A influência europeia na identidade cabo-verdiana

O cabo-verdiano que hoje somos é o resultado de todos os tipos humanos que ao longo dos séculos povoaram as ilhas

 

 

Texto Germano Almeida

Escritor

 

Eleger a concubinagem e a fazenda como os principais forjadores do que viria a ser a identidade nacional cabo-verdiana poderia parecer temerário, caso houvesse a intenção de reduzir unicamente a estes dois elementos todas as circunstâncias que se juntaram para gerar o povo das ilhas. Desse modo, ficam esquecidos inclusivamente a “educação” dos escravos destinados às ilhas de Santiago e Fogo, que quase logo à chegada eram iniciados nos rudimentos do uso da religião e da língua portuguesa, e algumas vezes até na escrita, condição imposta pela Igreja para serem baptizados.

É certo que a fazenda teve um papel primordial no processo, certamente lento mas inevitável, de criação do homem cabo-verdiano. Basta imaginar grupos humanos trazidos de diferentes culturas e línguas e, de repente, circunscritos a um espaço relativamente reduzido onde ficam condenados a viver, a trabalhar, a comer, a conviver e até a amar e procriar.

São obrigados a se comunicarem. E se não existe um instrumento comum, há que inventá-lo, quer através de gestos ou de objectos, ou de palavras ouvidas uns dos outros e memorizadas. Mas particularmente presentes e em maior número são os vocábulos de que diariamente os brancos se servem em forma de ordens e que os escravos interiorizam e vão repetindo à maneira que  percebem o seu sentido. E é assim, a pouco e pouco, que começa a surgir um ainda que rudimentar veículo de comunicação. Que não fica no entanto exclusivo dos escravos, porque rapidamente os senhores descobrem as vantagens da sua apropriação. Com o passar dos anos e dos séculos, os que chegam rapidamente descobrem que aprender esse linguajar é a única maneira que têm de minimamente se integrarem na sociedade que já se afirmava diferente. De tal forma que no século XVIII, um militar português mandado para Santiago constatava que “o povo miúdo, assim como todos os grandes, a maior parte não fala a língua portuguesa. Qualquer pessoa de fora que queira comunicar-se com eles precisa levar um tradutor”.

O que começou como um simples “uso da mulher negra pelo homem branco”, por prementes razões de satisfação de necessidades de ordem sexual, rapidamente se generaliza e se transforma em concubinagem. De tal modo que o florentino Francesco Carletti, que visitou a ilha de Santiago em 1594, não conseguiu esconder a sua admiração por quanto lhe era dado observar no comportamento daquela sociedade. Carletti tinha resolvido deixar a sua cidade e empreender uma pequena viagem, mas acabou passando oito anos a percorrer o mundo. Pelo caminho lembrou-se de ganhar algum dinheiro comprando escravos para revender algures nas Antilhas, e assim desembarcou na Ribeira Grande, a primeira cidade fundada pelos portugueses no continente africano.

Ele não fazia a mínima ideia do que ali iria encontrar e muito se admirou quando viu que não só havia uma forte representação eclesiástica, inclusive com bispo próprio, como também cerca de 50 belas casas do tipo europeu, ainda que fosse bastante reduzida a percentagem de gente branca.

No seu livro de viagem, Carlatti refere ter encontrado muitos brancos casados com mulheres de Portugal. Porém, constatou que muitos outros eram casados com mulheres negras e muitos outros ainda com mulatas que, explica, são “mulheres nascidas de brancos e de negras”. Escreve que os brancos estimam muito mais as mulatas do que as portuguesas, porque, diz, sabem por experiência que “ter relações com elas não só é menos nocivo como até de maior deleite”. E prossegue: “Por isso, há quem estime mais uma mulher morena que uma branca porque, na realidade, parece que aquele céu inclina e faz desejar mais as naturais do país do que as estrangeiras, vendo-se até demasiado que quem não as tem como mulheres procura rapidamente tê-las como concubinas. E por fim, levados pelo afecto, acabam por casar e viver com elas muito mais contentes do que se fossem da mesma nação; não só por serem mais saudáveis, mas porque trabalham mais, sendo também muito verdade que algumas, não apenas em relação ao valor e juízo mas também quanto a feições e aspecto do corpo, ultrapassam em muito as nossas mulheres europeias, pondo de lado a desvantagem da cor que nem sequer é tão considerável como alguns pensam. E nisto confesso que eu próprio me enganei pois algumas que vi eram tais que nem sequer a cor me dava qualquer enfado”.

