 60/61 tinha sido o melhor marcador da Académica com dez golos, o que não escapou a Helénio Herrera, então treinador do actual campeão italiano, que apostou no estudante de medicina para reforçar o ataque do Inter de Milão.

No segundo dia do Ano do Rato, no salão do Clube Militar, numa manhã fria, a lembrar o inverno de Portugal, o médico-futebolista contou à MACAU como tudo se passou.

Em Julho de 1961, quando se preparava para os exames do quinto ano de medicina, uma chamada telefónica começou a mudar a sua vida. Na república (residência de estudantes) onde então vivia, por trás da Sé Velha, no número 23 da rua do Norte, por onde passava de vez em quando Zeca Afonso, toca o telefone. Helénio Herrera transmite-lhe o interesse do Inter, mas Jorge Humberto responde com rispidez. “Não me aborreça. Tenho mais que fazer. Os exames estão à porta”.

Poucos minutos depois, Helénio Herrera volta a telefonar. “Não me passava pela cabeça que fosse o treinador do Inter. Julgando que se tratava de uma brincadeira, disse-lhe para ir dar uma volta. Com todas as letras…”, lembra com um sorriso nos lábios.

 

Três golos no jogo de experiência

 

Perante a insistência, o jovem estudante pede um telegrama a confirmar a proposta. Meia hora depois, o carteiro entrega o telegrama  para surpresa do próprio Jorge Humberto.

O assunto originou, de imediato, uma reunião de emergência do conselho da república. “O Zeca Afonso passou por lá nesse dia e também participou na conversa. No final, houve unanimidade: o convite era irrecusável”.

A época tinha terminado há várias semanas, pois o campeonato tinha acabado em Maio. Os testes do quinto ano eram a sua única preocupação. Antes de ir a Itália, fazer um jogo de experiência, era necessário convencer o professor de Patologia Cirúrgica, Fernando Oliveira, a adiar o exame. “Naquela altura, os professores não passavam cartão aos estudantes e havia uma enorme distância entre uns e outros. Enchi-me de coragem e fui falar com o professor à sua própria casa. Expliquei a situação e, por sorte, estava perante uma adepto ferrenho da Académica e admirador da minha maneira de jogar. No final, disse-me que adiava o exame, mas que voltasse antes de 30 de Julho para fazer as provas”, explica.

A aposta de Helénio Herrera, o homem que desenvolveu a famosa técnica do catenaccio, que ainda hoje é utilizada pelas equipas italianas, estava ganha. O mago, como era conhecido, contratou Jorge Humberto para “fazer concorrência” ao inglês Hitchens, o avançado-centro do clube de Milão. Helénio Herrera tinha conhecido Jorge Humberto em Portugal, já que treinava a equipa do Belenenses na época em que o cabo-verdiano se estreou na primeira equipa da Académica (1957-58).

 

Exame “mata” jogo com Pelé

 

Num torneio triangular de início de época, Jorge Humberto faz a estreia com a camisola do Inter. Frente ao Sparta de Belgrado, o futebolista português marcou três golos. “Joguei pouco mais de 45 minutos e ganhámos por 5-2. Os golos foram espectaculares e cheguei logo a acordo. Foi fantástico!”.

No segundo jogo o adversário era o poderoso Santos de Pelé, mas o exame estava marcado. O dilema foi grande, mas acabou por perder a oportunidade de defrontar o “rei”. No bolso, um prémio pela vitória de 120 mil liras, qualquer coisa como seis contos. “Na Académica ganhava 1200 escudos por mês. Houve festa rija na república, com muita comida e bebidas para todos”, conta.

De regresso a Coimbra passa no exame de Patologia Cirúrgica e em Setembro parte para Itália. “Não tinha acabado o 5o ano de medicina, faltavam duas cadeiras, já que desde o início tive sempre o mau hábito de deixar uma ou duas para fazer em Outubro”, justifica.

Em Itália, não abandona os estudos. “Como só treinava de manhã, podia estudar à tarde. Acabei por fazer três disciplinas nos três anos que estive em Itália. Uma cadeira na Università degli Studi, em Milão, e duas na Università di Padova, o que me permitiu manter a chama viva do curso”.

