À descoberta de Macau

Austin Coates (1922-1997), a viagem oriental de um diplomata romancista
Austin Coates (1922-1997): À descoberta de Macau, a viagem oriental de um diplomata romancista

Austin Francis Harrison Coates, diplomata, historiador, romancista e membro da Royal Asiatic Society, de ‘nome’ chinês Gao Ze (elevada responsabilidade), nasce em Londres (16-04-1922), durante o nono ano de casamento do compositor Eric Coates (1886-1957) e da actriz Phyllis Black Coates (1894-1982), sendo filho único do casal. Após uma infância e uma adolescência vividas entre Londres e Sussex, aos 17 anos de idade Coates decide tornar-se dramaturgo e parte para Paris com o objectivo de estudar teatro,  ingressando posteriormente na Royal Academy of Dramatic Art.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o jovem viaja, pela primeira vez, rumo à Ásia, desempenhando, entre 1942 e 1947, o cargo de oficial da British Royal Air Force Intelligence na Índia, em Rangum, capital da então recém-fundada Birmânia, em Singapura (1945-1946), e em Jacarta, onde em 1947 se torna observador inglês do processo de descolonização holandesa. As sucessivas viagens do autor pelo Oriente levam a que o contacto com realidades diversas de espaços-Outros se torne um tema recorrente na sua obra literária. Na Índia em guerra pela independência, o então soldado inglês conhece e acompanha Gandhi em viagem pouco tempo antes do assassinato deste último, em 1948. De regresso a Inglaterra, no ano seguinte, Coates, com 27 anos de idade, alista-se no British Colonial Civil Service e inicia a sua carreira diplomática, sendo nomeado secretário-assistente colonial até 1956 na Hong Kong conturbada pelas transformações políticas na China. Durante as suas funções no governo da colónia britânica o diplomata torna-se assistente do então governador, Sir Alexander Grantham (1899-1978), auxilia os refugiados políticos chineses e escreve Invitation to the Eastern Feast (1953) e Personal and Oriental (1957), as suas primeiras obras, publicadas simultaneamente em Londres e Nova Iorque. Entre Maio de 1953 e Julho de 1955 Coates desempenha as funções de magistrado e district officer  nos Novos Territórios da Hong Kong rural, experiência que descreve 13 anos mais tarde numa das suas obras mais famosas, Myself a Mandarin, através de 16 casos resolvidos no seu ‘tribunal’.

 

Durante o primeiro ano em Hong Kong o romancista visita Macau e deixa-se desde logo seduzir pela exótica vivência do primeiro e último entreposto europeu na China, como descreve numa entrevista a Paulo Coutinho («Austin Coates: As Calçadas do Futuro», Ponto Final 14-01-1993: 18-19):
“[…] logo depois de ter assumido funções no governo colonial de Hong Kong, em 1949, […] vim pela primeira vez a Macau. Por sorte. No ferry em que viajei estavam José Guterres e a mulher, Maria (que eram de Xangai). Ele era muito interessado em história, na história da comunidade portuguesa do Extremo Oriente, e mostrou-me pessoalmente Macau. Guiou-me num tour interessantíssimo em que vimos todos os monumentos históricos durante um fim-de-semana inteiro. […] Fiquei imediatamente fascinado desde os primeiros contactos com a presença portuguesa no Oriente. O primeiro encontro aconteceu casualmente em Bombaim com a comunidade goesa, em 1944, e o que mais me fascinou foi a beleza da música popular que resultava de uma simbiose entre os ritmos indiano e português. Depois, numa localidade a norte de Calcutá, onde estive destacado como oficial britânico, vi no interior de templos hindus representações de portugueses, com os seus chapéus típicos, e de caravelas portuguesas. […] Mais tarde em Malaca, conheci muitos portugueses. […] Macau foi sempre melhor governado que os outros territórios portugueses […]. Os britânicos impuseram a sua presença pela força [em Hong Kong] enquanto os portugueses foram convidados para se estabelecer em Macau.”
Em 1957 Austin Coates é transferido, a seu pedido e até 1959, para Sarawak, na Malásia Oriental, como magistrado, conselheiro para os assuntos chineses e administrador do distrito de Kuching, assessorando, entre 1958 e 1959, o governador Sir Anthony Abell. Entre 1959 e 1962 o diplomata é primeiro secretário da British High Commission em Kuala Lumpur e Penang (George Town), na Malásia, e durante a sua permanência no Oriente assiste à descolonização do Império Britânico, antes de se tornar free-lance travel writer. O seu primeiro romance, The Road, é publicado nos Estados Unidos da América em 1959 e representa a experiência de Sylvia e Richard, este último district officer dos Novos Territórios de Hong Kong, durante a construção da nova estrada de Lantau. Em 1962, aos 40 anos de idade, Coates abandona a carreira diplomática, estabelece-se em Londres e dedica-se inteiramente à escrita, tendo visitado África, em 1964, para escrever Basutoland.  Dois anos depois, o autor publica o seu primeiro estudo sobre Macau e as presenças portuguesa e inglesa no delta do rio das Pérolas, Prelude to Hong Kong, mais tarde reeditado com o título Macao and the British 1637-1842: Prelude to Hong Kong (1988), apresentando também comunicações sobre a história local na Royal Asiatic Society de Hong Kong.

