A “casa da mãe”

É deste modo que o padre Lancelote Miguel Rodrigues se refere a Malaca sempre que recorda a cidade que o viu nascer, em 1923. Numa visita guiada aos locais onde viveu parte da meninice, antes de voar para Macau aos 12 anos de idade, o sacerdote levou-nos às casas, à escola e aos bairros que marcaram os primeiros anos da sua longa jornada

 

 

Texto José Miguel Encarnação

 

Deixamos o hotel de carro em direcção ao centro de Malaca. O sentido do trânsito obriga-nos a seguir pela rua Bunga Raya Pantai, que liga à avenida Tun Sri Lanang, uma das principais artérias da cidade. “Algumas destas ruas tinham nomes de portugueses ilustres, que o tempo se encarregou de substituir, principalmente depois da independência da Malásia”, diz o padre Lancelote, enquanto olha para a casa onde viveu, quando “ainda mal conseguia andar”. No rés-do-chão funciona um pequeno estabelecimento comercial, onde se vende de tudo um pouco. No primeiro andar, duas janelas compõem a fachada. “É a sala e um quarto”, especifica o sacerdote.

Uns metros mais à frente está a igreja de São Pedro – mais conhecida como a igreja dos portugueses –, cuja festa dos 300 anos da sua construção tinha terminado há menos de 24 horas e contado com a presença do padre Lancelote. “Aqui vínhamos à missa todos os domingos. Nós e todas as pessoas do Bairro Português”, lembra.

Acompanhados por Joe Lázaro, personalidade emblemática de Malaca, rumamos à igreja de São Francisco Xavier, situada na rua Laksamana. A meio do percurso, do lado direito, um edifício ameaça ruir a qualquer momento. Na parte superior do frontispício está escrita, em baixo-relevo, a palavra “Capitol”. O olhar de Lancelote enche-se de luz. De dedo apontado exclama: “Vinha aqui à matinée! Passavam filmes de cowboys, do Bucha e Estica e do Charlot. Bons tempos!”

Em frente à igreja de São Francisco Xavier, há um parque de estacionamento que, para ser construído, teve de ver demolidas algumas casas, entre elas a que serviu de residência aos 14 membros da família Rodrigues, entre 1928 e 1929. “No rés-do-chão estava instalado o escritório do meu pai, que era o número dois da Alfandega. Nós vivíamos no primeiro andar. Este período coincidiu com a minha entrada na escola primária”, explica.

O caminho para a sekolah Saint Francis é um autêntico postal turístico. A praça holandesa está pejada de turistas, que não se cansam de fotografar a igreja de Cristo e outros edifícios-museu, na sua maioria pintados de encarnado. Até um moinho holandês foi construído do outro lado da rua para que não subsistam dúvidas quanto à nacionalidade dos responsáveis pela construção da praça.

Mais à frente, os antigos armazéns da Alfandega estão transformados em restaurantes e uma réplica das naus portuguesas utilizadas no tempo dos Descobrimentos alberga o museu marítimo da cidade. É feriado nacional, pelo que não há aulas na Saint Francis. Nos quatro cantos da Malásia comemora-se o primeiro dia do novo ano muçulmano (Hari Raya Haji, em malaio).

“Chegámos”, diz o padre Lancelote, com uma enorme vontade de sair do carro. “Foi aqui que estudei até ir para Macau. Éramos só rapazes e aprendíamos em inglês. Os ingleses dominavam Malaca e cumpriam-se as suas regras”, refere, acrescentando logo de seguida: “Mesmo em Macau nunca deixei de estar ligado a esta escola. Em 1986, com a ajuda do senhor Peter Chan, um empresário de Hong Kong, consegui angariar dinheiro para a ampliação das instalações. Construíram um novo edifício de três andares, ao qual deram o nome do seu pai, Chan Sui Ki”. Dos anos em que frequentou a instituição, o nosso anfitrião não esquece a “qualidade do ensino”, a “disciplina” e a “exigência dos reitores”.

Depois de captadas algumas fotografias, partimos em direcção ao Bairro Português, que está afastado do centro da cidade. As ruas têm nomes de apelidos portugueses escritos de forma arcaica: Dalbuquerque, Daranjo, Eredia, Texeira, Squera. As casas, outrora todas iguais, nada têm a ver com as primeiras habitações construídas para a comunidade portuguesa de Malaca. Há muito que a madeira deu lugar ao tijolo e o estilo arquitectónico ocidentalizou-se.

Estacionamos em frente a um portão de ferro. Por entre as grades vislumbra-se uma vivenda pintada de branco. “A última casa em que vivi ficava neste terreno. Como quase todas as outras, foi demolida. Hoje apenas resta uma casa igual à dos meus pais, para os turistas visitarem. Fica na rua Daranjo”, sublinha.

Enquanto nos dirigimos para a praça central do bairro, Lancelote relata alguns episódios ali vividos: “Certo dia vinha da escola descalço. Foram queixar-se ao meu pai que correu à minha procura. Quando me encontrou deu-me um raspanete, colocou-me os sapatos nas orelhas e disse que continuasse a pé até casa. Era muito nosso amigo, mas também muito exigente. Às vezes saíamos juntos ao fim da tarde para passearmos um pouco. Era frequente vermos as pessoas rezarem o terço dentro de casa. Também me lembro de festejarmos o São João – havia velas por todo o lado –, o Entrudo e irmos à Missa do Galo na igreja de São Pedro”.

À entrada da praça central está a torre do sino que convoca os fiéis para a missa e outros eventos religiosos. Na base, ao lado de um painel de azulejos alusivo a Nossa Senhora de Fátima, uma placa informa ter sido benzido pelo padre Lancelote no dia 2 de Novembro de 1985.

A 50 metros de distância fica a igreja do bairro, que está instalada num antigo armazém, e, do outro lado da rua, a única casa que mantém a traça original das primeiras habitações ali construídas.

No regresso ao hotel ouvimos mais uma história divertida: “Ainda muito pequeno pus na cabeça que queria ver um médium. Havia muitos em Malaca. Um dia passei perto de um templo chinês e vi um homem com os olhos revirados, em pleno êxtase. Percebi logo do que se tratava. Fiquei tão arrepiado que desatei a correr e fui logo contar aos meus irmãos. Nunca mais quis ver nenhum”.

Depois de ingressar no Seminário de São José, em Macau, Lancelote esperou dez anos para regressar a Malaca. Desde então nunca mais deixou de visitar a “casa da mãe”.