Dos milionários projectos aos pequenos negócios de rua

A presença de um cidadão chinês a vender medicamentos à unidade na rua, entre os milhares de vendedores ambulantes que diariamente circulam em Luanda, é uma boa imagem da profunda e transversal presença chinesa na actual sociedade angolana

 

Desde o vulgar “zungueiro”, palavra que designa os vendedores ambulantes em Angola, até aos gestores de topo das dezenas de empresas chinesas responsáveis pelos milionários projectos ligados à reconstrução do país, todos parecem mover-se com facilidade numa sociedade em acelerada transformação.

A emergência de uma nova Angola é sustentada por um dos mais pujantes crescimentos económicos do mundo nos últimos anos, atrelado ao aumento do preço do barril do petróleo nos mercados internacionais, mas também ao substancial aumento da produção, actualmente a passar a barreira dos 1,9 milhões de barris por dia, que faz deste país, actualmente, o maior produtor africano, superando a Nigéria no início deste ano.

Para lá das grandes empresas chinesas que constroem ferrovias, rodovias, pontes e edifícios estatais um pouco por todo o território angolano, o gigante asiático está também a conquistar um importante espaço na economia de proximidade.

Isto, apesar de a mais importante marca chinesa em Angola ser ainda a de principal financiador do gigantesco plano de reconstrução nacional pensado em 2002, após o fim da guerra civil de três décadas.

Plano este que foi fortemente impulsionado em 2004 com a criação do Gabinete de Reconstrução Nacional (GRN), que centraliza e controla todos os investimentos suportados pela torrente de dinheiro das linhas de crédito abertas pela China para Angola.

 

Chineses conquistam espaço

 

Como contraste, em Luanda e nas principais cidades do país, Benguela, Huambo ou Lubango, já é possível contratar pequenos empresários chineses da construção civil para vulgares obras em casa a preços muito inferiores aos praticados pelos nacionais ou, por exemplo, pelas empresas portuguesas, com presença mais antiga neste sector em Angola.

Desde pequenos negócios de fotocópias, na venda ambulante ou como motoristas de táxi, os cidadãos chineses vão conquistando o seu espaço, não se coibindo de encontrar habitação nos bairros pobres (musseques) que enxameiam a periferia de Luanda devido aos exorbitantes preços praticados no arrendamento de casas na zona urbanizada da capital angolana.

Na génese desta importante presença humana em Angola, cuja dimensão mais visível são os milhares de operários que as grandes empresas chinesas colocaram no país nas centenas de obras em curso, está a decisão tomada pelo governo de Luanda a seguir ao fim da guerra, em 2002, de transformar o país num “canteiro de obras”, expressão usada pela primeira vez em 2004 pelo Presidente angolano, José Eduardo dos Santos.

O “Canteiro de Obras” em que o país está transformado serve para recuperar e reconstruir tudo o que foi desfeito em mais de 30 anos de um destruidor conflito armado, iniciado logo após a independência, em 1975, essencialmente entre os braços militares do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA, no poder) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA, actual maior partido da oposição).

Para custear este processo de reconstrução, Luanda virou-se para o gigante asiático. Conseguiu rapidamente um acordo com Pequim que, através de substanciais linhas de crédito abertas pelo Eximbank, enviou biliões de dólares norte-americanos para Angola.

 

Volume de negócios já supera os 14 mil milhões

 

Segundo números oficiais revelados recentemente em Luanda por um destacado membro do Bureau Político do Partido Comunista Chinês, He Guoqiang, o volume de negócios entre os dois países eleva-se a mais de 14 mil milhões de dólares norte-americanos.

A parte de leão dos financiamentos chineses chegaram através de um acordo em que Angola ofereceu garantias reais com fornecimento de petróleo à China, facto que levou recentemente este país africano ao estatuto de maior fornecedor em “ouro negro” a Pequim, ultrapassando em Abril último a Arábia Saudita, graças a um aumento de 55 por cento nas exportações. Estes dados foram divulgados pelas autoridades chinesas.

Em menos de seis anos, Angola passou a ser o segundo Estado africano com maior volume de trocas com a China, logo a seguir à África do Sul, com, segundo dados oficiais, um volume de negócios de quase cinco mil milhões de dólares norte-americanos por ano.