O primeiro ano no Inter não foi muito positivo, “não marquei mais de seis golos”. A Liga não permitia que jogassem ao mesmo tempo mais do que dois estrangeiros. O espanhol Luiz Suárez era titular indiscutível, enquanto que Jorge Humberto tinha que lutar com o inglês Hitchens por um lugar no onze do Inter. Nas provas internacionais, a situação era diferente, já que na chamada Taça das Feiras (hoje Taça UEFA) podiam jogar  três estrangeiros. “Era um clube muito forte, tinha uma grande equipa, onde tudo era feito com profissionalismo”, observa. Além de três títulos nacionais, (62/63, 64/65 e 65/66), Helénio Herrera consegue dois títulos europeus (64 e 65) e duas Taças Intercontinentais (65 e 66). Não participou nesses grandes êxitos, mas conheceu o poderio que tinha a equipa do Inter, onde pontificavam homens como Suárez, Mazzola ou Giacinto Faccheti. “Tinha quase dois metros de altura e uma boa compleição física, o que lhe permitia fazer o corredor todo. Foi com ele que Helénio Herrera descobriu o que mais tarde se veio a chamar o lateral moderno, que acompanha o ataque e cria lances de perigo na área contrária”, comenta Jorge Humberto a propósito de Faccheti, que mais tarde foi presidente do Inter.

 

Naturalização falhada

 

Em Milão, que nunca mais visitou, embora mantenha alguns contactos com antigos colegas e com o próprio clube, viveu momentos agitados, por causa de uma tentativa de naturalização. Os dirigentes do Inter e o próprio Helénio Herrera tentaram encontrar uma solução para ultrapassar a lei que só permitia a utilização de dois estrangeiros, mas o que contava “era o país de origem da federação de futebol onde foi feita a primeira inscrição, o que tornou inviável a burla que pretendiam concretizar”.

Quando chegou a Itália, Ângelo Moratti, pai do actual líder do clube, Massimo Moratti, estava a construir uma equipa que durante anos dominou o futebol europeu. No início dos jogos, “o senhor Moratti vinha ao balneário cumprimentar os jogadores, desejar boa sorte e entregar como prémio pessoal uma libra em ouro”.

Aos 70 anos, que comemorou no passado dia 17 de Fevereiro, fala com enorme emoção do tempo que jogou em Itália.

O contrato com o Inter não envolveu os muitos milhões que hoje se pagam às principais vedetas do futebol mundial, mas Jorge Humberto reconhece que garantiu a sua independência económica. “Com o dinheiro que ganhei em Itália comprei um prédio de três andares em Lisboa (Alto S. João), paguei uma complicada operação de uma das minhas irmãs e ofereci 1500 contos à Académica, que pagou algumas dívidas e comprou um autocarro para transportar os jogadores”, confessa, sem revelar os números envolvidos no negócio com o Inter de Milão.

Antes de voltar a Coimbra, joga duas épocas no Lanerossi Vicenza, onde foi quase sempre titular.  O Standard de Liége ainda o tentou contratar, mas o objectivo era concluir o curso. Depois de defrontar a selecção do México, num jogo em que rubricou uma boa exibição, “pedi uma verba grande que os belgas não podiam pagar”.

 

Vitória nas Antas no regresso à Académica

 

Em 1964, Jorge Humberto dá por finalizada a sua aventura no estrangeiro. A Académica tem na altura uma excelente equipa e na sexta jornada, disputada a 22 de Novembro, os estudantes vão às Antas derrotar, por 2-1, o Porto, então treinado por Otto Glória, que no final deu os parabéns ao adversário, “a Académica ganhou bem”. Foi precisamente nesse desafio que Jorge Humberto voltou a representar o seu clube do coração. Na temporada 64/65, marca 11 golos em 16 jogos, sendo o segundo melhor marcador dos “estudantes”, depois de Manuel António com 16 tentos. A formação de Coimbra, na altura treinada por Mário Wilson, termina o campeonato no quarto lugar. Em 1966/67, a Académica alcança a melhor classificação de sempre. É segundo classificado, a quatro pontos do Benfica. Depois de eliminar os encarnados da Taça de Portugal, perde na final contra o Vitória de Setúbal, por 3-2. Jorge Humberto não alinha (Artur Jorge e Ernesto são os avançados). O joelho direito já não permitia ao atacante cabo-verdiano  jogar ao mais alto nível. A lesão acabaria por determinar o fim da carreira, com 28 anos.

Em 1965, um dia depois de jogar nas Antas, a equipa da Académica participa em peso no casamento, que se realizou em Braga. “Foi o Augusto Rocha que me apresentou a Maria Marcelina, também estudante em Coimbra. Licenciou-se em Biologia e durante muitos anos dirigiu o Laboratório de Saúde Pública em Macau”, recorda.

