E tudo o jogo mudou

Quando, em 2002, o Governo avançou para a liberalização do jogo poucos conseguiram prever a rapidez das mudanças que aconteceram em apenas alguns anos. As feições da cidade transformaram-se de um dia para o outro e o próprio modo de viver Macau nunca mais foi o mesmo

 

O relógio indicava o fim de mais um dia de trabalho. Atirava uns papéis para dentro da mala e rumava para um qualquer café onde aproveitava a última luz do dia para estar na amena cavaqueira com os amigos. Sem pressas, sem stress e com muito gosto. As lembranças deste ritual e do que era o pacato ritmo de vida em Macau ainda povoam a memória de Luís Machado. Não apenas no período da administração portuguesa, mas também nos primeiros anos de vida da agora região administrativa especial da República Popular da China.

Porém, as alterações que já se anunciavam não se fizeram esperar. Em 2004 (dois anos após a liberalização do sector do jogo), Macau já não era uma aldeia, mas a forma como as pessoas viviam a cidade ainda era bastante semelhante à de uma pequena povoação – conta o economista Luís Machado, natural de Macau, que lembra a comparação que sempre foi feita com Hong Kong, de onde as pessoas fugiam para procurar a calma da RAEM.

Apesar de as alterações ao quotidiano citadino já serem esperadas, a verdade é que ninguém previa que o dia-a-dia de Macau fosse mudar de forma tão rápida. Atrelada ao desenvolvimento do sector do jogo – que hoje em dia é uma verdadeira indústria, como o Chefe do Executivo descreveu recentemente –, a nova estrutura social veio para ficar, marcando uma nova fase na evolução de Macau e transfigurando as próprias feições da cidade.

 

A passo acelerado

 

Nem sequer é preciso residir no território há uma dezena de anos para perceber que as características da cidade mudaram significativamente. Hoje em dia o céu é rasgado pelos altos edifícios, que antes não passavam das duas dezenas de andares. Primeiro começaram as concessionárias do jogo, desde 2002, e logo seguiram os grandes edifícios de habitação – muitos cognominados pelos próprios empreiteiros como de habitação de luxo, a pensar nos novos residentes.

Exemplos, no universo das mesas e das slot-machines não faltam: o Sands foi o primeiro casino a ganhar forma na nova era fora dos quarenta anos do monopólio da Sociedade de Jogos de Macau de Stanley Ho. Seguiu-se o StarWorld, o Wynn, o MGM – todos no NAPE –, e o Crown (agora Altira) na Taipa. Entretanto surgiram outros projectos paralelos, como a Doca dos Pescadores – um parque temático onde não falta um espaço de jogo. A resposta de Stanley Ho não se fez esperar e pouco tardou para no meio da cidade nascer o Grand Lisboa (ver segundo texto), o maior edifício da península à excepção da Torre de Macau.

 

Expansão do lado de lá

 

Mas os tentáculos do jogo não se ficaram por aqui, porque havia os novos aterros no Cotai. O que antes era mar é hoje um enorme terreno que liga as ilhas da Taipa e de Coloane. O velho istmo com uma faixa em cada sentido deu lugar a duas ligações cada qual com três faixas em ambos os sentidos. O local perdeu a mística de outrora – era uma aventura atravessar o istmo, nos dias de chuva e tufão –, mas ganhou uma renovada funcionalidade e vitalidade, especialmente após a construção do Venetian Macau e do City of Dreams, dois mega-empreendimentos que aliam hotéis a espaços de jogo, espectáculo e comércio. O Macau Dome (nave desportiva), que em tempos foi a única construção de grande envergadura no Cotai, perdeu visibilidade para os néons da cidade dos sonhos e para a cópia de Veneza retocada com as suas praças e gôndolas em canais que cursam o centro comercial.

“Já nada é o que era”, lamenta Luís Machado, embora renegue o tradicional saudosismo “que se teima em ligar aos portugueses”. “É claro que tenho algumas saudades mas nunca fui adepto do saudosismo; o certo é que ninguém pode ficar indiferente às mudanças da nossa cidade”, confessa.

Nos dias que correm é normal olhar para a cidade e reparar que os novos ícones são os grandes edifícios. A traça da cidade converteu-se à altura das novas construções e o jogo acarretou mesmo mudanças ao dia-a-dia das pessoas que aqui vivem. Os tempos são hoje efectivamente outros. O sector do jogo, para o bem e para o mal, tem sido a pedra de toque do desenvolvimento de Macau, e nada nem ninguém ficou alheio a esta nova realidade.

 

Das árvores aos casinos

 

Idos vão os tempos em que o jogo se fazia à sombra das árvores ou no barco a caminho da Taipa e Coloane. “Bastavam vinte minutos – percurso até à Ilha da Taipa – para se jogar três ou quatro mãos do jogo das 13 cartas, o Sap Sam Cheong”, recorda Machado. Mais tarde o jogo passou a estar concentrado no Hotel Central, e anos depois, sob a batuta de Stanley Ho, no Hotel Estoril. Foi na década de 60 que se começou a abandonar a tradição e se avançou para um modelo mais próximo do actual – com a introdução das máquinas, que levavam a “autênticas romarias” ao fim-de-semana. Não apenas para o jogo, “mas também para o chá dançante e para apreciar a música ao vivo”, diz Luís Machado.

