O mandarim da “casa”

Os residentes de Macau conhecem-no como o habitante da chamada “casa do mandarim”, que é um famoso conjunto de edifícios incluído na lista do Património Mundial da UNESCO. Na verdade, Zheng Guanying, que apenas habitou a “casa” durante alguns anos, tem o seu lugar na história da China, como pensador, escritor e filantropo

 

Zheng Guanying foi, acima de tudo, um intelectual e homem de negócios com muito sucesso. Era muito abastado, mas não bastante rico. Poderia ter sido muito mais, no entanto não lhe terá interessado, já que dizia que “para ter felicidade, nada melhor do que fazer boas acções”. E nelas gastava o seu dinheiro.

Também foi espião. Em 1884, durante a guerra sino-francesa foi enviado pelo governo imperial ao Vietname para recolher “informações”. Mas ficou mais conhecido por ser educador e altruísta.

Com maior intensidade no fim da sua vida, fez da filantropia um exemplo. Chegou a ser reconhecido pela corte do imperador e não perdia uma oportunidade para reimprimir as suas histórias e narrativas para ‘fazer’ dinheiro e dar aos pobres.

Hoje, faz parte dos livros que conta a história da China pré-republicana.

Este homem viveu em Macau, onde a família se instalou durante gerações muito antes de ele nascer, e calcorreou bem Xangai, onde conheceu o mundo através dos que entravam no seu porto. É conhecido em Macau como “o Mandarim”, no entanto, estudos ao seu legado demonstram ser um homem de vários nomes, entre eles, e o mais popular – Zheng Guaying.

Também escreveu poesia e algum outro romance. Mas para já a história sublinha-lhe uma única obra, que resume o chamado capitalismo nacional chinês: “Advertências em Tempo de Prosperidade”.

Este livro terá sido um dos best-sellers da sua época. Foi editado pela primeira vez nos anos da década de1890. Depois disso, reproduzido aos milhares por ordem imperial. Serviu de livro de bolso aos altos quadros da corte, então dominada pela imperatriz-regente Cinxi, tia de Guangxu, o imperador. Fora para ‘ajudar’ a corte a sobreviver que Zheng trabalhara.

O livro também terá acompanhado Mao Tse Tung no campo e indicado ao timoneiro o caminho para a cidade, que o levou para a revolução. Acredita-se que Mao terá dito ao pai que ia deixar o campo depois de ter lido Advertências em Tempo de Prosperidade. Ironia do destino, são os comunistas que votam Zheng às catacumbas da história.

No Ano Novo Chinês de 1915, quando regressava a casa depois de ter frequentado a Primeira Escola Normal da Província de Hunan, em Changsha, Mao escreveu uma nota de resposta ao primo Mao Yongchang, à qual juntou livros que este lhe emprestara.

Na nota, Mao pedia desculpa por devolver um dos livros com a capa e algumas páginas danificadas. “Sinal em como leu muito a obra”, garante Lilian Chan, especialista do Museu de Macau no legado do mandarim – esse livro era a sua obra prima.

“Advertências” foi alvo da pirataria intelectual na sua época, já que era reeditado vezes sem conta e sem o conhecimento do autor. Algumas dessas reedições chegaram a alterar o conteúdo da obra.

 

Com o destino marcado

 

Zheng Guanying nasceu numa altura em que a dinastia Qing desconhecia que vivia as últimas décadas no trono.

Eram tempos em que a China, cobiçada, dava sinais de esgotamento. As guerras do ópio, o confronto com os ocidentais e a guerra contra os japoneses, assim como as múltiplas rebeliões internas, colocaram a nação de joelhos.

Zheng Guanying surgiu no lugar certo. Se não tivesse nascido em Zhongshan, na província de Guangdong, bem no Sul do império, muito perto de Cantão, num ponto de contacto com estrangeiros e de intercâmbio de culturas, provavelmente não teria tido a importância que acabou por ter.

Zhongshan era terra de muita gente e cultura. Por lá andavam os “diabos” estrangeiros – especialmente os portugueses e os ingleses. Foi assim que o pequeno Guangying conheceu a linguagem de vida desses homens brancos, especialmente em Macau, onde a sua família se instalara havia gerações, e onde acabou por se retirar e, durante cinco anos, alinhavar a obra que lhe ditou a fama.

O seu nome de nascimento aparece como Zheng Zhang Ying, segundo de nove irmãos. Mas também usou os pseudónimos Taozhai e Luofu Zhi He Shan Ren (Eremita de Luofu Criados de Grous).