 

Em 1967, Coates publica o romance histórico e Bildungsroman feminino City of Broken Promises (CBP), cujas preparação e investigação histórica haviam sido iniciadas em Hong Kong e Macau anos antes, e, um ano depois, o estudo que mais tarde viria a considerar a sua mais importante obra, Rizal Philippine Nationalist and Martyr (1968),  uma biografia do poeta e herói filipino José Rizal (1861-1896), figura que despertara o interesse do autor quando da sua primeira visita a Manila, em 1950. Em Julho de 1965 o romancista é opositor ao concurso para o cargo de director dos Serviços de Turismo de Singapura, função que desempenha até 1966, ano em que regressa à China para aí viver e escrever durante 27 anos, sendo-lhe comissionadas diversas obras quer pelo Governo de Hong Kong quer por companhias privadas, como por exemplo Western Pacific Islands (1970), que o leva em viagem durante cinco meses pelo Oriente, e Islands of the South (1974), sobre o período pré-histórico do Pacífico e a influência dos seus povos na Ásia Oriental. É durante a segunda estada em Hong Kong que Coates se deixa envolver de forma mais profunda e pessoal pela Macau pitoresca, que descreve a João Guedes («The Gentleman of Colares», Macau, 1997, edição inglesa: 132-139) como:
[…] a fascinating place. Without question another world, charmingly peaceful and quiet. We could picnic in the middle of the Avenida da Praia Grande without getting in the way of the traffic. I think there were 27 cars in the whole town at the time. Nothing ever happened in Macao before eleven in the morning. The local intelligentsia would then gather at the Hotel Riviera for cups of strong coffee. […] Just the six of them! The group became seven when I joined them.  (2)

Durante uma entrevista concedida a Bradley Winterton (A Season in Macau, 1999: 14), Coates repete esta mesma ideia: “I first went to Macau in the 1949, when I began working for the Hong Kong government. My goodness, it was a charming place then! So peaceful, so quiet. You could stand and look at a traffic light – I think they had one in those days – and it would change from green to red and green again, and not a single vehicle would have passed. What a difference from today! […] When you arrived, there was only one hotel where Europeans could reasonably stay in.”(3) O autor Philippe Pons (Macao, 2002: 102) descreve os encontros dos “afficionados de Macau” no bar do Hotel Boa Vista, entre os quais se encontra Coates, “[…a] tall, white-haired writer […], who was both quintessentially British and very rude about his compatriots. Having fled Hong Kong, where he’d based for many years, he went on to write several books relaxing on the Bela Vista’s terrace.”(4) A representação do modus vivendi e da sonolência da urbe é recorrente na literatura inglesa, nomeadamente num breve texto de Shann Davies que descreve a procrastinação como característica de Macau: “Os portugueses têm um termo para definir progresso em Macau: amanhã […], o dia em que os planos serão implementados, os projectos finalizados e medidas tomadas”.
Numa outra ocasião, no final dos anos 80, Coates enfatiza as dimensões histórica e portuguesa do enclave:
Macau is an extremely interesting place, quite unique, quite unique. There’s nowhere like it anywhere else in Asia, and probably not in the world. The problem for a historian is that they don’t have records, or at least not very many. You see, in former centuries the Portuguese didn’t write things down as a rule – they considered themselves gentlemen, and some of them were gentlemen, and they simply trusted each other’s word. (Winterton: 13-14).(5)
O romancista conclui que o território é considerado um local único no mundo não apenas por turistas, mas também por historiadores de renome mundial como Charles Ralph Boxer, seu conhecido:
For historians of a place that is unique in the world as an international trading centre it [the lack of historical sources] is a disaster! My old friend the historian Jack Braga used to say ‘If only I could find a bill of lading, just one…’ Well, Charles Boxer found one – one, I may say – in Lisbon. But the lack of records is the primary problem for Macau historians, particularly records of trading transactions. (Winterton: 14).(6)

