O homem dos três ofícios

Henrique de Senna Fernandes era um senhor da escrita. As narrativas, os diálogos, as personagens e os cenários – umas vezes imaginados, outras inspirados pela vivência própria de quem era de carne e osso – brotaram com mestria, da ponta dos seus dedos para os escaparates. Também foi professor e advogado. Tudo isto antes de nos deixar, a poucos dias de completar 87 anos.

 

 

Dois dos seus livros, Amor e Dedinhos de Pé (Instituto Cultural de Macau, 1986) e A Trança Feiticeira (Fundação Oriente, 1993) resultaram em adaptações para a Sétima Arte.Como autor não precisa de apresentações. Apenas o reconhecimento por tão singular personalidade que faz de si uma lenda viva. Aos quatro ventos bradou ser um “português de Macau”. Henrique Rodrigues de Senna Fernandes deixou-nos na manhã de 4 de Outubro último. Onze dias depois faria 87 anos.

“O meu pai era um tipo afável, com quem nos predispúnhamos a falar. Tinha uma particular propensão para agradar às pessoas, mas não era um yes man”, recorda o advogado Miguel de Senna Fernandes.

A personalidade muito forte e uma vaidade aparente faziam também parte da têmpera do escritor. “Ele sabia ser bastante diplomata. Tinha ideias firmes em certas coisas tais como a condição de ser português, mas à maneira de Macau”.

O autor de Nam Van, Contos de Macau (edição do autor, 1978) dizia que o seu lugar de eleição era Macau, pois sentia um grande apego à terra. E isso vai reflectir-se no inédito que está para ser publicado, O Pai das Orquídeas.A obra descreve de maneira profunda a mulher chinesa, que pode ser calorosa mas, ao mesmo tempo, segundo os padrões culturais ocidentais, revelar-se absolutamente fria nos afectos.

“Foi um livro que o meu pai gostou muito de escrever, embora, pelos manuscritos que nos deixou, o desenvolvimento da trama nunca tivesse sido linear. Numa das versões, o herói é um português que vem de Lisboa e conhece uma chinesa de Macau, com quem se relaciona. Este herói mudou muitas vezes, consoante as versões, passando a ser macaense”, explica Miguel de Senna Fernandes.

A incumbência de digitalizar os manuscritos pertence à irmã Cristina. A versão final vai ser decidida em família, pois é preciso compreender a mensagem que o autor quer fazer passar. “Miguel, desenrasca-te”, foi o recado que lhe deixou o pai antes de partir.

 

O professor

As qualidades de Henrique de Senna Fernandes como professor ainda perduram na memória de várias gerações. Um dos seus alunos de História chegou a desempenhar cargos de relevo durante a Administração portuguesa de Macau.

Jorge Rangel é hoje o presidente do Instituto Internacional de Macau, mas naquela altura, entre o final da década de 50 e princípios dos anos 60 do século passado, frequentava o Liceu Nacional Infante D. Henrique.

Volvidas quatro décadas ainda sente na memória a forma como o professor descrevia as Guerras Púnicas e como se referia ao Cavalo de Tróia ou às conquistas de Alexandre Magno.

“Imaginávamos o nosso professor com as vestes da época, testemunhando in loco os acontecimentos. Parecia mesmo que ele ali tinha estado, podendo, séculos volvidos, transmitir-nos as suas ‘vivências’”, recorda Jorge Rangel.

Um dia – acrescenta – depois de relatar a presença romana no Egipto, lembrou-se do famoso nariz de Cleópatra e da sua influência nos destinos de muitos amantes e na própria manutenção de Roma Imperial nessas paragens do norte de África.

Já no corredor, no fim da aula, aproximaram-se dele alguns alunos. E uma colega de Rangel, enchendo-se de coragem, provocou no docente uma estrondosa gargalhada, quando lhe dirigiu esta observação: o professor descreveu com tanto pormenor as relações de Cleópatra com os seus amantes, que fiquei na dúvida se não teria sido um deles! “Estes episódios revelavam, afinal, a bonomia e a acessibilidade do professor, pessoa que todos estimavam”, afirma Jorge Rangel.

O autor de Mong-Há, Contos de Macau (1998) impunha-se pela competência e pela dedicação. Tinha alma de educador, por isso dedicou a vida ao ensino. Foi director da Escola Comercial Pedro Nolasco, além de ter sido professor do Liceu Nacional Infante D. Henrique. Neste contexto, também se envolveu activamente no funcionamento da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses.

 

O advogado

Henrique de Senna Fernandes foi presença assídua no programa de rádio Macau ao Vivo. A rubrica passou no canal português da TDM, aos domingos, sensivelmente entre 1986 e 1991. As conversas com os locutores Luís Machado e João Amorim iam desde as vivências do escritor com a família na ilha de Shamian (Cantão) no período anterior à Guerra do Pacífico, até à transferência da administração de Macau.

No programa de rádio não esqueceu também de partilhar as suas memórias dos tempos em que era estudante universitário e a ajuda que recebeu do ilustre Carlos d’Assumpção para que acabasse o curso de Direito.

“O que ele desejava mesmo era tirar Medicina. Mas como ficou retido em Macau após o 7.º ano de escolaridade e teve de se empregar durante o período da Guerra do Pacífico, não lhe restou outra alternativa se não abandonar a ideia da Medicina, por ser um curso muito longo”, recorda Luís Machado.

Assim sendo, ingressou na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Iniciou o curso em 1946 e terminou-o em 1952. “Ele confessou nas gravações que nunca gostou da advocacia e considerava-se um mau advogado. O seu métier era o ensino e a sua paixão a Medicina”, acrescenta o actual presidente da Confraria da Gastronomia Macaense, Luís Machado.

Tal facto não impediu Henrique de Senna Fernandes de ter sido um dos fundadores e presidente da Associação dos Advogados de Macau. Chegou também a ser bibliotecário da Biblioteca Nacional de Macau e, respectivamente, presidente do Clube de Macau, do Rotary Club de Macau e da Comissão Organizadora do Grande Prémio de Macau (1967 e 1968).

Ao longo da vida foi agraciado com as distinções de oficial da Ordem da Instrução Pública (1978), de comendador da Ordem do Infante D. Henrique (1986), com a Medalha de Mérito Cultural do Governo de Macau (1989) e com a Medalha de Valor do Governo de Macau (1995).

Em 1998, recebeu o título de Grão-Oficial da Ordem Militar de S. Tiago de Espada, pelas mãos do presidente português, Jorge Sampaio. A 19 de Dezembro de 2001, o então Chefe do Executivo, Edmund Ho, agraciou-o com a Medalha de Mérito Cultural da RAEM.

Entre outras distinções estão também dois doutoramentos honoris causa de Literatura, em 2006, pelo Instituto Inter-Universitário de Macau (actual Universidade de S. José) e, em 2008, pela Universidade de Macau.