À descoberta de Veneza

Edgar Martins, James Chu, Alice Kok, João Magalhães e Ana Mafalda Botelho vão representar o território na 54.ª edição da Bienal das Artes de Veneza. As expectativas são altas, já que se trata da maior participação de sempre de Macau na catedral das bienais no mundo

 

 

Texto Pedro Daniel Oliveira

 

A RAEM está a participar na 54.ª Bienal das Artes de Veneza com a maior representação de sempre. O júri internacional designado pelo Museu de Arte de Macau seleccionou quatro trabalhos, entre um rol de 49 propostas admitidas ao concurso que esteve subordinado ao tema Mobilidade e Memória. O exigente público tem assim a oportunidade de contemplar o trabalho fotográfico A Metaphysical Survey of British Dwellings & Dwarf Exoplanets, de Edgar Martins; a instalação Mansões de Cinco Andares, de James Chu; o vídeo Caminhando pela Ilha Verde, de Alice Kok, e a instalação Espelho Vivo, um trabalho conjunto de João Magalhães e de Ana Mafalda Botelho. O certame está a decorrer no nordeste de Itália, até 27 de Novembro.

Edgar Martins, de 34 anos, a residir em Londres, estabelece a paisagem, o lugar, o espaço e a arquitectura como temas predominantes da sua prática fotográfica. Neste contexto, o trabalho inspirado nas moradias britânicas e nos pequenos planetas externos representa um desafio cada vez mais premente: o de revelar e interrogar as formas pelas quais o espaço é apropriado e transformado e salvar algum vestígio dos acontecimentos, dilemas e repercussões provocadas pelo mundo contemporâneo.

O artista procurou desde muito cedo um meio para se exprimir. Iniciou-se na escrita e teve alguns encontros com a fotografia, contudo, nada determinantes. Só em 1996, após publicar um pequeno livro de poesias e dissertações filosóficas (a sua primeira tentativa de abordagem do mundo), é que tomou a consciência de que gostaria de estudar imagem visual.

A musicalidade da sua escrita, a forte componente visual do seu trabalho, serviu-lhe como incentivo. Licenciou-se em Fotografia, em Belas Artes e em Estudos Sociais. Tem ainda um mestrado em Belas Artes e em Fotografia. Não parou desde então. Mas também não esquece a terra que lhe despertou os sentidos. “Cresci em Macau, onde completei a minha escolaridade. Apesar da minha formação em Belas Artes e em Filosofia ter sido feita em Londres, o interesse nestas áreas germinou em Macau. Tenho uma forte relação com o território e contacto contínuo com pessoas e instituições macaenses”, afirma.

 

Passado no presente

O trabalho artístico de James Chu reveste-se em 14 imagens de diferentes edifícios de cinco andares, acompanhadas por um movimento rotativo automático e individual que estará aliado a um efeito de luz. Nas décadas de 50 e de 60 do século passado as residências de Macau eram, maioritariamente, construções de tijolo com dois ou três andares de altura. Com o desenvolvimento social e o crescimento da população, o Governo de então implementou novas medidas para a renovação dos edifícios.

As novas construções habitacionais passaram depois a ter um limite de 20,5 metros. Muitos dos edifícios antigos foram assim alvo de obras de reconstrução, passando a ter cinco ou seis andares. “Os meus pais eram operários da construção civil desde os anos 60. E na década seguinte participaram na reconstrução de centenas de edifícios com cinco andares. A maior parte da minha infância foi a brincar ou a ganhar pequenas quantidades de dinheiro nos estaleiros de construção desses edifícios. Por isso, guardo sentimentos e memórias especiais destes edifícios”, relembra James Chu.

O progresso imiscuiu-se entretanto com o passado. “A cidade de Macau continua a mudar de forma que dificilmente pode ser definida como sendo bonita ou feia”, salienta. As 14 imagens são acompanhadas com música de piano do compositor Lei Vai Fan.

 

Ilha Verde em mutação

O trabalho de vídeo de Alice Kok teve como base a demolição de casas na Ilha Verde. A autora utilizou uma câmara com uma lente de 15 milímetros e 1,5 de abertura. A textura da imagem flui na mesma proporção à medida que a focagem é lentamente alterada. O que estava desfocado ficou a ser bastante nítido. “Após a demolição das casas passou apenas a existir o templo Shak Kum Dong na Ilha Verde. O incenso queimado pelas pessoas observa-se de várias perspectivas, consoante as técnicas de focagem que utilizei. Pode-se assim viajar de um ponto para o outro, sem que a câmara tenha saído do lugar”, explica a autora do vídeo.

Alice Kok tirou o mestrado na Academia de Belas Artes de Toulouse, em França. Depois de concluir os estudos passou dois anos em Paris. Aventurou-se ainda a trabalhar na Índia e no Tibete. Foi editora da secção de artes da revista Macau Closer, com a qual ainda colabora.