 

Essa ausência de fontes relativamente às vidas de Marta e Thomas Kuyck Van Mierop leva o Autor, impossibilitado de redigir um estudo biográfico ou historiográfico sobre essas figuras, a publicar o romance histórico CBP, o primeiro em língua inglesa cujo local de acção principal é Macau. Durante os passeios e estadas no Hotel Bela Vista os amigos portugueses e macaenses descrevem a Coates a vivência e a presença inglesas na cidade, bem como episódios históricos que o autor investiga e incorpora em obras como Macao and the British, A Macao Narrative e CBP, enquanto viaja em busca de informação por diversas paragens do Oriente. Em 1974 Coates decide abandonar Hong Kong e viver na Europa, escolhendo o seu país favorito, Portugal, para se estabelecer. Essa mesma relação, que dura até à morte do autor, tem início em Macau, através de amizades como as que mantém com os historiadores macaenses Luís Gonzaga Gomes e Jack Maria Braga, tendo este último colaborado na investigação do romancista sobre o enclave, nomeadamente para redigir CBP. No décimo dia da estada do escritor em Lisboa, a revolução de Abril e um contrato para um novo livro levam-no de novo a Hong Kong, adiando este a sua decisão de se estabelecer em Portugal durante mais 18 anos, até que em 1992, após mais de 50 anos de aventuras asiáticas, o projecto finalmente se concretiza, data a partir da qual Coates passa a residir em Colares, numa casa adquirida em 1985. Próximo de Sintra, o romancista dedica-se à escrita e à reedição da obra musical do seu pai, rodeado por uma exótica ambiência que o seu jardim ainda hoje reproduz, falecendo, conforme noticia a imprensa portuguesa, vítima de cancro, em 16 de Março de 1997, aos 74 anos de idade, na Rua das Horas da Paz, ligado a Macau por uma profunda nostalgia que as vozes lusas dos seus vizinhos adensam. Os seus restos mortais encontram-se no jazigo da família Coates, no Golders Green Crematorium, em Londres.
Coates caracteriza a sua forma de ‘escrever História’ como light e fácil de ler, e a sua obra de cariz historiográfico e biográfico torna-o uma referência recorrente nos estudos e bibliografias de orientalistas e sinólogos mundiais. O diplomata-romancista é autor de 18 obras publicadas e 14 ainda inéditas sobre o Oriente, assumindo-se como um nome proeminente no estudo da história e da etnografia (em língua inglesa) de Macau, a quem não foi prestada a mais que merecida homenagem em Portugal, onde apenas um dos seus estudos foi traduzido.
De seguida apresentamos um quadro com as obras publicadas de Austin Coates, a temática e o ano da primeira edição das mesmas.
De entre estas obras, quatro são sobre Macau, nomeadamente dois estudos ilustrados, Macao and the British 1637-1842: Prelude to Hong Kong e A Macao Narrative, um poema, «Macao» (1950), e um romance histórico/bildungsroman feminino, City of Broken Promises, mantendo-se o poema «Macao» inédito e por estudar até à data da publicação de A World of Euphemism: Representações de Macau na Obra de Austin Coates: City of Broken Promises enquanto Romance Histórico e Bildungsroman Feminino (Lisboa, 2009), de Rogério Miguel Puga.

