Crioulos à mesa

Ada Sousa e Daniel Pinto conversam em crioulo de Cabo Verde. Miguel de Senna Fernandes e Rita Cabral falam crioulo de Macau. Numa mesa do restaurante Litoral, juntaram-se ao historiador Jorge Morbey e conversaram em e sobre o crioulo

Como ta vai?, interroga Miguel de Senna Fernandes, em patuá. É parecido,nota o cabo-verdiano Daniel Pinto (presidente da Associação de Amizade Macau-Cabo Verde), logo repetindo em crioulo de São Vicente: Manera ke bô (ti) ta ba?. Uma expressão versada em dois crioulos separados por um oceano e que, em português, significa “Como está?”.

Mas será que realmente se entendem? Os linguistas garantem que não.O fundador do grupo de teatro Dóçi Papiáçam di Macau, o advogado macaense e dramaturgo Miguel de Senna Fernandes, começa por explicar que, na forma primária do patuá antes da mudança por contacto com o cantonês -, como ta vai dizia-se qui nova. No crioulo de São Tomé, bom dia é bom dja ô e logo a seguir dizse qui nova, assinala o historiador Jorge Morbey, realçando a semelhança. Isto serve para perceber que há uma unidade dos crioulos.

Daniel Pinto pega em Cuza dôtor, o título de uma das peças em patuá do grupo de teatro Dóçi Papiáçam e dá outro exemplo. Cuza [em português, significa ‘o quê’] é crioulo, diz, acrescentando: “Os cabo-verdianos percebem tudo nas récitas, exceptuando uma ou outra palavra em chinês”.

A queda de um mito

 

Para o linguista Alan Baxter, que falou à margem do jantar, há uma verdadeira dissonância entre os dois crioulos. Entre eles, a única ligação resume-se a algum léxico importado do português. Fonologicamente dá para entender muitas palavras, só que a gramática é muito diferente, assegura o director do Departamento de Português da Universidade de Macau.

Mais: tudo depende da velocidade a que tais palavras são proferidas. Se as pessoas falarem a uma velocidade normal, não conseguimos entender, mas se as pessoas falarem deliberadamente devagar, há uma maior possibilidade de compreensão, declara.

Pode então dizer-se que falantes do crioulo cabo-verdiano e do patuá se entendem?

Baxter afirma que não e refere que é consensual entre a comunidade científica a existência do mito da compreensão mútua. Apenas compreendem algumas expressões básicas, mas a gramática é distinta. E, continua o linguista, quando se verificam alguns elementos gramaticais semelhantes, tal não signifiMarço

2011 | 7

 

O português era a língua da autoridade. O patuá e o crioulo cabo-verdiano eram uma forma de desafiá-la. Mas enquanto o primeiro, ao longo dos tempos, se foi perdendo, o crioulo expandiu-se e até se chegou a discutir em torná-lo oficial.

O patuá era falado por mulheres e gente humilde. “O homem representa a família e dá a cara lá fora; se quiser ser alguém, fala português isto aconteceu em todas as colónias”, esclarece o macaense Miguel de Senna Fernandes. Vivia-se então no seio de uma sociedade muito machista. Aliás, não é por acaso que algumas expressões estão associadas à mulher, como chuchumeca que, em português, significa ca que haja uma conexão entre os crioulos.

Por exemplo, há uma palavra derivada do verbo estar que pode ser ‘tá’ ou ‘sta’. Esse elemento não entrou por ter sido ensinado, mas porque é muito óbvio no discurso dos falantes de português.

Tem funções totalmente diferentes nos dois crioulos, esclarece Alan Baxter.

Estes paralelos estão ligados a um mecanismo linguístico. Não significa que tenham vindo cabo-verdianos até Macau que tenham contribuído para o patuá, simplesmente indica que quando estamos privados de material linguístico adequado para desenvolver o português, desenvolvemos um outro sistema, utilizando alguns dispositivos que parecem funcionar por defeito.

Por exemplo, explica o linguista, as palavras ‘vai’, ‘vem’ e ‘tem’, por serem frequentes no discurso português, acabam por ser incorporadas em todos os crioulos de base portuguesa. E a terceira forma do singular é a mais frequente em qualquer discurso, realça.

 

Tão longe e tão perto…

 

Mas a familiaridade de alguns termos suscita, pelo menos, a curiosidade mútua. Isto é tudo sucre, diz Miguel de Senna Fernandes, apontando para o açúcar.

Ah, temos a sucrinha, repete a advogada cabo-verdiana Ada Sousa, assinalando a semelhança, apesar de neste caso significar rebuçados.

O dramaturgo macaense aproveita para lançar mais uma pergunta: “Como vocês dizem perfume?” Ada e Daniel respondem, olhando um para o outro: Perfume.