Os estudos, como sucedia na altura com a grande maioria dos futebolistas da Académica, eram a grande prioridade. Tinha que terminar o curso de medicina, o que veio a verificar-se em 1966. Licenciou-se com média de 17 valores. Na primeira fila, a assistir ao último exame, a mulher e a filha, com apenas seis dias de idade.

Em Coimbra foi colega de grandes nomes do futebol português, como Toni, Artur Jorge, os irmãos Vítor e Mário Campos, Vítor Manuel, Mário Wilson, Manuel António, Gervásio, Rui Rodrigues e o macaense Rocha.

Mário Wilson e Cândido Oliveira foram os seus treinadores. Do segundo fala com muito carinho, já que foi o mestre Cândido Oliveira que o lançou na primeira equipa. “Um autêntico pai, pois deu-me muitos conselhos extra-futebol”. E ao baú das recordações vai retirar o jogo frente ao Olhanense na Queima das Fitas de 56. “Ainda era júnior, mas Cândido Oliveira lança-me nesse jogo para tirar a prova dos nove. Num choque com o guarda-redes contrário fiz uma luxação completa do joelho esquerdo. Só acordei no hospital, mas nesse dia a Académica ganhou um médico. O dr. Chico Soares, que estava na bancada a ver o jogo, saltou para o campo para me tratar. Depois passou a ser o médico da equipa, o que fez durante muitos anos. Passei o Verão a deslocar-me a Alvalade para ser tratado pelo grande Manuel Marques e a estreia nos seniores foi adiada por um ano”.

Depois de três épocas com bom rendimento, sobretudo nos jogos contra o Benfica, Porto, Sporting e Belenenses, veio a aventura italiana.

 

Chipenda não atacava

 

O serviço militar atravessa-se no seu caminho em 1968. Depois de ter prestado serviço militar em Santa Margarida e na Figueira da Foz parte para Angola como alferes miliciano-médico, incluído no Batalhão 2872. “Fomos combater para o leste de Angola, depois do Luso (agora Luena) na fronteira com o Quénia, onde as tropas inimigas atacavam muitas vezes, mas em três meses não houve um único ataque. Não sei se isto tem algum cabimento, mas comentava-se por lá que o líder do inimigo era o Daniel Chipenda, que tinha jogado comigo na Académica. Sabendo que eu estava do outro lado da barricada terá dado ordens para não atacar…”, diz, lamentando não ter tido a possibilidade de mais tarde fazer essa pergunta ao homem e futebolista, que, depois de passar por Coimbra, integrou os movimentos de oposição ao Estado português em Angola. “Nessa altura, outros colegas da Académica, como o Araújo e o França, que chegou a ser ministro da Defesa de Angola, também lutavam pela independência”, esclarece.

Em Angola, não assistiu no Jamor à final da Taça de Portugal que na tarde heróica de 22 de Junho de 1969 colocou frente-a-frente o Benfica e Académica e que foi considerada como “o maior comício contra o regime”, já que os adeptos dos estudantes exibiram cartazes com slogans contra a política de Marcelo Caetano.

Em Maio de 1971 terminou a comissão de serviço, “a missão estava cumprida e tinha colhido muitos ensinamentos para a minha profissão”.

Em Coimbra, Jorge Humberto tira a especialidade de Pediatria e é um dos fundadores do Hospital Pediátrico de Coimbra. “Uma gratificante experiência, já que em pouco tempo o hospital se começou a afirmar em todo o País pela diferenciação e qualidade do serviço prestado”, assegura, para justificar que estava a desenvolver um excelente projecto profissional quando foi desafiado a partir para o outro lado do Mundo (ver caixa).

 

Muitas dificuldades em Cabo Verde

 

Natural da cidade do Mindelo, ilha de S. Vicente, em Cabo Verde, Jorge Humberto é oriundo de uma numerosa família (é o quarto de 11 filhos, o único a tirar um curso superior). Ainda muito jovem começou a jogar na Académica do Mindelo, a sétima filial da Associação Académica de Coimbra. Quando o professor de ginástica, Daniel Leite, lhe começou a falar na hipótese de ir para Coimbra (estudar e jogar) considerou a “ideia engraçada”, mas de difícil concretização, pois faltava o dinheiro para as passagens e a estadia.