Por capricho do acaso, até ao fim do século XIX, Zhongshan viu nascer “quase todos” os agentes chineses das empresas estrangeiras na China.

Além de berço de Guanying, o distrito foi também a terra do pai da República Chinesa, Sun Iat Sen e de outros memoráveis pioneiros capitalistas.

 

Ausência notável

 

“Zheng Ganying não é uma figura conhecida em Macau, nem o é no Continente. Só começou a ser estudado no início dos anos 80 so século passado . Até lá, ninguém falava nele, no entanto, ele é um dos teóricos do chamado capitalismo nacional!”, indica Wu Zhiliang, historiador de Macau.

Uma das razões para a ignorância sobre Guanying deve-se, de acordo com o professor Wu, que conversa em fluente português, ao contexto político: “Depois da fundação da Nova China, em 1949, o capitalismo passou a ser odiado. Por isso Zheng Guanying ‘caiu’ como figura histórica. Só depois da reforma e abertura é que ‘todos’ se lembraram dele”.

Zheng Guanying foi um negociante e intelectual esclarecido. Acredita-se que era fluente em inglês. Para Lilian Chan, curadora do Museu de Macau, para além de especialista no espólio literário e vida de Zheng Guanying, “o mandarim não teve a educação institucional atribuída aos que queriam seguir uma carreira na corte. Aliás, falhou o exame de admissão imperial [jinshi], mas teve uma educação básica e ao longo da vida não deixou de estudar. O seu pai era tutor, possivelmente instruiu o filho antes deste ir para Xangai, aos 16 anos viver com um tio”.

A ida para Xangai deveu-se precisamente ao “chumbo” no exame de admissão: “Em Xangai, Zheng Guanying tornou-se aprendiz de um comerciante local muito famoso e por lá ficou, de forma intercalada, até morrer”, acrescenta.

A investigadora recordou que o jovem Guanying chegou a frequentar a Escola Ying Wa à noite, onde terá aprendido inglês antes de o aperfeiçoar com os estrangeiros.

Aliás, o percurso profissional de Zheng é, no mínimo, complexo: além de comprador, em simultâneo negociava em chá e sal e mantinha interesses na “Companhia Mercantil de Navegação a Vapor”, da qual acabou por ser director-geral.

 

Movimento do auto-reforço

 

Zheng Guanying sonhava em reunir o melhor dos ‘dois mundos’ para tirar a China da letargia. Para isso, propunha buscar ao modelo político, educativo, comercial e ainda a alguns aspectos da vida social do Ocidente o que mais útil seria à China e adaptar esses elementos à sociedade confucionista.

Nesse aspecto, Lilian Chan indica, “o mandarim era um democrata ao seu estilo, adepto do liberalismo. Pretendeu defender a criação de um parlamento na China e de uma monarquia constitucional”.

Zheng Guanying não queria uma aculturação – nem o seu patriotismo é alguma vez posto em causa. Tratava-se de tornar o país parte activa da comunidade internacional, já que o isolamento intencional tinha sido forçado ao fim. Tornou-se por isso num dos membros do movimento de auto-reforço, na década de 1860. Os seus membros pretendiam reformar a nação e ‘salvar’ a dinastia Qing das rebeliões internas e dos ‘estrangeiros’. O seu fim aconteceu em 1895,

Ainda segundo Lilian Chan: “Todo o seu trabalho intelectual andava à volta das soluções para os problemas que considerava existirem. Era, por exemplo, contra o jogo, que considerava uma actividade imoral, ‘o mais baixo nível da sociedade’”.

No seio do movimento de auto-reforço, havia um lema que dizia: “Aprender as técnicas superiores dos bárbaros para controlar os bárbaros” – era a facção defensora da manufactura de material para bélico de forma a equiparar a China às forças invasoras.

Outra facção, a que Zheng pertencia, defendia um lema universalista – modernizar a todos os níveis, especialmente na educação e no governo.

Um dos líderes mais importantes deste movimento foi Li Honghang, ministro importante da corte, homem cultivado e altamente ocidentalizado.

 

Amigos influentes

 

Devido aos sucessivos cargos empresariais e oficiais, o mandarim foi acumulando uma lista impressionante de contactos privilegiados ao mais alto nível.

Como prova a correspondência de Zheng Guaying com personalidades de topo da corte, Sun Iat Sen, empresários fundadores das maiores empresas de então na China e o próprio ministro Li Honghang.

Existiu um contacto assíduo entre Zheng e Sun Iat Sen, senão mesmo uma amizade, apesar dos 12 anos de diferença que os separava, sendo Zheng mais velho. Esta garantia foi dada por Guo Zhanli, investigador taiwanês e especialista no legado do pai da República Chinesa.

