Para onde correm os cães

“Eles nascem para correr, não sabem fazer mais nada e não se habituam a estar dentro de um apartamento, como animal de estimação...”

 

Os homens vão chegando ao pequeno picadeiro, trazendo magros galgos pela trela. Na vedação, inclinam-se grupos entusiastas ou jogadores solitários para observarem de  perto os cães que entrarão na próxima corrida. Os turistas, que vieram do interior do País para visitar Macau, nem sabem bem o que procurar, o que estudar. É a primeira vez que vêem as corridas. Mas os habitués, que ali estão nas quatro noites por semana em que há corridas no Canídromo de Macau, procuram o olhar saudável, observam a postura e o andar. Aquele está mais espevitado, puxa a trela, é bom sinal. O outro parece nervoso, alegre, mas pode simplesmente estar feliz.

Não se quer um cão demasiado brincalhão. Esses podem tentar abalroar os outros na corrida, ou fazerem corta-mato para chegar à lebre mais rápido. Qualquer uma das traquinices é penalizada e quem joga a dinheiro é pouco compreensivo.

Há quem diga também que os cães pretos são os melhores e neles apostem sempre, nem que sejam só as dez pataquitas, o valor mais baixo admissível. Mas neste jogo, ser machos ou fêmea é indiferente. Ambos atingem velocidades que chegam aos 60 quilómetros por hora, uma rapidez idêntica à dos cavalos de corrida. Os cavalos são maiores, mas são mais pesados, para além de terem a coluna mais rígida do que o galgo.

O som do metal da corrente contra o metal que sustenta a lebre, começa a soar. Os animais estão nervosos dentro dos casinhotos minúsculos. Ladram, latem. Já ouvem de longe a lebre a correr, e qual reflexo de Pavlov não é preciso muito para ver a fila de jaulas fechadas a abanar, pedindo soltura e velocidade. Passa a lebre. Abrem-se as portas.

O grupo de turistas grita “força!”. De cigarro na mão, agarram-se à vedação como se o gesto pudesse levar o cão a correr mais. A corrida é de 550 jardas, ou seja 502,92 metros. De corpete colorido sobre o corpo, o número a identificar, os cães correm de açaime na boca atrás de uma lebre de peluche. Passada a meta, os funcionários do canídromo fecham a pista com a ajuda de oleados que confinam os cães. Mas estes, excitados com a adrenalina, continuam a saltar e a brincar uns com os outros. O grupo de turistas apostou no número certo. Riem e dizem que só jogaram 60 patacas e ganharam mais de 200. Gostam do cão.

Ao seu lado, impassível, está um velho de traços carregados, olhando o jornal de lápis na mão. Ninguém adivinha se o homem ganhou ou não. “Estas são pessoas que vêm cá todas as noites de corridas. Chegam na primeira corrida, às sete e meia e só saem daqui às 11h45, quando a última corrida termina. É um hábito, uma companhia para eles”, diz Sails Si, o porta-voz do Canídromo.

 

Três anos de vida

 

O Canídromo de Macau é muito mais antigo que o hipódromo, tendo aberto as portas em 1931. Nessa altura estava sempre cheio de apostadores, ávidos de fortunas. Hoje, as bancadas estão a meio gás, mas Sails garante que o desporto não vai terminar. “Temos sempre cá gente, e há muitos turistas que querem vir cá jogar quando vêm a Macau. Existem corridas de galgos na Austrália, Inglaterra e Estados Unidos, mas as nossas são as mais conhecidas”. De facto, as corridas não dão sinais de estagnação já que, segundo a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, o Canídromo teve uma receita bruta de 98 milhões de patacas em 2007, enquanto em 2003, estes valores estavam nos 74 milhões. Apesar de gerar menos dinheiro do que as corridas de cavalos, as competições de galgos têm uma evolução positiva no montante apostado. Se em 2003 foi de 328 milhões de patacas, em 2007 já chegou aos 459 milhões. E esta é razão suficiente para largar a lebre. E para trazer todas as semanas novos cães ao canídromo de Macau.

“O Canídromo é responsável por escolher os cães na Austrália e trazê-los para Macau. Ficam uma semana ou duas a habituar-se ao clima e ao espaço novo, e depois fazem-se corridas para ver os seus tempos recorde. Todas as semanas há leilões para os novos cães. O melhor cão começa com uma base de licitação de 23 mil e o pior de dez mil”, explica Sails, acrescentando que já viu um cão ser vendido por 58 mil patacas. “Os compradores são de Macau, Hong Kong, mas também do interior da China. E há vários proprietários que têm mais do que um cão”.

Neste momento existem mais de 600 galgos no Canídromo de Macau. E tal como os cavalos, só correm de dez em dez dias. “Por duas razões. Em primeiro lugar, porque não queremos que fiquem lesionados e as corridas são muito agressivas, não podem ser feitas umas a seguir às outras. Por outro lado, como todos os cães têm de correr, se um correr hoje, só voltará a entrar numa corrida quando todos os outros tiverem corrido”. Tal como os cavalos, uma vida santa.

Cada um tem a sua própria jaula, inserida num canil, da responsabilidade de um treinador, escolhido pelo proprietário do animal. Os seus dias começam às sete e meia da manhã, quando iniciam o programa individual que o treinador preparou para cada um, consoante as suas necessidades. “O treino não tem de ser correr. Podem só passear, nadar na piscina do canídromo, relaxar os músculos. Os que precisam de massagens estão na fila de massagens. Se estiverem lesionados, vão à fisioterapia, onde levam raios ultravioleta ou massagens”. E nem na ração há meias medidas. A dieta passa por ovo, carne, leite e ração especial. “Não me parece que lhes falte carinho. Os treinadores gostam deles, provavelmente não como se fossem seus animais de estimação, porque têm muitos cães a seu cargo. Temos 11 treinadores e dez canis”. Em média, cada responsável terá a seu cargo 54 cães.

A verdade é que, mesmo Sails que só trabalha no canídromo há dois anos e já sorri com as traquinices dos cães, não se pode dar ao luxo de se afeiçoar demasiado aos animais. A carreira dos bichos começa aos dois anos e termina aos cinco. “Eles nascem para correr, não sabem fazer mais nada e não se habituam a estar dentro de um apartamento, como animal de estimação. Por outro lado, estão autorizados a virem para Macau para correrem no canídromo e só para esse fim”.

Uma existência abençoada, que acaba antes de tempo, já que a esperança de vida dos galgos é de 12 anos.

 

M. C.

 

Da Austrália, por amor

 

O australiano não quer identificar-se. Mas o sotaque acentuado trai-lhe as origens. É de Darwin e na sua primeira visita a Macau, não pôde deixar de vir apostar nas corridas de galgos. “Eu treino cães de corrida na Austrália e são animais de estimação fantásticos. Aliás, nós temos um programa de adopção, em Victoria, de cães de corrida e são adoptados três mil animais por ano”. O australiano é o exemplo vivo do que um galgo pode ser. “Amigáveis, carinhosos, extrovertidos e óptimos com crianças. Eu tenho dois e os outros vou comprando quando ainda são bebés e treino-os três horas por dia, a partir dos 16 meses”.  O apostador, que ainda conseguiu ganhar algum dinheiro jogando no canídromo, acrescenta que estes cães podem entrar em corridas a partir dos 18 meses. “Eles adoram isto”. E o dono também, já que o faz mais como hobby. “Eu trabalho para o governo e treino os cães antes de sair casa de manhã e quando regresso, ao final do dia”.

 

M. C.