Mesmo descontando algum exagero nessas observações, é sabido que os próprios governadores vindos de Portugal, ainda numa época em que eram escolhidos entre fidalgos de alta linhagem, não conseguiam resistir aos encantos das mulatas. Não só se permitiam viver em franco concubinato com as suas escravas, como também tratavam os filhos nascidos dessas ligações como “legítimos”, chegando a impor que, na igreja, ficassem sentados a seu lado durante a missa, para grande desconforto dos bispos e até não poucas nem pequenas arrelias de parte a parte. Aliás, a história reteve o nome do Dr. José da Costa Ribeiro, natural da Madeira, por sinal professo na Ordem de Cristo, que exerceu na ilha de Santiago como ouvidor. Ficou com fama de ser tão desatinado no vício da mulher que vulgarmente era chamado de “O rei da Guiné”. Tinha seis escravas – todas elas belas raparigas a quem mandou ensinar música e tocar instrumentos – e quando regressou a Lisboa, não obstante ter lá mulher e filho, levou com ele todas as suas moças.

Praticamente desde o início do povoamento das ilhas os chamados filhos bastardos tiveram tratamento particular. Prova-o o facto de ser comum os colonos deixarem os seus bens aos filhos mestiços, nascidos do concubinato com as suas escravas.

Esses factos não podiam deixar de ter consequências a nível da miscigenação. E é assim que, por volta de 1784, um anónimo residente em Santiago retratava da seguinte forma as relações entre brancos e pretos: “Em outro tempo houve nesta ilha muitos homens brancos, naturais e principais da terra, descendentes dos primeiros povoadores, com casas bastante opulentas, por serem senhores da maior parte das terras da ilha, em razão das grandes mercês que lhes haviam feito assim o infante Dom Fernando como El-Rei Dom Manuel. Tratavam-se como nobres, tendo brasões de arma que ainda hoje se manifestam em alguns monumentos. Eram muito respeitados e venerados pelos pretos, que ficaram sendo seus rendeiros. De tal forma era o respeito que os pretos tinham aos brancos, que vindo um preto a cavalo e  avistando um branco a tiro de pedra, logo se apeava e, retirando-se para fora do caminho, esperava que passasse o branco para o reverenciar. Porém, com o tempo acabaram por desaparecer essas velhas famílias, umas por falta de descendência, outras porque se degeneraram em mestiços, tanto mais que o clima é muito mais favorável a estes do que a aqueles”.

Vemos, pois, que o cabo-verdiano que hoje somos é o resultado de todos os tipos humanos que ao longo dos séculos povoaram as ilhas. Mas seria imprudente não ter em conta as imensas penúrias provocadas pelas secas e pelas fomes que acabaram possibilitando a formação de uma sociedade miscigenada, senão nos haveres, como diz Bentley Duncan, no seu livro “As ilhas portuguesas do Atlântico”, pelo menos na cor da pele, na língua, na música, na tradição oral, na religião, na sabedoria popular, no estilo de vida, nos costumes e nas regras de convivência. E de facto, neste laboratório isolado pelo mar, foi paulatinamente emergindo uma sociedade híbrida e sincrética, com uma cultura e identidade que não se deixam confundir com nenhuma outra.

Na Introdução Geográfica à História Geral de Cabo Verde,  publicada em 1991, o professor Ilídio do Amaral caracteriza as ilhas do seguinte modo: “Temos assim um espaço geográfico muito bem delimitado, um pedaço de terra cercado de mar por todos os lados. Encontrado deserto, nele foram introduzidos dois grupos humanos diferentes: os europeus e os africanos, que aí praticaram permutas de grande envergadura, no sentido da aparente fixação de novos padrões culturais. Crises climáticas, de anos sem chuva, limitaram as correntes de inovações técnicas do arranjo dos campos e de descoberta de novos produtos vegetais. Ainda que com diferenças sociais, contudo a tendência decorreu no sentido de uma generalização da pobreza. Foram-se fixando, ao longo dos processos, as permutas culturais, fundidas em diferentes aspectos da vida diária, da estrutura social, das crenças, das formas musicais correntes, dos usos linguísticos, etc. Estava criada a ‘sociedade crioula’, consumada a transmissão cultural entre europeus e africanos, respondido o desafio da sobrevivência local”.