Foi na Ocean University, na cidade de Kiilong, em Taiwan, que o professor Guo Zhanli recebeu a Revista Macau: “Ambos eram patriotas e tinham uma fortíssima relação com Macau. Unia-os a vontade de mudar a China e tinham interesses comuns. A política era o ponto mais forte, mas também houve troca de ideias sobre a Medicina Tradicional Chinesa e a Medicina Ocidental, área em que Sun Iat Sen se formou”.

O professor Zhanli publicou um livro em 1995 sobre Sun Iat Sen. Algumas páginas são dedicadas ao mandarim: “Enquanto estudou em Hong Kong e já depois, em Macau, Sun comunicava-se com Zheng sempre que este parava em Macau. Respeitava-o muito, ainda por cima eram conterrâneos”.

De acordo com o docente, o mandarim chegou mesmo a escrever uma missiva ao ministro Li Honghang, de forma a potenciar um eventual contacto entre Sun Iat Sen e o governante.

O mandarim queria um governo diferente, mas não advogava a queda do império Qing. Sun Iat Sen sonhava com uma república “à americana”, dada a sua grande admiração pelo presidente norte-americano Abraham Lincoln. E aproveitando as ideias do mandarim, ajudou a empurrar o império para o abismo.

 

Macau como pano de fundo

 

Para o historiador Wu Zhiliang, não há dúvida que Zheng Guaying “apenas foi conhecido por uma obra, mas do seu espólio está muita coisa por organizar e grande parte do material ainda está em Xangai”. E acrescenta: “Nessa única obra resumem-se as correntes de pensamento da altura em que o mandarim viveu”.

Cerca de 170 mil documentos sobre o mandarim encontram-se no arquivo de Sheng Xuan Kuai na Biblioteca de Xangai. Existe um acordo entre o Governo de Macau e a instituição de Xangai para a classificação e estudo do espólio do intelectual. Nenhuma tradução para português da sua obra está prevista.

As ideias para o livro foram amadurecidas em Macau, durante cinco anos consecutivos, a partir de 1885. Tinha Zheng 43 anos. Nessa altura já o mandarim tinha comprado uma casa para a sua família. A moradia foi sucessivamente ampliada. Localizada na Travessa de António da Silva, é hoje Património da Humanidade. O Governo de Macau está a restaurar o espaço, bastante diferente do que era dezenas de anos antes.

O historiador Zhiliang  sublinha em jeito de conclusão: “Macau deu-lhe tranquilidade, mas não houve reflexo dos seus escritos por cá. O território foi apenas um abrigo e local de repouso. Aqui gozava de um estatuto diferente, tinha liberdade, podia dizer o que queria, apenas isso. Quando acabou a edição do livro, publicou-o em Xangai”.

 

Conteúdo de Advertências em Tempo de Prosperidade

 

“Fazer o máximo possível para um bom aproveitamento dos talentos ao serviço do país, das terras para a agricultura e da circulação dos produtos para tornar a indústria e o comercio prósperos” – Este extracto da obra de Zheng foi aproveitada por Sun Iat Sen na Carta das dez mil palavras endereçadas a Li Hongzhang. Sun Iat Sen dirigiu-se a Tianjin para entregar a carta ao governante, que não a aceitou, tendo-o recebido.

Num outro extracto, Zheng Guanying indica que “[…] para resistir à agressão estrangeira devemos procurar progredir, para progredir, em primeiro lugar, temos de adquirir riqueza; para adquirir riqueza, a primeira coisa a fazer é tornar próspera a indústria e o comércio; para tornar próspera a indústria e o comércio devemos optimizar as instituições educacionais, instituir uma Constituição, valorizar a ética e melhorar e reformar a política”.

Num outro momento, o autor escreve: “Estabelecer indústrias, promover actividades comerciais e desenvolver o sector da economia, instituir um parlamento e uma monarquia constitucional na política e criar escolas para formar novos talentos”

Sobre a educação, o mandarim indica: “A formação de recursos humanos dos países ocidentais resulta do concurso de três elementos: os estabelecimentos de ensino, os jornais e as bibliotecas”.

 

Obra de Zheng Guanying

 

Do espólio do mandarim faz também parte Palavras de Mudança, Chaves para Salvar a Nação da Crise Actual, com 36 capítulos, publicada em 1880.

Mas o que mais escreveu foram novelas e poemas. Zheng acreditava, garante Lilian Chan, na “justiça divina e eventuais recompensas”. Como legado para gerações futuras, deixou uma compilação de pequenas narrativas a que chamou Testemunhos e Recompensas, e que acabaram por ser os Registos de Recompensas de Tao Zhai.