E a tradução deste entendimento entre Luanda e Pequim é visível em Angola pela miríade de projectos em curso com marca chinesa. Desde as obras de remodelação das principais artérias de Luanda, passando pela construção de imponentes edifícios na capital angolana, até aos gigantescos projectos de reconstrução das vias de caminho de ferro entre Luanda e Malange, e da linha dos Caminhos de Ferro de Benguela, que liga a costa angolana e o interior (Huambo) com continuidade para o vizinho Congo Democrático.

 

Mudança de paradigma no financiamento

 

Como ficou recentemente acordado entre os dois governos, está em curso uma alteração deste paradigma. Enquanto até aqui todos os empréstimos chineses a Angola tinham garantias reais através do petróleo, há dois meses foi assinado um novo acordo de parceria em que Angola passa a conceder à China garantias soberanas, através do seu Orçamento de Estado.

A nova realidade de financiamento, que não extingue a das garantias reais, foi acordada durante uma visita a Angola, em Abril, de Gao Jian, vice-presidente do Banco de Desenvolvimento da China e presidente do Fundo China/África. E foi Gao Jiang que explicou que este novo modelo envolve a “partilha de riscos” e é “complementar aos outros modelos já existentes”.

Pela parte angolana, o ministro-adjunto do primeiro-ministro, Aguinaldo Jaime, fundamentou a mudança, explicando que “vai ser um elemento de complementaridade porque as necessidades de Angola em matéria de reconstrução nacional são infinitas e não podem apenas ser satisfeitas pelos mecanismos existentes”.

Todavia, na sequência de algum secretismo que envolve as negociações Luanda/Pequim, as verbas englobadas neste novo modelo de financiamento não foram reveladas, embora se saiba que os fundos cedidos sob garantias soberanas estejam essencialmente destinados a uma resposta “às grandes necessidades sociais” que Angola enfrenta, como a construção de habitação social e infra-estruturas básicas.

 

Outras fontes de financiamento para a reconstrução

 

Além da introdução deste novo método de financiamento chinês a Angola, Luanda está igualmente de olhos postos nos financiamentos europeus, agora facilitados pelo facto de ter alcançado um acordo com o denominado Clube de Paris, que agrega vários países doadores, através da aceitação do pagamento de uma dívida antiga.

Este passo permitiu já que a Alemanha abrisse uma linha de crédito de mil milhões de dólares e, entre outros, Espanha avançasse com a abertura de uma de cerca de 600 milhões.

Com isto, como afirmou o Ministério das Finanças há alguns meses, Angola pode “parcelar” as fontes de financiamento, o que permite uma maior versatilidade dos investimentos.

É que Luanda recusa a imagem de que as relações com Pequim sejam uma espécie de namoro. “São apenas negócios” porque, segundo o porta-voz do Ministério das Finanças angolano, Bastos de Almeida, as condições que a China ofereceu a Angola foram “favoráveis” e que nenhum outro país se disponibilizou.

Bastos de Almeida anotou ainda que se as condições oferecidas pela China tivessem sido oferecidas por outros países “Angola teria acedido”.

“Não houve nenhuma relação de namoro entre Angola e a China, mas sim de negócios”, defendeu Almeida, que sublinhou ser facto aceite a China procurar abastecer-se de petróleo, elemento fundamental para o seu conhecido crescimento económico, é “porque é mais barato” abastecer-se em Angola que noutros mercados.

 

*Agência Lusa, Luanda

 

Zhao Bin, o precursor

 

Oito anos depois de chegar a Angola, Zhao Bin é um empresário de sucesso. Da construção civil ao mobiliário, passando pelos transportes – a vida sorri a este natural de Pequim, que trabalha 14 horas por dia e apenas vê a família duas vezes por ano

 

Zhao Bin chegou a Luanda em 2000. Faltavam dois anos para que a guerra que assolou Angola durante 27 anos desse lugar à paz, em 2002, e quatro para que a China se transformasse no principal financiador de um dos mais ambiciosos programas de reconstrução nacional num país africano.

É uma espécie de precursor daquilo que viria a ser a vaga de empresas chinesas a instalar-se em Angola para dar corpo às centenas de projectos, desde a construção de hospitais, estradas, pontes… até às mais simples obras caseiras, no quadro da reconstrução nacional pós conflitos armados.