 

O primeiro destes estudos, Macao and the British, dedicado a Jack M. Braga, sintetiza a presença britânica no Sul da China desde a chegada da frota de John Weddell, em 1637, até às Guerras do Ópio e à fundação de Hong Kong, tendo como fio condutor a importância de Macau para o China trade. Os 14 capítulos da obra abordam, sumariamente e sem recurso directo a fontes históricas, a presença europeia na China meridional; o estabelecimento e os interesses da E. I. C. em Cantão e Macau, sobretudo a partir de 1700; o country trade entre a Índia e a China; a embaixada de Lord Macartney; a chegada dos humanitários e das primeiras mulheres inglesas ao enclave; as várias crises comerciais em torno do tráfico de anfião através de Macau e Lintim; a primeira Guerra do Ópio, e a acção de figuras históricas como Thomas Beale, Robert Morrison, e Charles Elliot. Como o título da obra indica, a compreensão da presença inglesa no Império do Meio, nomeadamente em Macau desde meados do século XVII, é essencial para o estudo dos acontecimentos que precedem a Guerra do Ópio e a fundação de Hong Kong em 1841. Na bibliografia final, o autor afirma que a maioria da informação utilizada advém da “tradição oral” de Macau, de jornais como The Canton Register e The Chinese Repository, de documentos europeus e chineses cedidos por Jack M. Braga e da lista de estudos que apresenta no final, sem que essa bibliografia secundária seja citada ao longo do texto.
A Macao Narrative, traduzida para português por Luísa Guedes com o título Macau: Calçadas da História (1991), é um esboço geral da história do enclave que contempla a chegada dos portugueses ao Oriente no século XVI, nomeadamente à Índia e à China, de forma a contextualizar o comércio da Nau do Trato entre Macau e o Japão, bem como a ofensiva anglo-holandesa contra os interesses e domínios portugueses; o início da presença inglesa na China; o poderio inglês no século XVIII; a Guerra do Ópio; a fundação de Hong Kong; o governo de Ferreira do Amaral e o tratado sino-português de 1862.
O próprio autor define ambas as obras como estudos de síntese realizados a partir de publicações de historiadores por ele referidos e, por essa razão, Coates é considerado um estudi  oso ‘pouco académico’, gozando, no entanto, os seus textos de algum sucesso editorial em todo o mundo. O próprio autor agradece, nestes estudos, a amigos e investigadores em cujas obras se baseia para formular a sua síntese e confessa a natureza pouco académica dos mesmos, opinião também veiculada por A. E. Brown, num verbete dedicado a Macau no International Dictionary of Historic Places (1996), ao reconhecer a importância de A Macao Narrative e The British in Macao como os principais estudos sobre a história do enclave em língua inglesa.

Traduções

(1) Associo frequentemente Macau a Veneza. Em qualquer das cidades acordo sempre sem saber em qual delas me encontro.

(2) Um lugar fascinante. Sem qualquer dúvida um outro mundo, sossegado e calmo. Poderíamos fazer um piquenique no meio da Avenida da Praia Grande sem incomodar o trânsito. Penso que no total, haveria uns 27 carros na cidade. Nada acontecia antes das 11 da manhã, hora a que os intelectuais se reuniam para um café forte no Hotel Riviera. Apenas seis, o grupo passou para sete quando me juntei a eles.

(3) Fui a Macau, pela primeira vez, em 1949 quando comecei a trabalhar para o governos de Hong Kong. Meu deus como era calmo e sossegado! Podia-se parar em frente ao semáforo (penso que existia apenas um na época) esperar que a luz mudasse de verde para vermelho e depois outra vez para verde sem que um único carro passasse. Quão diferente é hoje! À chegada era apenas um  hotel onde, realisticamente, os europeus se podiam hospedar.

(4) Um escritor alto de cabelos brancos, inquestionavelmente britânico e muito arrogante em relação aos seus compatriotas. Deixou Hong Kong, que por muitos anos foi a sua base, para se dedicar à escrita, relaxando na varanda do Bela Vista.

(5) Macau é um Lugar extremamente interessante. Único. Não há lugar igual na Ásia nem, provavelmente, no mundo. O problema para o historiador é a falta de registos . Percebe? É que outrora os portugueses não punham nada no papel- eles consideravam-se cavalheiros, muitos eram-no, e por isso confiavam simplesmente na palavra.

(6) Para os historiadores, um lugar que é único no mundo como centro internacional de comércio, isso [a falta de fontes históricas] é um desastre. Como dizia o meu velho amigo e historiador Jack Braga “ se pelo menos eu conseguisse encontrar um registo de propriedade, só um…”  Bem, Charles Boxe encontrou um, um que devo dizer, foi encontrado em Lisboa. Mas a falta de registos é o principal problema para os historiadores de Macau, sobretudo os registos de trocas comerciais.