Já nos anos 70 surgiu aquele que muitos consideram um dos principais símbolos do território – o hotel-casino Lisboa, que é um marco de arquitectura nos espaços de jogo em Macau, muito provavelmente ainda o mais emblemático da cidade.

Os tempos eram outros, lembra Luís Machado, tanto os mais novos se divertiam “no bowling ou nos flippers”, como os adultos se entretinham “no jogo, nos restaurantes e até nos espectáculos de fado”.

 

A pensar nos turistas

 

O jogo não é mais encarado como uma simples forma de entretenimento e está mais direccionado para quem vem de fora. A cidade mudou e procura cada vez mais atrair visitantes. O jogo é precisamente um dos chamarizes mais eficazes. “É bem mais provável que mais pessoas visitem o Venetian do que as Ruínas de São Paulo”, comenta Luís Machado.

Os autocarros das concessionárias – que parecem aumentar de dia para dia – funcionam como uma autêntica alternativa aos transportes públicos. É normal ver as pessoas tirarem partido destes autocarros para fazerem os percursos entre o Terminal Marítimo do Porto Exterior ou as Portas do Cerco e o centro de Macau ou a Taipa. O jogo é a indústria que mais pessoas emprega entre a população residente e que mais puxou pelo crescimento real dos salários. Significa isto melhoria na qualidade de vida? “Em parte”, replica Machado. A resposta é muito mais complexa, admite. Se a qualidade de vida fosse apenas o reflexo do dinheiro que entra no orçamento familiar ou o resultado do crescimento das receitas públicas e consequentes subsídios e isenções fiscais dados pelo Governo, a resposta seria um rápido “sim”.

Só que há outros factores nesta equação. “As autoridades parece que descuraram um pouco o bem-estar da população, devido à febre do jogo que impulsionou o desenvolvimento de Macau”, afirma Luís Machado. Faltam então infra-estruturas e espaços que permitam à população levar um estilo de vida semelhante ao que tinham no passado. Agora há muitos turistas e a cidade ainda não está preparada para absorver tanta gente. “Já nem sequer há espaço para nos sentarmos no Largo do Senado”, refere.

Aos poucos Macau continua a mudar, e Luís Machado acredita que para melhor. Difícil é prever como será o futuro, especialmente se se tiver em conta que o Cotai ainda está a ser desenvolvido e que em poucos anos o metro ligeiro já será uma realidade. A isto junta-se ainda a ponte que vai ligar a RAEM a Hong Kong e Zhuhai. Ou seja, os próximos cinco anos serão essenciais para o redesenhar da cidade, mas desta feita com a experiência recolhida nos primeiros dez anos da RAEM.

 

Hotel Lisboa: o velho e o novo

 

Desde a liberalização do sector do jogo que os casinos têm aparecido associados a grandes empreendimentos integrados, que enchem o olho a quem passa por Macau. Para além dos mega-projectos no Cotai – onde o destaque continua a ir para o Venetian, o maior casino do mundo –, também a península experimentou as dores de crescimento da indústria do jogo. O Sands, o StarWorld, o Wynn, o MGM, e mais recentemente Le Royal Arc, parecem até ter ameaçado o simbolismo do Hotel Lisboa, a menina dos olhos de Stanley Ho.

O magnata viu-se portanto forçado a responder à letra, e a solução encontrada foi a construção do Grand Lisboa, irmão do “velhinho” Lisboa mas muito mais imponente. O edifício a que muitos chamaram o novo marco de Stanley Ho tem uma base em forma de ovo e está situado bem no coração de Macau, juntinho ao “irmão” mais velho. A sua fachada, ao longo dos mais de quarenta andares, é uma composição de vidros coloridos meio espelhados e dourados, em forma de flor-de-lótus, o símbolo de Macau. Esta “flor-de-lótus”, com a sua grandiosidade e luminosidade, veio sem dúvida marcar uma diferença no universo arquitectónico do território.

 

O valor da história

 

A pergunta que se pode colocar é se o novo e majestoso Lisboa cumpriu o desígnio de ser o grande marco de Stanley Ho em Macau. Aqui as opiniões dividem-se. Se por um lado há quem diga que o magnata do jogo se conseguiu destacar, outros parecem defender o simbolismo do Lisboa original. Não é apenas uma questão arquitectónica, é também toda a história de que o edifício se reveste, alegam estes últimos. A estrutura do Hotel Lisboa continua a sobressair devido ao seu raro estilo arquitectónico: o edifício principal está construído como uma gaiola chinesa, que “cativa” os jogadores; além do mais, a fortuna segundo a crença chinesa está associada ao morcego, e a entrada principal do hotel sugere um morcego de asas abertas.

O facto de o Hotel Lisboa ter sido um dos primeiros edifícios do género em Macau, construído de raiz para albergar o casino e um hotel de cinco estrelas, confere-lhe uma aura especial. A sua popularidade mantém-se incólume, quase quarenta anos após a inauguração, em 1970, acarinhado pelos residentes e procurado pelos turistas. Não é de estranhar, portanto, que o Hotel Lisboa continue a ser a pérola de Stanley Ho e um marco no universo do jogo, estando entre os três casinos do território que mais facturam.