Uma questão de tempo

  Seria curioso estudar o fenómeno dos almanaques chineses publicados anualmente no Sul da China. Um deles é, digamos assim, o autêntico, o Tong Shu (mais conhecido como Tong Shing), que tem algumas versões diferentes, mas todas elas reproduzem basicamente o mesmo conteúdo. Uma das componentes do Tong Shu são informações de carácter prático, à […]

 

Seria curioso estudar o fenómeno dos almanaques chineses publicados anualmente no Sul da China. Um deles é, digamos assim, o autêntico, o Tong Shu (mais conhecido como Tong Shing), que tem algumas versões diferentes, mas todas elas reproduzem basicamente o mesmo conteúdo.

Uma das componentes do Tong Shu são informações de carácter prático, à semelhança do que acontece com os almanaques publicados em quase todo o mundo. A outra componente, que é a parte essencial do livro, diz respeito a indicações astrológicas referentes ao período de um ano.

Ao tentarem perceber o universo e, mais concretamente, o chamado mundo sublunar (que é o que se situa imediatamente abaixo da esfera de rotação da Lua, no esquema cosmológico geocêntrico), os antigos filósofos gregos, preocuparam-se sobretudo com a composição elementar de tudo o que existe. Daí terem chegado, após séculos de reflexão, aos quatro elementos (O Fogo, o Ar, a Água e a Terra) e às quatro qualidades primordiais (o frio, o quente, o seco e o húmido) de Platão e Aristóteles. Apesar de ter havido ensaios, nomeadamente entre os filósofos pré-socráticos, sobre uma possível ordem de sucessão e de transformação dos elementos uns nos outros, o que acabou por prevalecer foi o conceito dos elementos enquanto componentes essenciais e indivisíveis da matéria. A título de exemplo, a preocupação de Hipócrates, um dos fundadores da medicina ocidental, com os efeitos das quatro estações sobre os indivíduos não teve continuidade.

O espírito grego clássico, que ainda hoje domina a ciência e a filosofia no Ocidente, privilegia a função activa da inteligência, que, para compreender a realidade, decompõe-na segundo critérios criados pela própria inteligência.

Na filosofia tradicional chinesa, pelo contrário, a inteligência procura observar a realidade em toda a sua integridade, como os actuais sinólogos têm demonstrado.

Assim, os filósofos chineses, observadores argutos da realidade, preferiram que esta se revelasse por si própria sem tentarem impor-lhe critérios. Observando uma montanha, constataram o seu lado escuro e o seu lado soalheiro. É o yin e o yang, o começo de tudo. Ao mesmo tempo, a realidade transforma-se ciclicamente ao ritmo das quatro estações. Por isso, estas constituem um paradigma do processo da transformação. O ritmo sazonal não pode ser ignorado pelo Homem, sob pena de se cometerem erros. E aqui a filosofia chinesa e a Bíblia encontram-se: “Todas as coisas têm o seu tempo, e tudo o que existe debaixo dos céus tem a sua hora”.

Foi devido a esta preocupação com a descoberta dos tempos certos para as acções que os Chineses desenvolveram diversos sistemas para a descoberta dos “tempos auspiciosos” para os diversos tipos de actividade. A multiplicidade desses sistemas foi tal que o imperador Qian Long (1736-1795) encarregou um grupo de sábios de organizarem um sistema unificado, que é o que ainda hoje é seguido no Tong Shu. Apesar da natural tentação de se ver o almanaque chinês como uma mera crença popular, ele é, na verdade, sustentado por todo um trabalho de reflexão filosófica e de compreensão da realidade.

Os Chineses preocuparam-se mais com a harmonização das suas próprias acções com os ritmos naturais. Preferiram olhar a realidade tal como ela é (ou melhor, tal como ela própria se apresenta), sem tentar decompô-la. Ao passo que no Ocidente primeiro estabeleceram-se os princípios metafísicos e, num segundo passo, procurou-se analisar a realidade à luz desses mesmos princípios.

O Tong Shu ainda goza de um merecido prestígio e tem o seu lugar garantido num pedestal próprio. É insubstituível e, por isso, continua a ser reeditado anualmente.

Paralelamente, têm vindo a surgir nas últimas décadas, em número crescente, versões mais populares do Tong Shu, em que o conteúdo principal são as previsões para os 12 signos, à semelhança do que se faz no Ocidente com os 12 signos da astrologia ocidental. Diga-se de passagem que os 12 signos astrológicos não são mencionados no Tong Shu, que apenas se refere aos 12 ramos terrestres (cada ramo terrestre corresponde a um signo).

O tempo é pois uma preocupação central da tradição chinesa. Mas o espaço tem o seu lugar próprio, e igualmente desenvolvido, noutra tradição, o feng shui, que nos dias de hoje conhece no Ocidente uma divulgação sem precedente.

Ao contrário do que muitos (incluindo chineses) pensam, o ano astrológico chinês não começa no dia da festividade do ano novo lunar. É que os astrólogos não seguem o calendário lunar, baseado nas lunações, mas sim um calendário solar, o Calendário do Agricultor, que se diz ter sido criado na longínqua dinastia Xia. Segundo esse calendário, o ano começa no dia 4 de Fevereiro, dia do Li Chun (isto é, do estabelecimento da Primavera). Nesse mesmo dia começa o mês do Tigre.

O ano que começa a 4 de Fevereiro de 2009 é definido pelo caule celeste ji (que corresponde ao elemento Terra na modalidade yin) e pelo ramo terrestre chou (que corresponde ao signo do Búfalo, que, por natureza, também pertence ao elemento Terra). Trata-se pois de um ano jichou, do signo do Búfalo e do elemento Terra.