Mas do lado macaense a expressão é outra: Águ-chêro. Ada Sousa acaba por corresponder da mesma forma. Sim, também pode ser água de dtchero, diz, com uma entoação diferente da macaense.

Perante a semelhança dos vocábulos, Daniel Pinto acaba por comentar: Há coisas que nos unem…

Enquanto as sobremesas vão chegando à mesa do restaurante Litoral, Daniel Pinto aponta e indica: Isto é doce de leite. Mas Miguel de Senna Fernandes assinala outro nome: Para nós, bebinca. Nós temos muita coisa de Goa.

A vontade de comparar vai mais além. Como é que vocês dizem abóbora? Daniel e Rita respondem quase em uníssono: Bóbra. A expressão não encontra coincidência no patuá actual. Para nós, é camalenga, diz o dramaturgo macaense, acrescentando: Mas na forma antiga do patuá é igual [bóbra]. De repente, Miguel lembra-se de bufra ou bufro, uma expressão muito antiga em patuá, mas Daniel e Ada franzem o sobrolho, manifestando desconhecimento. É búfalo, responde o dramaturgo. Do outro lado, não se fez esperar a reacção, acompanhada de um grande sorriso: “Ah, nós não temos búfalos em Cabo Verde…”

 

Um instrumento contra o colonizador

 

O português era a língua da autoridade. O patuá e o crioulo cabo-verdiano eram uma forma de desafiá-la. Mas enquanto o primeiro, ao longo dos tempos, se foi perdendo, o crioulo expandiu-se e até se chegou a discutir em torná-lo oficial.

O patuá era falado por mulheres e gente humilde. “O homem representa a família e dá a cara lá fora; se quiser ser alguém, fala português isto aconteceu em todas as colónias”, esclarece o macaense Miguel de Senna Fernandes. Vivia-se então no seio de uma sociedade muito machista. Aliás, não é por acaso que algumas expressões estão associadas à mulher, como chuchumeca que, em português, significa  intrometer-se. A isto responde a caboverdiana Ada Sousa, admirada: Ah sim? Para nós, é tchucido …

 

A aprendizagem

 

Em casa de Miguel de Senna Fernandes mal se ouvia patuá, apenas quando a avó e as amigas se juntavam. Ele, que era então uma criança, começou a interessar-se por aquela estranha forma de falar. Elas riam-se e riam-se, recorda, acrescentando: “O motivo da chacota era sempre um: os homens. “Quando inquiriu o pai sobre o assunto, ele respondeu: “É uma língua antiga de Macau, o macaense.”.

Miguel de Senna Fernandes está convencido de que esta inferioridade é comum a todos os crioulos. “Todas as sociedades, principalmente as que nasceram na era do colonialismo passaram por essa experiência do estigma do crioulo local como uma língua inferior”, declara.

 

A língua contra o colonizador

 

“Os portugueses chegavam da então metrópole e interrogavam-nos acerca da língua que falavam. Os macaenses batiam o pé e asseguravam que aquilo era português de Macau. Nós gozávamos com isso”- diz Miguel de Senna Fernandes.

“Mais tarde vim a descobrir que este tal português de Macau era uma forma mais evoluída do patuá”, acrescenta o fundador do grupo de teatro Dóçi Papiaçam.

Se nas aulas falassem este desvio, os alunos eram penalizados pelos professores. Costumavam ripostar: “É o que falamos em casa.” Mas esta resposta não era aceite.

“Era o preconceito, conclui Jorge Morbey, que lê, entretanto, trechos de “Clérigo

da Beira”, uma farsa escrita em 1526 pelo dramaturgo português Gil Vicente. Na realidade, foi o registo mais antigo que o historiador encontrou na literatura portuguesa sobre aquele português mal falado.

Daniel Pinto continua: Comparando [o patuá] com o crioulo, a lógica é a mesma. “Em Cabo Verde, recorria-se ao crioulo para fugir ao colono, de forma que o grande senhor não percebesse o que era dito”.

Ouvindo estas palavras, Miguel de Senna Fernandes diz em tom de concordância: “Contavam-se segredos em patuá”.

 

A generalização dos crioulos

 

Mas, contrariamente, ao que sucedeu em Macau com o patuá, em Cabo Verde todos falavam crioulo. E em todas as ilhas há um diferente. Daniel Pinto fala o crioulo da Ilha de São Vicente, bem como Jorge Morbey, enquanto Ada Sousa fala o crioulo da Ilha de Santiago. “As ilhas do Sotavento e do Barlavento têm um crioulo diferente, mas entendemo-nos todos perfeitamente”- assegura.