Zhao Bin é hoje, oito anos depois de chegar a Angola, um empresário de sucesso. Lidera e é proprietário de um grupo que integra uma empresa de construção civil, uma fábrica de mobiliário e estruturas metálicas e uma empresa transportadora que faz serviços, por via terrestre, de Luanda para o interior e entre as principais cidades angolanas.

Numa bem disposta conversa, Zhao Bin, admitiu que foram e são grandes as dificuldades que sente em Angola, como são igualmente grandes as dificuldades que a comunidade e as empresas chinesas sentem neste país, a começar pelas diferenças culturais até às barreiras burocráticas, como a dificuldade em obter vistos de trabalho para funcionários.

 

Saudades de casa

 

Trabalha 14 horas por dia sempre que está em Angola porque tem que sair, para descansar, no mínimo duas vezes por ano, para passar um temporada em Pequim, de onde é natural, onde tem a família e onde tem “outros negócios”.

É na sua empresa de construção civil, a Guang De que tem a sua origem como homem de negócios em Angola, tendo começado com dois sócios angolanos mas que dirige sozinho desde 2002.

Esta empresa, de média dimensão, está preparada para projectos, normalmente entre cinco a 10 milhões de dólares norte-americanos. “Mas também fazemos empreitadas mais pequenas”, até 300 mil dólares, “embora – justificou – isso dependa do que se possa ganhar”.

Apesar de admitir que há situações em Angola que “não são nada agradáveis” como as falhas recorrentes de energia e água, e, quando instado a dar exemplos de coisas boas em Angola, depois de uma pequena reflexão, dizer que “não há nenhuma”, Zhao Bin referiu que esta perspectiva pouco animadora da sua vida neste país africano se deve “muito” ao “facto” de que “para os estrangeiros fora do seu país nada existir tão bom como a sua própria terra”.

“Mas, como todos os chineses, eu também senti um forte apelo para sair, para viajar para o estrangeiro”, disse, acrescentando, mais uma vez apesar das dificuldades, que não está a pensar regressar à China.

Zhao Bin diz ter muitos amigos angolanos, mas confessou que é entre os seus conterrâneos que passa o pouco tempo livre, destacando os jantares que as 14 horas de trabalho diário lhe permitem, e as viagens à ilha do Mussulo, a escassos quilómetros de Luanda, de barco, para uma pescaria.

“Nós os chineses estamos bem em todo o lado do mundo”, atirou Zhao Bin quando questionado sobre o porquê da escolha de Angola, lamentando, mais uma vez, a existência de doenças como a malária, que são “preocupações constantes”.

 

Veia para o negócio

 

Aos 36 anos, Zhao Bin, “como todos os chineses”, disse querer “sempre mais”. Fazer “sempre mais” é, alias, o seu azimute de vida, e os negócios são a sua trave mestra. No entanto, há altos e baixos nesta vida que escolheu. Nos últimos anos, por causa do fenómeno da multiplicação das empresas chinesas a operar no mercado, “que fazem concorrência umas às outras”, surgiram “algumas que não conseguem ter lucro” por causa dos “muito baixos preços que se vêem obrigadas a praticar”.

Este empresário chinês anotou ainda que nos oito anos que leva de Luanda “é possível ver como o país está a desenvolver-se vertiginosamente”, dando o exemplo do trânsito que hoje é infernal mas que, quando chegou, “havia muito, mas mesmo muito poucos carros”, mostrando-se ainda admirado com o “fantástico parque automóvel” em Angola, marcadamente composto por viaturas de alta cilindrada.

Zhao Bin admitiu ainda que, “como todos os chineses”, estes oito anos de Angola o estão a transformar e que está a “ganhar hábitos locais”. O empresário apontou a ideia de que em Angola faltam quadros especializados e diz que o governo de Luanda “devia abrir-se mais ao mundo”, facilitando a entrada de empresas para “construir um país de qualidade” e “fazer baixar os preços exorbitantes” que se praticam “em todo o lado”.

Por fim, a eventuais compatriotas interessados no mercado angolano, Zhao Bin aconselha “muita prudência” porque, “mesmo sendo um país com grande crescimento”, o risco “é cada vez maior” pelo facto de as empresas virem para “concorrer com outras que operam nos mesmos sectores”.

 

R.B.