 

O mundo pelo caleidoscópio

João Magalhães e Ana Mafalda Botelho levaram à Bienal de Veneza um caleidoscópio especial. À medida que se assiste ao movimento de pessoas pelo cone do instrumento há a certeza que as imagens vão estar em constante transformação. “Pode-se dizer que vemos o mundo real, mas se calhar a realidade vivida pelas sociedades actuais é uma ilusão constante. O facto de o cone estar apoiado numa aresta, e não na sua base, mostra muito os limites e o equilibrio entre o real e o irreal”, refere Ana Mafalda Botelho. “As atitudes que tomamos são por nós seguidas muitas vezes por influência de terceiros. E são essas atitudes que também poderão ser observadas através do caleidoscópio”, acrescenta João Magalhães, justificando assim o conceito que está intimamente ligado ao tema Mobilidade e Memória. A estrutura tem dois metros de comprimento, dois de largura e outros dois de altura.

 

Palco ideal

A primeira edição da Bienal das Artes de Veneza remonta a 1895. Trata-se, por isso, de um certame com longa tradição mundial que é bem conhecido dos artistas locais, especialmente, contemporâneos. Aliás, durante a administração portuguesa de Macau chegou-se a considerar a possibilidade de fazer deslocar uma representação até àquela cidade transalpina. “Talvez nessa altura as condições não fossem as mais propícias, mas a situação evoluiu após da transferência, criando-se a partir de então um ambiente mais amadurecido que permitiu a participação neste evento de grande prestígio mundial”, explica o presidente do Museu de Arte de Macau.

Chan Hou Seng acrescenta que essa participação acontece precisamente no local que considera ser o mais apropriado para catapultar o nome de Macau num patamar internacional. “Claro que vamos considerar seriamente a participação noutras bienais, mas para já vamos continuar a fazer-nos representar em Veneza”, salienta Chan Hou Seng.

A participação num evento com créditos firmados é um factor que foi calculado ao pormenor pelo curador do Pavilhão de Macau para a 54.ª Bienal de Veneza. Na óptica de Ng Fong Chao, “os representantes do território têm a oportunidade de trocar experiências, de interagir e de apresentar as suas concepções artísticas num palco exigente. Pode ser uma oportunidade para que se desperte a atenção dos curadores de outros países, podendo os trabalhos dos artistas locais ser cada vez mais falados ou mencionados além-fronteiras”.

O grau de exigência foi estabelecido desde muito cedo. “Além de Macau [representada por António Conceição Júnior], também convidámos mais juízes internacionais oriundos da Coreia do Sul [Chang Suk Won], da República Popular da China [Zhang Peili], de Taiwan [Victoria Lu] e do Japão [Kuroda Raiji], por forma a elevar os critérios de selecção. Pretendíamos, essencialmente, encorajar os artistas, pois queríamos incutir-lhes maior criatividade na elaboração dos seus trabalhos”, explica Ng Fong Chao.

A medida é realçada pelo antecessor de Chan Hou Seng no Museu de Arte de Macau. Aliás, o actual presidente do Instituto Cultural, Guilherme Ung Vai Meng, foi um dos principais obreiros que culminou com a primeira participação de sempre, em 2007. “O território é caracterizado pela mestiçagem entre as culturas chinesa e ocidental. Torna-se assim necessário e primordial que Macau continue a participar em importantes exposições. Como há vários artistas que despontam na cena artística local, esta participação representa também uma boa oportunidade para que eles exibam as suas obras e os seus produtos artísticos no palco que é, por excelência, a catedral das bienais em todo o mundo”, explica Ung Vai Meng.

Em 2007, representaram o território na 52.ª Bienal das Artes de Veneza os trabalhos Si monumentum requisis, circumspice, do artista russo radicado em Macau Konstantin Bessmertny, e “Macao’s Gondola”, dos irmãos Lui Chank Hong e Lui Chak Keong. Ung Vai Meng era o comissário e Ng Fong Chao o curador da exposição no certame de Veneza.

Dois anos depois, a RAEM fez-se representar com Timeless Tunnel, de Lee Yee Kee; com Space in Flux, um trabalho conjunto de Bonnie Leong Mou Cheng e de Kity Leung Mou Kit, e com Eurasia Airways Limited, que juntou pai e filho, João Ó e Bruno Soares.

 

Um certame com história

A Bienal de Veneza conta com exposições que estão subdivididas pelos sectores de Arquitectura (Mostra Internacional de Arquitectura), Arte (Exposição Internacional de Arte), Cinema (Festival Internacional de Cinema de Veneza, com periodicidade anual), Dança (Festival Internacional de Dança Contemporânea), Música (Festival Internacional de Música Contemporânea) e Teatro (Festival Internacional de Teatro). Incluído no certame está também o Arquivo Histórico de Arte Contemporânea, que se encarrega de conservar o património da Bienal, nos seus mais variados aspectos. A mostra de artes, este ano subordinada ao tema ILLUMInations, poderá ser vista no Pavilhão Central do Parque Giardini e no complexo do Arsenale, formando um único itinerário, com a participação de 82 artistas de todo o mundo. Estará aberta todos os dias, entre as 10h00 e as 18h00, encerrando apenas às segundas-feiras.