Tal como sucedeu com Miguel de Senna Fernandes, também na casa de Daniel Pinto não se podia falar crioulo. Mas era uma imposição menos rígida. “Falávamos normalmente crioulo com a minha mãe e, muitas vezes, o meu pai comunicava em português e nós respondíamos em crioulo” acrescenta o cabo-verdiano. Mesmo na escola era difícil travá-lo. A língua oficial na sala de aula era o português, diz, explicando que entre colegas e nos recreios falava-se em crioulo.

 

As proibições

 

Para Daniel Pinto, a proibição do pai tinha uma clara origem. Era a questão colonial. O português vinha e impunha a religião e a língua. Nós seguíamos. O crioulo era uma fuga ao colonizador, mas  em Cabo Verde foi ganhando mais força.

A Jorge Morbey também não era permitido falar em casa, acabando por aprendê-lo na rua e no recreio da escola. “E as criadas eram proibidas de falar connosco, só que elas não sabiam falar outra coisa… Por isso, recorriam a um crioulo corrompido”, recorda o historiador.

Em sentido contrário, em casa de Ada sempre se comunicou em crioulo.“O meu pai fala crioulo de Santo Antão, que é diferente do meu, mas percebemo-nos lindamente.

Insiste em não falar badiu [crioulo da Ilha de Santiago], mas eu falo badiu  com ele e nunca tive problemas”, declara a jovem cabo-verdiana. “A Ada é da geração pósindependência e eu e o Morbey somos da geração antes da independência”, acrescenta Daniel Pinto, para justificar a diferença de comportamento.

O patuá extingue-se, o crioulo alarga-se

 

O futuro do crioulo caboverdiano parece melhor do que o do patuá. Uma língua tem a ver com falantes. “Como é que se vai proteger uma língua se as pessoas já não estão cá?”, interroga Miguel de Senna Fernandes, acrescentando:

O fenómeno da emigração ajudou a que as pessoas falassem menos patuá”. Além disso, em Macau, não havia condições para que se preservasse o patuá.

A própria posição que Portugal tinha em relação a Macau era diferente. Portugal só dizia que Macau era colónia portuguesa por uma questão constitucional.

Na prática, o lado português sabia que estava em lugar alheio, realça.

Macau só é integrado no contexto colonial português no reinado de D. Maria II – em 1846, aplicase em Macau o estatuto de São Tomé e Príncipe, acrescenta o historiador Jorge Morbey, explicando que, apesar de se tratar de uma integração meramente formal, não se traduzia na prática. Aliás, remata Miguel de Senna Fernandes, rindo: “O macaense esteve sempre a fazer as malas, mas foi ficando…”

 

A integração do elemento chinês

 

Depois da Guerra do Pacífico, na década de 40, há uma mudança da sociedade macaense tradicional, começando a realizar-se casamentos luso-chineses. “Penso que na diminuição do uso do patuá, a chave é a mulher”, refere Jorge Morbey, acrescentando: “A sociedade macaense deixa de ser uma sociedade miscigenada com Malaca, Índia, Timor e passa a ser, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, luso-chinesa”.

Quando a mulher chinesa assume a parceria com o homem português na liderança da família, o cantonês muda de estatuto. “É natural que o patuá entre em regressão, explica o historiador. Miguel de Senna Fernandes acrescenta:

Regressão na sua forma mais arcaica. Adapta- se à nova realidade”. Mas, acredita o dramaturgo macaense, como uma língua só existe falando, provavelmente, o futur do patuá passa pela extinção.

Eu falo patuá com os meus netos, eles sabem, assegura a macaense Rita Cabral. Mas quantos mais há como ela?

 

O bilinguismo e o ALUPEC

 

Há quem defenda tornar o crioulo oficial em Cabo Verde, paralelamente ao português. Jorge Morbey recorda a adopção do sistema de escrita ALUPEC (Alfabeto Unificado para a Escrita do Cabo-verdiano). Foi o então ministro da Cultura de Cabo Verde, Manuel Veiga, que tinha uma postura um pouco centralista e as pessoas reagiram muito mal, recorda Jorge Morbey. “Aquilo tem lacunas e penso que foi ao fundo”, realça o historiador, explicando: “O ALUPEC tinha conotação política. A substituição do C pelo K fazia-nos pensar na União Soviética e nós sabemos de onde veio o PAICV [Partido Africano de Independência de Cabo Verde] e, portanto, levantou-se esse problema de natureza política”.

Independentemente do sucesso do ALUPEC, Jorge Morbey continua a achar ser possível tornar o crioulo oficial, mas terá de haver uma norma escrita. “Alguns linguistas defenderam a oficialização do crioulo, mas, na minha opinião, quase ronda o ridículo. Nós temos nove ilhas e cada ilha tem o seu crioulo imagine o que é uniformizar o crioulo”, contrapõe Daniel Pinto.