Para ajudar a recolher donativos para fins caritativos, o mandarim publicou várias obras: Fontes de Riqueza, obra que mais tarde passou a ser Caridade e Recompensa; Atalhos para a Imortalidade; Dez Caminhos para Poupar; Levantamento das Regiões Calamitosas e Um Livro de Situações Comuns.

Esta obra ‘humanitária’ pretendia educar o leitor, segundo Zheng: “Para ter felicidade, nada melhor do que fazer boas acções; para fazer boas acções, nada melhor do que salvar pessoas, para salvar muitas pessoas em necessidade, nada melhor do que as livrar da fome”. Estes trabalhos, em momento de necessidade, eram reeditados e o produto da venda doado.

O autor também foi profícuo em poesia, não traduzida para português. A sua obra poética é considerada a versão em verso de Advertências em Tempo de Prosperidade.

Para Zheng, “coleccionar livros para satisfazer as necessidades dos leitores é uma contribuição meritória”, nesse sentido, “a China devia generalizar a criação de bibliotecas, à semelhança dos países ocidentais”.

A publicação de Advertências e Tempos de Prosperidade aconteceu em 1894, em cinco volumes com 56 capítulos. O seu prefácio foi terminado no Eremitério de Vida Fácil em Cantão, em Abril de 1892.

Um ano depois, Zheng acrescentou-lhe um capítulo e três apêndices. Na mesma altura, redigiu uma versão sucinta de Advertências para apresentar ao imperador Guangxu. Um resumo que aumentou os capítulos da obra. De 56 passou a ter 58 capítulos.

Zongli Yamen, responsável pelo Gabinete para as Relações Eternas do Império da China indicou, em carta ao mandarim: “Agradeço-lhe as quatro cópias enviadas de Advertências em Tempo de Prosperidade, da qual fiz uma leitura atenciosa e fiquei muitíssimo admirado e impressionado pela sua obra […] planeio compartilhar a sua obra com os altos oficiais. Portanto, venho pedir-lhe que me mande mais vinte cópias para que estas pessoas também possam alargar os seus horizontes mentais”.

Meses depois, em Abril, um outro alto quadro da corte escrevia a Zheng: “Em seu nome apresentei a sua obra ao imperador, com algumas revisões”. Quinhentos livros chegaram à corte, e “esgotaram-se em pouco tempo e ainda há muita procura”, concluía a missiva.

Em Junho Zheng recebia outra carta: “Graças à ordem do imperador ao seu gabinete-geral, dois mil exemplares de Advertências em Tempo de Prosperidade foram impressos e dados aos oficiais do governo para leitura. Se servirem de inspiração e eventualmente provocar uma mudança da situação, o seu mérito será realmente enorme e significativo”.

No final do mesmo ano, 1895, o mandarim revê Palavras de Mudança passando a chamar à obra Continuação de Advertências em Tempo de Prosperidade. Um dos apêndices, Sobre os Conhecimentos Estrangeiros, ao capítulo Exames Eternos, integra a obra principal, passando a ser o capítulo 37. Entre as reflexões está um texto sobre O Pensamento Democrático do Europeu.

Advertências em Tempo de Prosperidade vai crescendo à medida que o mandarim vai testemunhando novos acontecimentos e em 1896, devido à guerra sino-japonesa, escreve o que considera faltar a Advertências, acrescentando-lhe outros 45 capítulos. Passa a ser o Livro Suplementar às Advertências em Tempo de Prosperidade.

As mudanças não ficam por aqui. No final de 1897, em Dezembro, Zheng concluiu que dois capítulos novos que entretanto escrevera: O Parlamento e O Caminho Ferroviário deveriam integrar a sua obra maior, então decide juntar o livro suplementar, os dois capítulos novos e a obra original, transformando o conjunto na Edição Nova e Ampliada das Advertências em Tempo de Prosperidade. Estamos a lidar com 14 volumes e 104 capítulos.

“Para os oficiais a obra pode ser usada como um guia para apoiar o imperador a governar o país, e para os cidadãos, a obra pode ser usada como uma referência para formar talentos”, comentava Zhang Zhi Dong, alto funcionário, a propósito da obra.

Já em 1990 o autor decidiu por uma nova revisão à Edição Nova e Ampliada das Advertências em Tempo de Prosperidade. Eliminou um artigo, acrescentou outros sete. Uma versão nova foi publicada em oito volumes com 110 capítulos. E assim ficou.