No primeiro semestre de 1955 deslocou-se várias vezes ao Palácio do Governador, Silvino Silvério Marques (irmão de Jaime Silvério Marques, que foi Governador de Macau) para falar numa eventual bolsa de estudo. Mais dois jovens cabo-verdianos estavam na corrida à partida para a capital do Mondego. “O problema é que o orçamento da então província não suportava qualquer bolsa de estudo. Antes do início das aulas, o Governador lá conseguiu arranjar verba, mas apenas para seis meses. Em vez de um, acabámos por embarcar os três. Fomos dormir para um quarto, onde havia apenas lugar para três camas, as malas ficavam debaixo do colchão. A casa era da irmã da nossa professora de matemática, perto da Penitenciária de Coimbra”, refere, esclarecendo que os outros dois colegas eram Salazar Ferro, que seria mais tarde professor catedrático de matemática em Coimbra, Lourenço Marques e Estados Unidos, onde se reformou, e António St. Aubyn, que viria a ser também professor catedrático de matemática em Coimbra e Lisboa.

Seis meses depois, os colegas arranjaram maneira de continuar os estudos e Jorge Humberto foi viver para casa de um “carola” da Académica, “fui o primeiro júnior a receber uma bolsa”.

Mais de 40 anos depois, não tem dúvidas em afirmar que valeu a pena. O curso foi sempre o objectivo principal. O futebol ajudou a concretizar o sonho e permitiu-lhe viver uma vida desafogada, muito diferente daquela que tinha em Cabo Verde.

 

Mais de 21 mil crianças

 

Com quase 26 anos de permanência em Macau, Jorge Humberto viu a agora região administrativa especial desenvolver-se e assistiu à transformação completa do Centro Hospitalar Conde de S. Januário “Quando aqui cheguei, em Setembro de 1982, não havia mais nenhum pediatra”, sublinha. Hoje, o hospital público “oferece uma assistência de qualidade”, de que muito se orgulha.

Durante 17 anos dirigiu os serviços de pediatria do Centro Hospitalar Conde de S. Januário (CHCSJ). “Quando o dr. Custódio Pais Rodrigues me convidou o objectivo era montar de raiz o serviço. Ao longo dos anos foi possível dotá-lo do que é necessário, dado que tive sempre o apoio de todos os responsáveis. Dos directores do CHCSJ, aos directores dos Serviços de Saúde, passando pelos Governadores e secretários da tutela”, acrescenta.

 

A filha de Melancia

 

Olhando para quase duas décadas de trabalho no Centro Hospitalar Conde de S. Januário recorda a criança chinesa que o então Governador Carlos Melancia adoptou. “Era o seu médico e foi muito gratificante para mim o que se passou”, deixa escapar com emoção.

Do que foi desenvolvido destaca a articulação com a obstetrícia e a criação da unidade de cuidados intensivos neonatais, que já permitiu salvar a vida de muitos recém-nascidos. “O serviço tem agora muitos pediatras interessados, especializados em valências distintas, disponibilizando um serviço de qualidade”, frisa, ao mesmo tempo que se vislumbra um brilho nos seus olhos, como que a confirmar a excelência do trabalho feito.

Já reformado, exerce agora as funções de consultor do director dos Serviços de Saúde e é secretário-geral da Associação de Prevenção e Controlo da SIDA.

Na parte da tarde, continua a trabalhar no seu consultório, situado em pleno centro da cidade, perto do Tap Seac. Com a ajuda da empregada, que assegura a  tradução, já que não domina o chinês, recebe diariamente crianças e bebés, portugueses, chineses e de outras nacionalidades. “Tenho mais de 21 mil crianças registadas”, revela.

Para manter a forma física pratica ténis, pois há muitos anos que deixou de jogar futebol. A última vez foi em 1998 quando a Académica veio a Macau e participou num encontro de veteranos. Na companhia dos amigos Mário Sousa, João Godinho, Humberto Basílio e Luís Iglesias é presença assídua nos courts do Westin Resort.

Espectador atento, não perde o que se passa com a sua Académica e acompanha a carreira do Inter e de Luís Figo, que conheceu quando a selecção portuguesa estagiou em Macau a caminho do Mundial da Coreia e do Japão. Em casa, com a ajuda preciosa da sogra, de 94 anos, “sabe mais de futebol que muitos comentadores”, espera no próximo Verão vibrar com os êxitos da equipa das Quinas no Europeu.

 

Regresso adiado sucessivamente

 

Os filhos, Maria Antónia e Jorge Eduardo, hoje com 41 e 39 anos de idade, mais os três netos, reivindicam o seu regresso, mas este continua a ser adiado sucessivamente. “Como quase todos os portugueses vim por dois anos e estou cá desde 1982. Não há ainda uma data para o regresso”, assegura, mostrando grande satisfação por tudo o que Macau  lhe proporcionou ao longo de quase três décadas.